“Mas foram barrados no baile, tratados com maus elementos, lá dentro rolando Bob Marley, cá fora, Por Favor, Documentos” (Eduardo Dusek)
“Nada por lo que pedir perdón” é o título de um livro do escritor Marcelo Gullo.
Tal como anunciado hoje, em Madri, pelo líder da direita espanhola, Feijóo, este livro será enviado de presente, pelos correios, para a nova presidenta do México, de esquerda, Claudia Sheinbaum.
A sinopse do livro já é uma afronta supremacista: “América, antes de 1492, se asemejaba más al infierno que al paraíso”. Mais uma provocação do neocolonialismo espanhol, um país construído a base de invadir outros países, com ajuda fundamental do império catolicista, segundo o qual só a Cruz e a Espada civilizaria aquela Abya Ayla primitiva. Genocídio, enfim.
“Viva México, cabrones”, foi a frase gritada no Parlamento Espanhol, também hoje, em Madri, pelo líder catalão do grupo político Esquerda Republicana, Gabriel Rufián. Foi essa a frase que o político mexicano Pancho Villa escutou antes de receber 13 balas no peito. A coisa está séria, no Reino da Espanha, país absolutamente dependente de comércio e lucro de suas empresas na América Latina.
Nunca é demais lembrar que enquanto a representante empresarial da Telefônica (Vivo) é recebida com honrarias pela Embaixada brasileira em Madri, nada se fala sobre os milhões de reais que esta empresa espanhola, que chegou a ter mais clientes em São Paulo do que em toda a Espanha, acumula de dívidas com o Orçamento Geral do Brasil. A Espanha segue como o segundo país a lucrar mais no Brasil, em estoque de Investimentos Estrangeiros Diretos.
Nieves Concostrina é o nome da mais importante e premiada jornalista espanhola, republicana e anticlerical, dedicada à difusão popular da verdadeira história deste país. Uma das suas frases mais publicadas, para que a conheçam, reproduzo neste texto em bom castelhano: “La monarquía es una institución casposa, absolutamente inútil e innecesaria”. De Concostrina, basta dizer que um de seus estudos e produções mais impactantes dedica-se a desmentir toda a história católica da construção da famosíssima Catedral de Santiago de Compostela. “A Multinacional Católica”, assim se refere sempre a esta instituição mundial, “inventou que havia ossos do Discípulo Tiago para vender ingressos a peregrinos do mundo inteiro, para não pagar impostos e ainda ganhar imóveis da monarquia, além de cobrar ela mesma, a Igreja, imposto dos estabelecimentos comerciais locais”. Uma informação nada atraente para o escritor brasileiro que se tornou mais traduzido no mundo inteiro, Paulo Coelho, exatamente graças ao Caminho de Santiago.
O recente imbróglio diplomático entre o México e a Espanha não são, portanto, fatos recentes.
Países Baixos (Holanda), Dinamarca, França, Reino Unido, Itália, Alemanha, Austrália, Indonésia, Canadá, Estados Unidos, Japão e o Parlamento Europeu já pediram desculpas ou reconheceram oficialmente a escravidão e o tráfico de escravos como crimes atrozes cometidos, por governantes destes territórios, contra a humanidade. Em 1992, no Senegal, o papa João Paulo II pediu perdão pela escravidão no mundo, impulsada pela igreja católica. Em 2021, a Alemanha admitiu seu próprio Genocídio na Namíbia por ela colonizada. A Bélgica já mencionou seu “mais profundo pesar pelas feridas” (houve muitíssimo mais que essa leve palavra, “feridas”) provocadas por ela na República Democrática do Congo, sem um pedido formal de desculpas. O Senado dos Estados Unidos expressou “pesar pela escravidão”, em 2009. Em 1997, o primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair, discursou: “Aqueles que governavam em Londres na época falharam com seu povo”, referindo-se a um milhão de irlandeses assassinados de fome pela política do Império, durante a “crise na colheita de batatas”. Em 1951, o chanceler Konrad Adenauer pronunciou: “Crimes impronunciáveis foram cometidos em nome do povo alemão, o que exige indenização moral e material”, começando a doar mais de 70 bilhões de dólares (a maior indenização mundial) para Israel, em 1953. A Itália pediu desculpas à Etiópia por bombardear o país entre 1935 e 1936 com armas químicas internacionalmente proibidas. Em 2008, Berlusconi pediu desculpas à Líbia pelo colonialismo.
O problema concreto consiste em que atualmente diversos países que ainda arrastam problemas seculares devido à desgraça colonialista já não falam em perdão ou culpa, senão em assunção de responsabilidades, remetendo a solução ao presente e ao futuro, não somente ficando no passado. Reparação de Perdas e Danos. Ou, pelo menos, que se pare o roubo. Que, sim, renovado, ainda persiste.
Enquanto isso, o agravante problema espanhol, é a existência de uma monarquia que, como se não bastasse sua milionária existência, ainda é corrupta. Algo que já se revelava muito antes que, em 1985, um coronel do Exército chamado Amadeo Martínez Inglés, detalhasse que o rei Juan Carlos pagava 2 milhões de pesetas (12 mil euros) mensais para suas amantes (prostitutas?) com dinheiro público de uma Espanha muito endividada. A mesma monarquia medieval até hoje mantida enquanto este mesmo rei (“emérito”), hoje fugitivo da justiça, acaba de anunciar a criação de uma fundação privada no local onde se refugiou, Abu Dhabi. Para escapar de pagar impostos à sua Espanha, transferiu o dinheiro das contas suíças (1,8 milhões de euros declarados, segundo o jornal New York Times), agora que muito se fala na sua herança milionária.
“El pasado anda atrás de nosotros” é o nome do livro de um amigo escritor (excelente, com obras adaptadas e disponíveis na Netflix), mexicano, chamado Juan Pablo Villalobos, residente na mesma província de Barcelona onde eu resido. Nada melhor que acabar com este título, do amigo JP, recomendando este prolífico autor, natural do país, México, que originou a redação destas minhas breves linhas.
¡Viva México, cabrones!
Barcelona, setembro de 2024.
Este texto está dedicado à memória da socióloga, antropóloga e jornalista, Nathalia Urban, defensora do direito e soberania dos povos da América Latina e de todas as nações oprimidas do Mundo.
@1flaviocarvalho, sociólogo e escritor.
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