Por João Paulo Charleaux.
O governo do Chile anunciou nesta segunda-feira (8) o lançamento de um programa chamado Armazéns do Chile, que injetará o equivalente a US$ 1,5 milhão em pequenos negócios que tentam sobreviver ao avanço dos hipermercados e das grandes cadeias de negócios no país.
Embora as principais justificativas sejam econômicas – como a geração de emprego e renda – o programa traz consigo variáveis incomuns e menos tangíveis em iniciativas do gênero, tais como a identidade de bairro, o fomento às relações interpessoais, a preservação do patrimônio material e imaterial, o fortalecimento das organizações comunitárias e a simples ideia de que as relações comerciais podem trazer para o cotidiano outras trocas além da compra e venda de produtos.
A presidente do Chile, Michelle Bachelet, realçou essas características no lançamento do programa, ao visitar um pequeno negócio na capital, Santiago, acompanhada pelo ministro da Economia, Luis Felipe Céspedes.
“O armazém é um ponto não apenas de intercâmbio comercial, mas também de vida social, onde os vizinhos se juntam, se encontram, conversam, combinam a pelada [jogo de futebol], a reunião da associação de moradores ou uma visita a alguém.”
Cidades mais humanas
Quando comparada a grandes cidades brasileiras como São Paulo e Rio de Janeiro, Santiago tem uma urbanização muito menos densa, com enormes manchões ainda ocupados quase exclusivamente por casas e edifícios baixos.
A capital chilena é dividida em comunas. O nome se refere a um tipo de divisão político-geográfica maior que um bairro e menor que uma cidade, semelhante a algumas subprefeituras paulistanas, mas com “alcalde” (espécie de prefeito) eleito por voto direto.
Essa dinâmica política em escala reduzida favorece o debate dos assuntos locais, de interesse imediato dos moradores daquela “comuna” específica. Outro fator que impulsiona a ideia de comunidade é a existência de um grande número de parques públicos e outras áreas de convivência comum, mesmo nos bairros localizados fora do centro.
É nesse contexto de afirmação da cultura local que os pequenos comércios de bairro lutam para sobreviver ao avanço das redes de hipermercados. Frequentemente, esse comércio é mantido por uma única família há muitos anos no mesmo local e funciona como referência de vida comunitária, preservando muitas vezes aspectos arquitetônicos de construções mais antigas, que as novas redes se apressam em padronizar detrás de outdoors e outros recursos modernos de identidade visual, que descaracterizam o entorno e dão uniformidade ao comércio.
Curso, dinheiro e conselhos
O plano do governo é apostar na capacitação técnica dos donos desse tipo de negócio, oferecendo também uma assessoria personalizada e subsídios equivalentes a até US$ 3 mil para financiar projetos de melhoria apresentados pelos proprietários.
Além disso, o governo anunciou a unificação de vários tributos e a criação de um sistema on line de emissão de notas fiscais, para desburocratizar o setor.
10%
de todas as empresas abertas no Chile atualmente são pequenos armazéns de bairro
20%
de todos os empregos gerados pelas microempresas chilenas estão nos armazéns de bairro
‘Pequeno x grande’ é debate antigo
A tentativa de reafirmar o valor do pequeno comércio frente às linhas de produção dos grandes mercados é um debate que se apresenta com força entre sociólogos, urbanistas e economistas de várias partes do mundo, pelo menos, desde os anos 1970.
Um dos clássicos desse assunto é o livro “Pequeno é bonito – Um estudo da economia como se as pessoas importassem” (em tradução livre do título original “Small Is Beautiful: A Study of Economics As If People Mattered”, do economista britânico Ernst Friederich “Fritz” Schumacher.
Na esteira do feminismo e de outras transformações sociais similares do pós-guerra, o autor critica o “gigantismo” como valor, que leva à desumanização das relações econômicas e, em consequência, da própria vida das pessoas. Segundo o suplemento literário do jornal britânico “The Times”, o livro de Schumacher era considerado nos anos 1970 um dos cem mais influentes publicados desde a Segunda Guerra Mundial (1945).
Na época, a produção em série e o avanço tecnológico favoreciam a ideia do “quanto maior, melhor”, e as grandes marcas se expandiam pelo mundo, desafiando as economias locais.
Madeleine Bunting, colunista do jornal britânico “The Guardian” e filha de um pequeno comerciante de Yorkshire, leu o livro de Schumacher aos 13 anos e, num texto publicado em 2011, revisitou alguns conceitos. Ela considera que “o grande” venceu, mas deixou como legado uma narrativa sedutora sobre o valor intrínseco do “pequeno”, à qual as mega corporações recorrem atualmente para incorporar valor à própria imagem.
“Marcas de nicho como a The Body Shop no Reino Unido ou a Ben & Jerry’s nos EUA tentam construir um modelo ‘pequeno é bonito’ de empresa que põe o relacionamento, o artesanal e o ambiente no coração de suas formas de trabalhar”, diz Madeleine Bunting.
“O pequeno se tornou ‘cool’ mas apenas como parte de uma estratégia de marca que mascara a concentração dos poderes político e econômico que está em curso. O gigantismo triunfou”, conclui.
Schumacher defendia que as cidades não excedessem 500 mil habitantes, mas hoje vivemos em megalópoles de mais de 2 milhões. A mudança demográfica parece inevitável, mas a forma como os governos fomentam certos setores e protegem certas culturas ainda são objeto de disputa e de debate, como a iniciativa chilena sugere.
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Fonte: Nexo Jornal.