Por Victor Farineli.
Desde julho de 2016, o assunto político mais importante do Chile é o sistema previdenciário. Multitudinárias marchas realizadas nas principais cidades do país, uma delas com quase um milhão de pessoas, exige o fim do sistema criado durante a ditadura, e que só agora, quando as primeiras pessoas estão se aposentando por ele, se descobriu que é um verdadeiro desastre.
O sistema foi criado em 1981 por José Piñera, o mais eficiente dos chamados Chicago Boys – os economistas chilenos treinados na Universidade de Chicago, sob a tutela de Milton Friedman, o grande guru do neoliberalismo –, já que, como ministro do Trabalho da ditadura de Pinochet (1973-1990) idealizou também a reforma das leis trabalhistas, consideradas pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) uma das mais antissindicais do mundo.
Juntos, Piñera e o ditador Pinochet acabaram com a seguridade social que existia antes, e criaram um modelo de negócio no qual uma série de empresas passaram a administrar os fundos de pensão dos chilenos. Assim nasceram as empresas AFP (cuja sigla significa justamente isso: administradoras de fundos de pensão). Os que já contribuíam com o sistema antigo podiam escolher entre se manter nele – e seriam os últimos – ou aderir ao novo modelo de previdência privada. A gigantesca maioria escolheu ficar no sistema público. Já aqueles que recém ingressavam ao mercado de trabalho não podiam mais optar pelo sistema estatal. Eram obrigados a escolher uma empresa de AFP e dar a ela a autonomia para administrar esses fundos.
Capitalismo para todos
Na época da implementação do sistema, as empresas de AFP prometiam uma espécie de oásis do capitalismo. Algumas propagandas dos primeiros anos diziam que o sistema era tão bom que fazia com que todos os chilenos fossem “homens de negócios”, que todos teriam aposentadoria com salário integral, e que alguns poderiam ter pensões até maiores que os salários, ou se aposentar antecipadamente, se soubessem investir suas contribuições. O próprio José Piñera se gabava, em entrevistas para a imprensa da época, que “graças ao sistema de AFP, todo trabalhador chileno pode ser acionista da Coca-Cola, ou da IBM, ou de qualquer outra grande empresa de capital aberto”.
Isso era uma verdade parcial. Na prática, as empresas de AFP administram os fundos dos contribuintes investindo-os no mercado de ações. Porém, o slogan omitia duas informações. A primeira é que a autonomia do contribuinte sobre a administração dos seus fundos é cega. O trabalhador pode escolher entre cinco planos de investimento, os planos de A a D corresponderiam, segundo as empresas ao nível de risco das empresas onde se estão investindo os fundos – se você escolhe o plano A, enfrentará riscos, mas pode ter mais rentabilidade, e se escolhe o plano D, menos riscos mas menor rentabilidade.
O segundo problema é com respeito ao risco. Se a empresa que administra os fundos perde dinheiro nessas operações, o prejuízo é todo do contribuinte, nunca da empresa. Essa situação só foi descoberta durante a crise econômica de 2008, quando as empresas de AFP registraram sucessivos recordes negativos de rentabilidade, e muitas administradoras chegaram a quebrar. Logo, o governo chileno aceitou um plano para que as sobreviventes incorporassem as falidas, e que o sistema pudesse se manter vigente. Na Argentina – que aderiu ao sistema privado durante o governo de Carlos Menem, em 1993 – a crise de 2008 também gerou uma quebra generalizada das empresas AFJP (lá, a sigla em espanhol se referia a Administradoras de Fundos de Aposentadorias e Pensões), e a presidenta Cristina Fernández de Kirchner decidiu renacionalizar a previdência.
“O sistema está desenhado para que as empresas nunca percam. É como um cassino, onde você pode perder ou ganhar dependendo da bolinha cair no seu número ou não, mas o dono do cassino sempre vai ganhar. Neste caso é pior, porque as empresas de AFP ainda escolhem em que número você vai apostar”, explica a professora María Luz Navarrete. Ela é uma das porta-vozes do movimento No + AFP, que organiza as grandes marchas chilenas contra o sistema de previdência privada. “O trabalhador tem uma autonomia cega sobre os fundos que são administrados. Não é possível saber em que empresas se está investindo, nem que tipo de risco se está tomando. A empresa somente te manda um informe no fim do mês dizendo `você perdeu tanto´ ou `você ganhou tanto´. A lei dá às empresas inclusive o direito a não ter que dar explicações”, comenta ela.
Pensões miseráveis
Outro problema que também veio à tona somente a partir dos primeiros aposentados pelo sistema foi o do valor das pensões. Longe da promessa de salário integral para todos, as pensões entregues pelas AFP´s são muito abaixo do salário dos contribuintes. Segundo um estudo de 2014 realizado pelo instituto Cenda Chile, em média, os contribuintes chilenos recebem pensões equivalentes a 30% do valor dos seus salários, e em muitos casos essa pensão está abaixo do valor do salário mínimo chileno (que é de 264 mil pesos, equivalente a 1250 reais).
“Conhecemos muitos casos de pensões realmente miseráveis, pessoas que ganham menos de mil pesos chilenos (cerca de 4,5 reais) de pensão por mês. Parece uma piada, ou algo que é tão absurdo que só pode ser um caso isolado, mas nós conhecemos centenas de casos assim”, conta María Luz Navarrete. Quem explica melhor a razão pela qual existem casos de pensões miseráveis é Luis Messina, outro dos porta-vozes do movimento No + AFP. Ele foi gerente de uma das empresas administradoras (AFP Futuro), e renunciou ao trabalho para denunciar o sistema, contando com a experiência de quem já viu como ele funciona por dentro.
“As empresas utilizam diversas artimanhas visaando jogar o preço da pensão individual para baixo. Entre elas, está uma manobra cruel, de dividir o total acumulado nos anos de contribuição pelos meses que o cliente viveria até os 120 anos. Nenhum chileno é pode durar tanto tempo. A expectativa de vida do país é mais ou menos cinquenta anos menos que isso, mas com essa justificativa eles conseguem jogar o custo mensal dessa pensão para um valor que não esbarra com a margem de lucro do negócio”, explica Messina.
As empresas realmente fazem esse cálculo, e nas vezes que foram questionadas sobre tal regra e a possibilidade de alterá-la, dizem que isso poderia fazer colapsar o sistema, mas asseguram que o contribuinte não perde dinheiro, porque os fundos acumulados são herdáveis, e portanto os filhos e netos ainda poderão continuar recebendo as contribuições depois da morte do titular.
Marchas multitudinárias
O movimento No + AFP existe há mais de dez anos, mas só alcançou um número mais massivo de adeptos durante esta década, graças à desilusão dos primeiros aposentados pelo sistema privado.
Depois de anos seguidos de eventos fracassados, o movimento começou a reunir os primeiros milhares de aderentes a partir de 2015, até que em julho de 2016 realizou sua primeira marcha massiva, que contou com 700 mil pessoas em todo o Chile, 400 mil só na capital Santiago. Em outubro, na maior das manifestações, estimou-se cerca de 900 mil pessoas em todo o país e cerca de 500 mil em Santiago.
O movimento defende o fim do sistema de AFP´s e a recriação de um sistema público solidário, administrado por um ente público que seja protegido de intervenções estatais. Além disso, o movimento também quer que a constituição chilena contenha um artigo garantindo o direito à seguridade social – aqui vale lembrar que a constituição vigente no Chile ainda é a de 1980, imposta pela ditadura de Pinochet, mas que deve ser substituída em breve, a partir do processo constitucional iniciado pela presidenta Michelle Bachelet, que só será concluído no próximo governo.
Por sua parte, a associação das AFP´s admite que o sistema tem problemas, mas que seu aperfeiçoamento é muito mais seguro que a substituição por um novo modelo. Na opinião do empresário Andrés Santa Cruz, representante das administradoras, uma mudança de sistema “levaria à perda dos valores economizados pelos contribuintes, e o governo teria que gastar milhões para recuperar esses fundos”. A associação também sugere, como uma das medidas para o aprimoramento do sistema, o aumento da idade de aposentadoria: atualmente, os chilenos podem se aposentar a partir dos 65 anos no caso dos homens e 60 no caso das mulheres, mas as administradoras pedem que essa idade seja de 70 anos para os homens e 67 para as mulheres.
A professora María Luz Navarrete contesta essa versão, a qual considera uma chantagem e uma mentira. “Na prática, o governo já é obrigado a cobrir a diferença pelas pensões miseráveis com um mecanismo chamado `piso solidário´. Para compensar o valor paupérrimo, o governo entrega um valor mensal complementário, para que as pensões dos trabalhadores mais pobres possam se aproximar ao máximo do salário mínimo, e isso é absurdo, sobretudo porque é uma forma de evitar um debate que coloca em risco o lucro das empresas”, afirma ela.
Neste ano de eleições presidenciais no Chile, os porta-vozes do movimento se mostram céticos com respeito ao debate político sobre a crise previdenciária do país, apesar de celebrarem o fato de que este será um dos temas mais importantes, ou talvez o mais importante da campanha eleitoral. Segundo Luis Messina, “os dois grupos políticos mais fortes, a Nova Maioria (centro-esquerda) e Chile Vamos (direita) estão comprometidos com o lobby das AFP´s. A centro-esquerda esteve no poder durante mais de vinte anos após a ditadura, nos quais não se atreveu a mudar o sistema, e ainda levou alguns ex-políticos trabalharem na associação de AFP´s”.
Entre os pré-candidatos está o ex-presidente Sebastián Piñera (2010-2014), representante da direita, que tenta o seu segundo mandato. Ele é irmão do economista José Piñera, o criador do sistema AFP.
A próxima marcha contra as AFP´s no Chile está programada para o domingo.
Fonte: Portal Vermelho.