Por Saul Leblon.
O ciclo progressista da AL pode estar batendo no teto de suas ferramentas, mas está longe – muito longe – de ter esgotado a sua pertinência histórica. Para ir além, todavia, talvez necessite renovar o instrumental com uma nova família de políticas e contrapesos.
Henrique Capriles lotou ruas de Caracas neste domingo, num gigantesco comício de encerramento da campanha de oposição a Chávez.
Como diz Lula, as elites não brincam em serviço. Na média, os prognósticos dão a Chávez a dianteira no pleito do dia 7, mas um fato é inegável: a reação não fala mais apenas aos trogloditas.
Capriles construiu um discurso para atrair descontentamentos explícitos e difusos; ademais dos endinheirados, ecoa aspirações de setores populares catapultados pelo próprio chavismo. A direita agora adotou o idioma dos que querem mais.
Não é exagero enxergar no ‘burguesito’ (foto ao lado), como o denomina Chavez, um drone político sobrevoando os céus da América Latina. Se bem sucedido – e para isso não necessariamente precisa atingir em cheio o alvo do próximo domingo – servirá de referência a outros da mesma cepa que cruzarão os ares; inclusive os do Brasil, em 2014, onde o fenômeno Russomano, em São Paulo, confirmou a receptividade a artefatos do gênero.
Drones, como se sabe, são aqueles aviões teleguiados que permitem cometer atentados e fulminar adversários sem precisar desembarcar tropas ostensivas.
O golpismo cool concentra recursos em ações pontuais de sabotagens e outras façanhas seletivas, ancorando-se em intensa guerra psicológica & midiática e, claro, fluxos de caixa a lideranças com potencial ‘caprílico’
É o salto no processo de seleção. Não se pode enfrentar um Chávez, Lula, Cristina, Evo etc com a mão pesada aplicada contra Kadafi ou Assad. Além de consagrados pelo voto, os líderes latinoamericanos promoveram mudanças efetivas e m curvas de distribuição de renda secularmente congeladas como o eletrocardiograma de um morto.
Chávez tirou uns 3 milhões de miséria e permitiu a outros tantos ascenderem na escala da renda. Num país com 29 milhões de habitantes, fez da Venezuela a sociedade menos desigual da América Latina.Quem diz é a ONU.
No Brasil, sob Lula, a renda dos mais pobres cresceu 90%; a dos mais ricos, 17% ( Ipea). O Brasil é hoje o país menos desigual de toda a sua história. Néstor e Cristina Kirchner fizeram o mesmo na Argentina onde o triturador neoliberal havia empurrado mais de 40% da população para a pobreza.
Sem ter como negar tais feitos, o gigantesco aparato intelectual e logístico que guia os drones ensaia uma vacina para enfraquecer essas conquistas.
“É insustentável’, dizem os conservadores sobre a ênfase nas ações de transferência de rendas, adotada pelos governos progressistas.
O perigo desse raciocínio é que ele envolve pedaços de verdade apontados por uma parte da própria esquerda. Desses pedaços os Capriles extraem sua credibilidade para desidratar a dos adversários.
A simples transferência de renda não gera dinâmicas autônomas que possibilitem aos excluídos ocupar um espaço de inserção emancipadora para superar padrões estreitos de consumo e bem-estar.
O pulo do gato dos drones está em omitir que as reformas requeridas para esse salto são, ao mesmo tempo, fuziladas no berço pelos seus atiradores de elite.
É o caso, por exemplo, da taxação adicional sobre a riqueza, seja ela de natureza financeira ou patrimonial, assentada em latifúndios rurais e urbanos.
Os Capriles desviam o foco quando se trata de discutir essas rupturas históricos. E iluminam vitrines de acesso rápido ao repertório consumista. Garantem: basta trocar o governante (como se troca o cartão de crédito) e limpar a corrupção da ‘financiadora’. Pronto: isso feito, no idioma dos drones, a engrenagem modernizante começa a funcionar ampliando o circuito das gôndolas no acesso ao supermercado global.
A contrapartida dos cidadãos envolve frequentemente outra ardilosa meia verdade: a emancipação social à frio, através da educação.
A idéia é que é possível anistiar o estoque de iniquidade patrimonial e superpor a ele um outro relevo histórico; e que isso se faz sentado nos bancos escolares.
Escola é crucial em qualquer etapa da vida de uma sociedade, mas o truque oculta uma contradição em termos.
Um Estado privado de recursos tributários adicionais seria incapaz de atender às obrigações correntes e, ademais, promover um efetivo salto educacional de qualidade nas periferias conflagradas. Isso, sem falar do caixa necessário para implantar políticas de desenvolvimento que assegurem a absorção dessa nova mão-de-obra tecnificada.
Nem Chávez e tampouco Lula afetaram o estoque ou o fluxo da riqueza dos 20% mais ricos de seus respectivos países. Mesmo assim são caçados implacavelmente.
Chávez que venceu meia dúzia de eleições e plebiscitos é repugnado como um ditador grotesco; Lula é tratado como um meliante por Serra que o acusa de ‘poderoso chefão’ –da quadrilha do dito ‘mensalão’.
Jesse Chacon, ex-ministro das Comunicações venezuelano, um quadro qualificado do país, em recente entrevista ao jornal Valor, admite que o modelo ancorado sobretudo em políticas de transferência de renda flerta com o esgotamento.
O diagnóstico se assemelha ao dos conservadores, mas as conclusões se bifurcam. Chacon evoca o passo seguinte da história. Chama a atenção, por exemplo, para os efeitos políticos de programas de acesso ao consumo que não alteram a lógica do consumismo capitalista.
Dá a entender que drones como Capriles levitam nessa corrente de ar que sopra permanente insatisfação material e psicológica.
Chávez desfruta de uma válvula de escape não reproduzível: a Venezuela tem as maiores reservas de petróleo pesado do mundo (230 bi de barris); o caixa da PDVSA dilata seu horizonte político apesar da ira da elite, que antes ficava com todo o resultado da empresa. Mesmo assim, há limites no bombeamento da estatal,cuja infraestrutura se ressente de investimentos pesados.
Nos demais países o poço é bem mais raso. A inércia da desigualdade não será vencida sem políticas de renda que alterem a posse do estoque da riqueza já existente. Alterar a carga fiscal é o primeiro passo; na América Latina ela não excede a média de 18% do PIB. No Brasil é quase o dobro; mas cai substancialmente se contabilizados incentivos e renúncias fiscais.
Pior que isso: aqui, como na maior parte da AL, a receita disponível provém de uma base que acentua desigualdades em vez de corrigi-las. Na média regional, mais de 50% da receita do Estado é baseada em impostos indiretos, pagos de forma linear por toda população com efeito socialmente nulo ou regressivo.
O ciclo progressista da AL pode estar batendo no teto de suas ferramentas, mas está longe – muito longe – de ter esgotado a sua pertinência histórica.
Para ir além, todavia, talvez necessite renovar o instrumental com uma novafamília de políticas e contrapesos. Os drones está chegando: independente dos resultados dia 7, Capriles antecipa o esquadrão que aprendeu a jogar no campo do adversário.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br