Por Rafael Iandoli.
Lagos é a maior e mais importante cidade da Nigéria, segunda principal economia africana. Lá, até alguns anos atrás, qualquer turista brasileiro teria dificuldade em acreditar que estava fora de sua terra natal ao chegar na região conhecida como “Brazilian quarter” (bairro brasileiro, em inglês).
O local ficou conhecido por, historicamente, abrigar prédios que reproduzem perfeitamente a arquitetura brasileira desenvolvida durante o período colonial – especialmente no início do século 19 -, restaurantes que servem feijoada como prato principal, famílias de sobrenomes como “Da Silva”, “Martins” e “Campos” falando português, e desfiles de carnaval acontecendo todo ano.
Isso se deu porque negros escravizados no Brasil – alguns africanos, alguns já nascidos na América – se estabeleceram na Nigéria, colônia britânica que tinha o inglês como língua oficial, após conquistarem a alforria e retornarem à África, ao longo da segunda metade do século 19.
3.221 brasileiros viviam em Lagos segundo censo de 1888. A população total era de 37.458
Mas, nas últimas décadas, a especulação imobiliária e a negligência com o patrimônio histórico deixado pelos “agudás” (forma como ficou conhecida a comunidade de escravos libertos brasileiros na Nigéria) têm ameaçado a existência da herança cultural brasileira em Lagos, que está pouco a pouco desaparecendo.
A herança imaterial, como a língua, a culinária e os costumes, já é difícil de ser encontrada nos dias atuais. Um desaparecimento que está ligado ao gradual sumiço do legado físico. Os prédios de colunas ornamentais, varandas e janelas em arcos, que se destacam pela singularidade em meio à arquitetura local, estão sendo substituídos por arranha-céus – símbolos do desenvolvimento econômico vivido pelo país depois de tornar-se independente, em 1960 – ou reformados para se enquadrarem no modelo prático dos prédios nigerianos comuns.
“Os filhos dos donos desses prédios [de arquitetura brasileira] também não ajudam. Muitos deles não dão valor aos monumentos históricos em que vivem”
Oficial do Ministério do Turismo de Lagos, em anonimato
Em entrevista ao “Daily Mail”
Demolição da ‘Casa do Fernandez’ é o caso mais marcante
O episódio que melhor materializa o desaparecimento gradativo do legado brasileiro em Lagos é a demolição do prédio conhecido como “Casa do Fernandez”, ou “Ilojo Bar”.
Construído em 1856 por ex-escravos brasileiros repatriados na África, continha algumas das principais características da arquitetura do Brasil, com pilastras ornamentais, varandas e janelas em arcos. Propriedade da família Fernandez, de origem brasileira, até 1933, foi então comprada pelos Olaiya e transformada em um famoso bar e loja de instrumentos musicais.
Um dos únicos prédios de arquitetura brasileira considerados patrimônio histórico pela Comissão Nacional de Museus e Monumentos, foi derrubado na manhã do último dia 11 de setembro.
Segundo os proprietários, a estrutura do prédio estava seriamente danificada e, após notificar o governo diversas vezes e não conseguir resposta, conseguiram autorização da Agência de Controle Predial do Estado de Lagos para demoli-lo. Já para o Museu Nacional em Lagos, a demolição foi ilegal.
Segundo reportagem da “Folha” em 2008, o prédio recebeu a visita de um técnico do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) brasileiro, que atestou o valor histórico e arquitetônico do local, sugerindo que o governo do Brasil comprasse o imóvel e o transformasse em um Centro Cultural. Contudo, o Itamaraty considerou que o valor, de US$ 600 mil, era muito alto, e desistiu do plano.
Agora, grupos da sociedade civil, como o “Legacy 1995”, se organizam para denunciar a demolição e demandam a reconstrução do prédio em seu formato original.
Em conversa por e-mail com o Nexo, Sola Akintude, vice-presidente da Legacy 1995, explicou como pretende viabilizar a reconstrução.
“Muito esforço foi feito para restaurar o prédio entre 2010 e 2012. Fizemos um relatório de restauração, apoiado pela família dona [da propriedade], o Consulado Brasileiro e o Conselho de Artes do Estado de Lagos. [Temos] desenhos com as medidas do prédio e estamos preparando um evento para arrecadar fundos.”- Sola Akintude, Vice-presidente da Legacy 1995.
Akintude também disse que tem encontro marcado com o diretor geral da Comissão Nacional para Museus e Monumentos da Nigéria e pretende levar o caso à Justiça.
Nem brasileiros, nem nigerianos
O enclave brasileiro surgido em uma cidade dominada pela colonização britânica não surpreende. Quando viviam no Brasil, os negros eram marginalizados e excluídos de qualquer possibilidade real de ascensão social, mesmo após libertos do trabalho escravo.
Nesse contexto, era natural o desejo de voltar para a África, mesmo entre aqueles que já nasceram no Brasil, como forma de resgatar as raízes e o sentimento de pertencimento.
Mas essa população já havia internalizado costumes desenvolvidos no Brasil, e até mesmo o sincretismo, que misturava crenças católicas e práticas do candomblé. Com isso, a “hibridização” de suas identidades fez com que não pertencessem em totalidade nem ao Brasil, nem à África, gerando um isolamento da comunidade africana local.
Surgiu então a comunidade “agudá” de brasileiros retornados, símbolo da diáspora africana. Falavam português e viviam com costumes diferentes dos locais.
“A persistência de costumes brasileiros ao longo das décadas, assim como o uso de sobrenomes aqui adotados e da língua portuguesa eram a cola que ligava os agudás, simultaneamente marcando-os como estrangeiros em relação ao resto da sociedade de Lagos”.- Lisa Earl Castillo, em seu trabalho acadêmico “Os Agudás de Lagos: Brasil, Cuba e Memórias Atlânticas”.
A escolha da cidade de Lagos também não foi por acaso. Conforme explica Lisa Castillo em seu trabalho (citado acima) de pós-doutorado em história afro-brasileira pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), a região tornou-se um protetorado britânico em 1861, ou seja, passou a ser especialmente protegido pela colônia, o que praticamente impossibilitou o tráfico de escravos saindo dali. A cidade tornou-se então um “porto seguro” para negros ex-escravos que não queria ser capturados para exportação novamente.
Fonte: NEXO.