Por Carlos Drummond.
A recessão, a política de austeridade e a reforma trabalhista resultaram em aumento da oferta de mão de obra e queda significativa do seu custo, mas, ao contrário do esperado por empresários e governo, essa redução específica não elevou a competitividade do País, mostra o relatório Competitividade Brasil 2017-2018, da Confederação Nacional da Indústria, divulgado na terça-feira 13.
Na análise de nove fatores, só a Argentina é menos competitiva que o Brasil, revelou a comparação que incluiu ainda África do Sul, Austrália, Canadá, Chile, China, Colômbia, Coreia do Sul, Espanha, Índia, Indonésia, México, Peru, Polônia, Rússia, Tailândia e Turquia.
O potencial competitivo da economia brasileira foi avaliado tomando por base sua posição diante dos demais países quanto a disponibilidade e custo de mão de obra, disponibilidade e custo de capital, infraestrutura e logística, peso dos tributos, ambiente macroeconômico, competição e escala no mercado doméstico, ambiente de negócios, educação e tecnologia e inovação.
O Brasil avançou sete posições em disponibilidade e custo de mão de obra, da 11ª para a 4ª posição, e perde só para Indonésia, México e Turquia. Na comparação desse item o estudo leva em conta os níveis de remuneração total do trabalhador na indústria manufatureira por hora de trabalho (salários mais benefícios complementares) e o PIB industrial por pessoa ocupada na indústria.
No que se refere a condições desfavoráveis à concorrência, o País continua quase invencível, mostra o relatório: “O Brasil apresenta a mais alta taxa de juros real de curto prazo e o maior spread (diferença entre a taxa de remuneração dos depósitos recebidos pelos bancos e aquela que cobram pelos empréstimos concedidos) e está em último lugar em custo e disponibilidade de capital. Em ambiente macroeconômico, registra a maior despesa com juros incidentes sobre a dívida do governo e a segunda menor taxa de investimento da economia. Em ambiente de negócios, obtém a pior colocação em pagamentos irregulares e subornos, transparência das decisões políticas, facilidade em abrir uma empresa e regras trabalhistas de contratação e demissão”.
No fator tecnologia e inovação, prossegue a pesquisa da CNI, a redução do apoio governamental resultou em perda de posições (da 11ª em 16 países para a 13ª em 17). O corte de verbas na área, cabe acrescentar, foi um dos efeitos da política de austeridade do governo, com a supressão de recursos públicos em várias áreas importantes.
Em infraestrutura e logística caiu duas posições e passou a ocupar o penúltimo lugar. Cabe mencionar a influência da Operação Lava Jato, tanto por prolongar por anos a proibição dos contratos entre construtoras e Estado quanto por inviabilizar na prática os acordos de leniência, instrumentos de uso amplo no resto do mundo e que permitiriam a retomada das operações das empresas e, com isso, a continuidade ou o início da obras públicas indispensáveis.
Piorou também o indicador que mede o acesso da população às tecnologias da informação e comunicação. Em logística internacional, a Argentina, última colocada na classificação geral, ultrapassou o Brasil no indicador que mede o custo do processo logístico para exportar e importar. Nos demais subfatores, infraestrutura de transporte e infraestrutura de energia, manteve-se em último lugar, e também nesses quesitos está mais atrasado que o país vizinho.
Quanto aos ambientes macroeconômico e de negócios, o País recuou uma posição, para o último lugar, e ficou, portanto, abaixo da Argentina também nesses dois quesitos. “No primeiro fator, destaca-se a menor depreciação da moeda brasileira, com a perda de oito posições na variável taxa de câmbio real. No segundo fator, o Brasil registrou mudança apenas na variável execução das normas jurídicas (da 11ª para 10ª), mantendo-se na última colocação na maior parte das variáveis associadas ao fator”, sublinha o relatório.
Coreia do Sul, Espanha, Canadá e Austrália, ocupantes das quatro primeiras posições em produtividade do trabalho na indústria (o Brasil ficou em oitavo lugar), caem para as últimas posições no subfator custo da mão de obra. “O resultado reflete a baixa competitividade desses países na variável nível de remuneração do trabalhador, com custos de compensação por hora muito superiores aos observados nos países mais bem posicionados”, explicam os autores do estudo. Conclui-se que austeridade, recessão e reforma trabalhista combinadas conduziram o País à série A dos baixos salários e ao mesmo tempo o afastaram da premier league da produtividade do trabalho na indústria.
Não se trata de um destino natural e inevitável, mas de um retrocesso da condição de país com a indústria um dia situada entre as mais importantes do mundo (em 1973, o peso do valor adicionado pela manufatura ao PIB superava o de França e Estados Unidos) para a tragédia da desindustrialização precoce. A competitividade em baixo custo de mão de obra, em vez de restituir à economia a honrosa posição ocupada décadas atrás, nivela o País com México, Turquia e Indonésia, vê-se no levantamento da CNI.
As propostas do governo brasileiro centradas na ideia de ganhos de competitividade por meio de reformas no mercado de trabalho e na estrutura de proteção social revelam uma dimensão regressiva, em se tratando de um país continental, analisam os economistas Anselmo Luis dos Santos e Denis Maracci Gimenez, do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho do Instituto de Economia da Unicamp (Cesit).
“Indicam uma estratégia limitada de inserção nas cadeias globais de valor, pois fundada em atividades ligadas à produção de alimentos, bebidas, têxteis e calçados, entre outros. Isso significa que o governo considera prioritário o País participar do processo de concorrência global em setores produtivos menos dinâmicos e tecnologicamente mais precários, intensivos em mão de obra, diante de competidores estabelecidos,em geral, asiáticos periféricos, com uma estrutura econômica e social mais ajustada à concorrência nesses segmentos”, chamam atenção no artigo “Desenvolvimento, Competitividade e Reforma Trabalhista”.
A condução do governo implica ênfase à competição nos segmentos “mais primitivos”, dizem, em que os salários têm grande peso no preço final dos produtos. Optou por concorrer diretamente com Indonésia, Bangladesh, Vietnã, Paquistão e assemelhados. “A orientação escolhida impõe a necessidade de radicalização de uma estratégia de ‘competitividade espúria’, o que colocaria em xeque a organização econômica e social do País e a própria potência de um mercado interno de dimensões continentais”, alertam os economistas.
A ‘competitividade espúria’, na definição da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) da ONU, é aquela centrada em baixíssimos salários e produtos de reduzido valor agregado. Essa é a base do mercado mundial de alimentos, bolas de futebol, calçados esportivos, roupas baratas e similares, protagonizado por aqueles países.
Os formuladores da política econômica parecem, entretanto, comprometidos com a realidade de outro país, diferente daquele de renda média e indústria ainda relevante, com expoentes como a Embraer, terceira maior fabricante de aviões no planeta, e a Petrobras, uma das maiores empresas petrolíferas do mundo e pioneira na tecnologia de ponta para exploração de óleo e gás em águas profundas.
Em vez de adotarem políticas industriais, de juros e de câmbio favoráveis ao avanço do setor manufatureiro representado por aqueles gigantes, optam pela competição global em arrocho salarial. Um equívoco imenso que imporá sacrifícios por gerações, alertam muitos especialistas.
“Ao contrário dos países de renda baixa, que podem crescer transferindo mão de obra de setores menos produtivos para outros mais produtivos, países de renda média e que contam com um setor industrial de considerável complexidade, caso do Brasil, têm de fazer uma transição para setores mais intensivos em tecnologia, como química fina, máquinas, equipamentos elétricos e eletrônicos e equipamentos de transporte”, afirmam os economistas Igor Rocha, Venilton Tadini e Guilherme Magacho no artigo “Por uma política pró-competitividade para a indústria”.
A transição para setores de média e alta tecnologia, detalhou Rocha aCartaCapital, requer a combinação de ações dos setores público e privado: “As trajetórias bem-sucedidas de mudança estrutural mostram que o arcabouço institucional importa e muito para o sucesso do setor privado, mas é insuficiente diante uma estrutura tributária e de infraestrutura atrasada, bem como uma política macroeconômica, câmbio e juros, incompatíveis com qualquer política pública de fomento a esses setores. Não dá para falar em aumento da produtividade sem equacionar todas essas questões. Produtividade e, consequentemente, crescimento estão ligados a composição setorial da produção”.
Governo e parte dos economistas “descem na contramão, empenhados em ressaltar as benesses econômicas decorrentes da precarização do mercado de trabalho”, analisam Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo no artigo “Sobre salários e empregos”.
Alguns afirmam, prosseguem os economistas, que os efeitos recessivos do ajuste econômico poderiam ser suavizados pela elevação do trabalho informal. “Seus ‘testes empíricos’ indicam que os resultados do ajuste são melhores em economias com alto grau de informalidade, pois conferem ao desempregado a ‘possibilidade de manter’ o nível de consumo no exercício de uma atividade informal.
Outros, compungidos, insistem em celebrar uma rápida queda do salário real. Na visão de suas doutrinas, quanto maior e mais rápida for a queda do salário real, menor será o aumento do desemprego. Conforme nossos merencórios especialistas, nas economias de mercado as tristezas do desemprego pesam trágica e inevitavelmente sobre os lombos dos assalariados. Perversidade absolutamente suportável nos confortáveis escritórios dos especialistas e comentaristas.
Nesses ambientes refrigerados, a fé na interação ‘virtuosa’ entre a queda dos ganhos e a preservação das ocupações não é abalada pela observação do movimento que leva de cambulhada para o despenhadeiro o emprego e os salários no mercado de trabalho tupiniquim”.
Os autores remetem a Robert Reich, secretário de Trabalho no governo Clinton, que publicou uma carta aberta aos republicanos endereçada aos capitães da indústria americana e titãs de Wall Street que financiam o partido: “Você se esqueceu que os seus trabalhadores são também consumidores. Assim, ao mesmo tempo em que empurrou os salários para baixo, espremeu também seus consumidores, tão apertados que eles dificilmente podem comprar o que você vende”.
Um fato inegável é que o decantado aumento de produtividade, indispensável para o País sair das últimas colocações na maratona da competitividade, depende do crescimento dos investimentos, mas nesse aspecto a economia continua muito mal. O reduzido valor dos investimentos públicos realizados em janeiro, de 892 milhões de reais, “é o menor para este mês desde 2004, um nível tão baixo que não passa de 0,2% do PIB mensal”, sublinha o economista Sergio Wulff Gobetti, em análise divulgada nas redes sociais.
Apostar em uma retomada a partir só de investimentos relevantes e contínuos da iniciativa privada é ignorar a importância dos aportes públicos enquanto desencadeadores dos desembolsos de empresários, mas é também desconsiderar as mudanças profundas dos princípios norteadores da alocação de recursos das corporações, a começar pelos Estados Unidos, modelo seguido na América Latina.
“Nas décadas do Pós-Guerra, as empresas retinham lucros e investiam em capacidades produtivas, incluindo, em primeiro lugar e acima de tudo, aquelas dos funcionários que, ajudando a tornar a companhia mais produtiva e competitiva, se beneficiaram na forma de maiores rendimentos e mais segurança no emprego”, diz William Lazonick, professor da Universidade de Massachusetts Lowell no texto “Marketization & Financialization”.
Desde o fim da década de 1970, entretanto, houve um fosso crescente entre os aumentos da produtividade e dos salários reais. Essa lacuna, analisa o economista, é em grande parte o resultado de uma mudança do modelo de alocação de recursos corporativos de “reter e investir lucros” para outro de “enxugar (downsize) a empresa e distribuir lucros”, em que executivos buscam oportunidades para diminuir a força de trabalho, visando com frequência ganhos puramente financeiros.
Inúmeras empresas fecharam fábricas, demitiram trabalhadores experientes e geralmente mais caros, deslocaram sua produção para países de baixos salários simplesmente para aumentar os lucros com frequência à custa das capacidades de longo prazo das companhias, prossegue Lazonick.
Além disso, à medida que essas mudanças se incorporaram à estrutura do emprego, as corporações deixaram de investir na criação de novos postos de trabalho de maior valor adicionado em escala suficiente para embasar o crescimento equitativo e estável na economia como um todo. Desde o início dos anos 1980, a racionalização, a “marketização” e a globalização reforçaram a tendência descrita de enxugar as firmas e distribuir os lucros em vez de investi-los.
Uma roda da fortuna que a poucos beneficiou além das instituições financeiras e dos executivos das corporações, estes com ganhos proporcionais à valorização das ações, quase sempre em alta por força de recompras volumosas determinadas por eles próprios.