Por Christine Berry.
Tradução: Simone Paz.
“A economia é o método: o objetivo é transformar o espírito”. Entender o porquê de Margaret Thatcher ter dito isso é fundamental para compreender o projeto neoliberal — e como devemos caminhar para além dele. Um artigo de Carys Hughes e Jim Cranshaw propõe um desafio crucial para a esquerda com respeito a essa questão. É muito mais fácil contar para nós mesmos uma historinha sobre o longo reinado do neoliberalismo, povoada unicamente por elites onipotentes que impõem sua vontade sobre as massas oprimidas. É muito mais difícil enfrentar com seriedade as maneiras pelas quais o neoliberalismo criou o consentimento popular para levar a cabo suas políticas.
A esquerda precisa reconhecer que alguns aspectos da agenda neoliberal tornaram-se inquestionavelmente populares: ela teve sucesso em atingir os instintos das pessoas sobre o tipo de vida que gostariam de levar e envolveu esses instintos numa narrativa convincente sobre como deveríamos enxergar a nós mesmos e às outras pessoas. Precisamos de uma estratégia coerente que substitua essa narrativa por outra, capaz de reconstruir ativamente nossa própria imagem coletiva — transformando-nos em cidadãos empoderados, participantes de comunidades movidas por cuidado mútuo — em vez de indivíduos egoístas, donos de propriedades e que competem nos mercados.
Como observam Chantal Mouffe e Ernesto Laclau, teóricos gramscianos, nossas identidades políticas não estão “dadas”, não emergem diretamente dos fatos objetivos de nossa situação. Todos ocupamos uma série de identidades sobrepostas em nossas vidas cotidianas: como trabalhadores ou chefes, locatários ou proprietários de casas, devedores ou credores. Qual dessas identidades define nossa política? Isso depende das lutas políticas por sentido e poder.
Parte do trabalho da política — seja nos partidos ou movimentos sociais — está em nos mostrar como nossos problemas individuais têm origem em questões sistêmicas e como eles podem ser confrontados de forma coletiva se nos organizamos em torno dessas identidades. Assim, a dívida deixa de ser uma fonte de vergonha e passa a ser uma injustiça contra a qual os devedores podem se organizar. As lutas que envolvem o cuidado das crianças não são exclusivas ou de culpa individual para os que são pais, mas um problema social compartilhado que temos a responsabilidade de enfrentar em conjunto. O partido-movimento espanhol Podemos foi profundamente influenciado por esse pensamento quando procurou redefinir a política espanhola como “La Casta” (“a elite”) versus o povo, atravessando muitas das fronteiras tradicionais entre direita e esquerda.
Os inventores do neoliberalismo perceberam bem esse processo de criação da identidade. Ao caracterizar as pessoas como egoístas, maximizadoras racionais da utilidade, eles as encorajaram ativamente a se tornarem aquilo. Esse não é um efeito colateral da política neoliberal, mas uma parte central de sua intenção. Como Michael Sandel apontou em 2012, em seu livro “O que o dinheiro não compra: Os limites morais dos mercados”, o neoliberalismo comprime os valores divergentes que anteriormente governavam as esferas da vida não mercantis, como a ética do serviço público no setor público, ou o atendimento mútuo nas comunidades locais. Mas esses valores permanecem latentes: o neoliberalismo não tem o poder de apagá-los por completo. É aqui que reside a esperança da esquerda, na fenda de luz através da porta, que precisa ser valorizada.
Os limites da consciência neoliberal
Pensando em como fazê-lo, é muito instrutivo reparar nas formas como os esforços neoliberais para moldar nossas identidades tiveram sucesso — e, também, as formas nas quais falharam. Embora o Right to Buy (“Direito à Compra”) [1] tenha conseguido fazer as pessoas se identificarem como proprietários de casas e estigmatizar moradias sociais, isso não se converteu em um apoio mais amplo a toda a propriedade privada. Embora a propriedade pública tenha se tornado um tabu entre as classes políticas por toda uma geração — muito além do “senso comum” político — as pesquisas mostraram com consistência que isso não foi acompanhado por uma queda no apoio do público à ideia. Em certo nível, talvez por causa do fraco desempenho das entidades privadas, as pessoas continuaram a se identificar como cidadãos com direito a serviços públicos, e não como consumidores de serviços privatizados. O forte e contínuo apego a um Serviço Nacional de Saúde Pública (NHS, na sigla em inglês) sintetiza essa tendência. Isso que tornou possível que o Partido Trabalhista, sob liderança de Jeremy Corbyn, resgatasse o conceito de propriedade pública, já que as propostas do manifesto trabalhista de 2017 para propriedade pública de ferrovias e água — rejeitadas como ridículas pelo establishment político — mostraram-se extremamente populares.
De modo geral, há evidências de que o neoliberalismo, na verdade, não foi bem sucedido em fazer com que nos enxergássemos como acumuladores racionais e egoístas: mas conseguiu nos fazer acreditar que todos os outros eram. Por exemplo, uma pesquisa de 2016 constatou que os cidadãos do Reino Unido, em média, tendem mais para valores de empatia do que para valores egoístas. No entanto, avaliam os outros como significativamente mais egoístas (mais do que eles, e mais do que a média). Contundentemente, as pessoas com um grande “hiato entre ego e sociedade” [orig: “self-society gap”] foram menos propensas a votar e a se envolver em atividades cidadãs, e altamente suscetíveis a experimentar sentimentos de estranhamento cultural.
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Esta descoberta nos conduz, tanto para o grande truque da subjetividade neoliberal, como para seu calcanhar de Aquiles. Popularizou-se, com sucesso, uma imagem de “como são os seres humanos”, mas nela muitos de nós não nos vemos representados. Esta pesquisa sugere que nosso mal-estar político é causado não só pelas condições materiais de desempoderamento das pessoas, mas por quatro décadas em que nos disseram que não podíamos confiar em nossos concidadãos. Por outro lado, também sugere que, no fundo, sabemos que esse relato pessimista da natureza humana não corresponde a quem realmente somos — nem a quem aspiramos ser.
Podemos ver um exemplo claro de como isso se desenrola por meio de estudos acadêmicos que demonstram que, num cenário de jogo que apresenta a oportunidade de nos aproveitarmos dos esforços alheios, somente os estudantes de economia se comportaram como os modelos econômicos previam: todos os outros grupos eram mais propensos a compartilhar seus recursos. Treinados para acreditar que os todos os outros são provavelmente egoístas, os economistas acreditam que sua melhor forma de agir é também egoísta. O resto de nós ainda conserva seu instinto de cooperação. Isso não deveria nos surpreender: afinal, como George Monbiot argumenta em Out of the Wreckage, a cooperação é a principal estratégia de sobrevivência da nossa espécie.
O que é o “Direito à Compra”?
O desafio para a esquerda é encontrar políticas e narrativas que explorem esse sentido latente do que nos torna humanos — Gramsci chamou-o de “bom senso” — e usá-lo para derrubar o “senso comum” neoliberal. Ao fazer isso, devemos estar cientes de que estamos competindo não apenas com uma identidade neoliberal, mas também com uma nova extrema-direita que busca promover identidades de grupo preconceituosas, patriarcalistas e colonialistas. Como enfrentaremos isso é a pergunta de um milhão de dólares e ainda não temos a resposta.
O uso que Margaret Thatcher deu a políticas emblemáticas como o “Direito à Compra” foi uma aula de mestre nesse quesito. Enganosamente simples, tangível e fácil de entender, o Right to Buy também comunicou uma história muito mais profunda sobre uma nação de indivíduos proprietários — cimentando a propriedade da casa como um símbolo cultural de aspiração (pelo direito de pintar sua própria porta da frente), dando a milhões uma participação financeira imediata em sua nova ordem. Quais poderiam ser as políticas emblemáticas equivalentes para a esquerda de hoje?
Até agora, talvez um dos esforços mais significativos neste rumo seja a proposta dos “Fundos de Propriedade Inclusivos”, desenvolvida por Mathew Lawrence num relatório para a New Economics Foundation. Exigiria que as empresas transferissem ações para um fundo, dando aos trabalhadores uma participação coletiva que aumentaria com o tempo e pagaria dividendos aos funcionários. Assim como o “Direito à Compra”, além de mudar a distribuição material de riqueza e poder, visa construir nossa identidade como parte de uma comunidade de trabalhadores que assumem um controle mais coletivo sobre suas vidas profissionais.
Mas essa ideia não nos leva tão longe assim. Ela bem que pode se aproveitar do desejo das pessoas por mais segurança e empoderamento no trabalho, somada a uma participação no que fazem, oferecendo um benefício bastante abstrato que só se ganharia com o tempo, à medida em que os trabalhadores adquirissem uma participação suficientemente alta para ter opiniões significativas sobre as estratégias da empresa. Porém, para aqueles que estão no extremo de um mercado de trabalho opressivo e precário, não significa muita coisa. A menos que também lidemos com as preocupações mais urgentes que enfrentam, como as práticas de exploração de gigantes como a Amazon ou o estresse causado por trabalhos intermitentes. Ainda não temos uma ideia que possa competir com a mudança transformadora da vida das pessoas, oferecida pelo “Direito à Compra”.
O que mais está em jogo? Talvez, quando se trata da vanguarda do novo pensamento da esquerda sobre essas questões, o local de trabalho não esteja exatamente o foco da ação — ou, pelo menos, não diretamente. Talvez precisemos explorar o desejo das pessoas de escapar dessa “corrida de ratos” para termos mais liberdade e ir atrás das coisas que realmente nos fazem felizes: tempo com nossas famílias, acesso à natureza, espaço para cuidar de nós mesmos, conexão com nossas comunidades. A semana de trabalho de quatro dias (sem redução de salários) tem um potencial real como política emblemática nesse quesito. Os conservadores e a imprensa de direita podem estar fazendo piadas sobre o Partido Trabalhista ser “preguiçoso” e “imprudente”, mas no fundo podem estar amedrontados. Eles não conseguem fugir ao fato de que a maioria das pessoas gostaria de gastar menos tempo no trabalho.
Se comunicada com eficiência, esta ideia tem todo o potencial para ser uma profunda política anti-neoliberal, que incorpora uma nova narrativa sobre o que aspiramos a ser, tanto individualmente como em sociedade. Onde o neoliberalismo se aproveitou do desejo das pessoas por uma maior liberdade pessoal e capturou o sentimento, ligando-o à aquisição de riqueza, à propriedade e à escolha do consumidor, nós podemos focar na liberdade para vivermos a vida que realmente queremos. Em vez de oferecer liberdade através do mercado, podemos oferecer libertação do mercado.
Os proponentes da Renda Básica Universal costumam argumentar que ela desempenharia uma função semelhante à de libertar pessoas do trabalho e de nos independizar de sermos sustentados exclusivamente pelo mercado de trabalho. Mas, em termos materiais, é improvável que uma Renda Básica possa ser definida ao nível para que realmente ofereça às pessoas essa liberdade, pelo menos a curto prazo. E, em termos narrativos, a Renda Básica é, na verdade, uma política altamente maleável, igualmente suscetível de ser cooptada por uma agenda liberal. Mesmo na melhor das hipóteses, não deixa de ser uma política sobre a redistribuição da riqueza já existente (embora em maior escala do que a do Estado de bem-estar social). Para derrubar o neoliberalismo de verdade, precisamos ir além disso e falar sobre propriedade coletiva e criação de riqueza.
As políticas focadas num controle coletivo dos ativos das empresas podem ter um efeito maior e melhor se substituírem a narrativa sobre propriedade individual por outra, que destaque a concentração real da riqueza e da propriedade nas mãos das elites — e a necessidade de recuperar esses ativos para o bem comum. Além dos Fundos de Propriedade Inclusiva, outra maneira de fazer isso é através dos Fundos de Cidadania, que socializam ativos lucrativos (sejam recursos naturais ou intangíveis, como dados) e usam esses recursos para pagar dividendos a indivíduos ou comunidades. Os Serviços Básicos Universais — por exemplo, políticas como ônibus públicos gratuitos — podem ser outra ideia atrativa.
Para finalizar, gostaria de lembrar os trabalhos de assistência à Saúde e de cuidados, pois são uma área crítica e merecem mais atenção para desenvolver políticas emblemáticas e convincentes — seja em assistência universal à infância, assistência a idosos ou apoio a prestadores de cuidados não remunerados. O apego instintivo que muitos de nós sentimos a um Sistema Nacional de Saúde público precisa ser ampliado para promover um direito mais amplo de cuidar e ser cuidado, enquanto resistimos firmemente à comercialização do cuidado. Embora o cuidado seja muitas vezes marginalizado no debate político, eu, como mãe recente, tenho plena consciência de que ele é fundamental para que milhões de pessoas possam viver a vida que desejam.
Em uma população envelhecida, a maioria das pessoas já passou pela pressão que significa ter que cuidar de alguém — seja pai ou filho. Ao falar dessas questões, afastamos a discussão política sobre o trabalho valorizado pelo mercado e trazemos a do trabalho que todos sabemos que realmente importa. Afastamos a discussão sobre a competição por recursos escassos e nos aproximamos do debate sobre nossa capacidade de cuidarmos uns dos outros. É exatamente onde a esquerda precisa estar.
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[1] Política introduzida no Reino Unido em 1979, no início do governo Margareth Thatcher. Visava combater o sistema, até então majoritário, de moradias possuídas pelo Estado, mas locadas pelos cidadãos, que pagavam aluguéis módicos, por períodos de 99 anos. Significava que os moradores com dinheiro para tanto tinham, a partir de então, o “direito” de adquirir propriedade sobre o imóvel, e transformá-lo em bem pessoal, negociável nos mercados financeiros [Nota de Outras Palavras]
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