Por que Bolsonaro cita ex-presidenta golpista da Bolívia Jeanine Añez ao expressar preocupação com seu futuro

Foto: Aizar Raldes / AFP

Por Mariana Sanches, BBC.

“Sei que vocês estão chateados e tristes. Esperavam outra coisa. Eu também”, disse o presidente Jair Bolsonaro na noite do dia 2/11, em um vídeo no qual pedia que seus apoiadores desobstruíssem as rodovias do país, ainda bloqueadas em centenas de pontos 72 horas após a derrota eleitoral dele para Lula no último domingo, 30/10.

Embora diga que não esperava a derrota, Bolsonaro já expressava temor sobre qual poderia ser o seu futuro caso perdesse as eleições mais de 6 meses antes da disputa eleitoral.

Bolsonaro demonstrou essa preocupação ao se comparar diretamente em ao menos cinco ocasiões públicas com a ex-presidente interina da Bolívia Jeanine Áñez, presa e condenada a dez anos de prisão por “promover um golpe de Estado”, segundo decisão da Justiça boliviana de 2022.

A isenção da Corte para julgar Áñez foi questionada pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Bolsonaro acompanhou com atenção o processo judicial de Áñez e chegou a oferecer asilo político para ela no Brasil, o que Áñez recusou.

Sem reconhecer textualmente sua derrota nas urnas e diante de manifestações de apoiadores que pedem por um “golpe militar” e têm causado caos para a população ao bloquear mais de 400 pontos de rodovias, Bolsonaro poderia estar tentando driblar qualquer possibilidade de responsabilização legal pelos atos sem, no entanto, frustrar sua base popular, segundo analistas.

“Bolsonaro participou de uma forma ou de outra na consolidação do poder de Áñez, que agora já foi indiciada, presa e condenada, tanto por questões de direitos humanos quanto por golpe. Até que ponto Bolsonaro teme que algo parecido aconteça com ele? Acho que provavelmente bastante”, afirma Guillaume Long, analista político do Center for Economic and Policy Research e ex-ministro das Relações Exteriores do Equador, que atuou como observador das recentes eleições no Brasil e estudou em detalhes o caso boliviano, que em sua avaliação tratou-se de um golpe de Estado contra Morales.

Para Long, as preocupações de Bolsonaro e o paralelo que ele traça fazem sentido.

“Até porque a Justiça brasileira, enquanto Bolsonaro esteve no poder, já o contrariou algumas vezes, o que não foi o caso na Bolívia, em que o Judiciário sob Áñez mostrou pouca independência em relação ao Executivo. E o fato de ele ter governado de maneiras que são problemáticas em termos jurídicos em várias áreas, com uma série de investigações já abertas contra si, e para adicionar a isso, um certo comportamento antidemocrático, acaba por gerar uma situação ameaçadora para ele”, analisa Long.

Mas afinal, de que maneiras, as histórias de Jair Bolsonaro e Jeanine Áñez se parecem?

Bolsonaro X Jeanine

A política conservadora e de direita Jeanine Áñez ocupou a presidência da Bolívia entre 2019 e 2020 após a renúncia do então presidente Evo Morales em meio a uma crise política.

O processo de convulsão social e política que levou Jeanine ao poder em nada lembra a chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto.

O atual presidente brasileiro foi democraticamente eleito em 2018, ao derrotar no segundo turno o candidato petista Fernando Haddad, que publicamente reconheceu a derrota um dia após a proclamação dos resultados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Já Jeanine chegou ao poder depois que o presidente Evo Morales, seu vice-presidente, o presidente da Câmara e o do Senado renunciaram coletivamente, em novembro de 2019, e deixaram o país sob explícita determinação das Forças Armadas bolivianas para que abdicassem do poder.

Desfeita a ordem sucessória, Jeanine, então vice-líder do Senado, anunciou em lágrimas que estava disposta a atuar como presidente interina, segundo ela, “para acabar com o vandalismo e as mortes (nas ruas) “.

Foi o desfecho para uma crise que durou três semanas, iniciada com a reeleição de Morales para seu quarto mandato e que arrastou o país para violentos conflitos civis nas ruas.

Para concorrer, Morales contrariou o resultado de um referendo popular de 2016, no qual a maioria da população votou contra a reforma da Constituição para possibilitar que o líder cocaleiro voltasse a disputar a presidência. Morales já estava há 14 anos no poder. Uma decisão da Corte Constitucional do país, no entanto, revogou os limites do mandato, o que assegurou a possibilidade de que Evo concorresse. Ao fim do pleito, ele foi proclamado o vencedor.

Porém, inúmeras acusações de fraude eleitoral contra Morales pipocaram pelo país e ganharam força quando a Organização dos Estados Americanos (OEA), que atuou como observadora eleitoral, as endossou, citando inclusive um servidor secreto supostamente programado para fazer Morales vencer.

As conclusões deram força a manifestações da oposição na rua que receberia o endosso decisivo dos militares. E também minaram o apoio internacional a Morales. O governo Bolsonaro, a gestão dos EUA sob Trump e outras administrações de direita na América Latina apoiaram as denúncias da OEA. O então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, disse que a fraude na eleição boliviana foi “clara como a água”.

Evo Morales sempre repetiu que o processo era um golpe de Estado. Meses após sua renúncia, um estudo de pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), outro do do Center for Economic and Policy Research e um terceiro feito por acadêmicos da Universidade da Pensilvânia com dados eleitorais da Bolívia obtidos pelo jornal americano The New York Times desmentiram os achados do relatório da OEA. A organização, porém, manteve suas conclusões iniciais.

Quase um ano após a renúncia de Morales, novas eleições presidenciais sacramentaram seu candidato, Luis Arce, como vencedor ainda em primeiro turno.

A partir daí, se iniciam os processos judiciais que prenderam Jeanine Áñez — encontrada pela polícia escondida dentro de uma cama box em sua casa — e a condenaram.

Jamais uma Jeanine

“Tenho certeza: eu jamais serei uma Jeanine. Jamais. Porque, primeiro, eu acredito em Deus e, depois, eu acredito em cada um de vocês que estão aqui. A nossa liberdade não tem preço. Digo mais, como sempre tenho dito: ela é mais importante que a nossa própria vida”, disse Bolsonaro, em Brasília, em abril de 2022, quando Jeanine já estava presa, mas ainda faltavam dois meses para sua condenação final.

Quando um veredito contra Jeanine foi alcançado na Justiça boliviana, Bolsonaro se pronunciou publicamente sobre a tentativa de trazê-la ao Brasil, o que estremeceu a relação com o governo do país, que considerou o esforço de Bolsonaro uma ingerência em assuntos domésticos da Bolívia.

“Continuamos a conversar. O que for possível eu farei para que ela (Jeanine) venha para o Brasil caso assim o governo da Bolívia concorde. Estamos prontos para receber o asilo dela, como desses outros dois (aliados de Jeanine) que foram condenados a 10 anos de cadeia”, disse Bolsonaro. A própria Jeanine recusou a oferta por se dizer “inocente” e querer permanecer em seu país.

Em junho, em visita a Orlando, nos Estados Unidos, Bolsonaro traçou claros paralelos entre Jeanine e ele próprio.

“A turma dela perdeu (as eleições), voltou a turma do Evo Morales. O que aconteceu um ano atrás? Ela foi presa preventivamente. E agora foi confirmado dez anos de cadeia para ela. Qual a acusação? Atos antidemocráticos. Alguém faz alguma correlação com Alexandre de Moraes e os inquéritos por atos antidemocráticos? Ou seja, é uma ameaça para mim quando deixar o governo?”, questionou em junho de 2022, em visita a Orlando.

Bolsonaro colecionou embates com o Supremo Tribunal Federal (STF), chegou a participar de atos que pediam o fechamento daquele Poder e viu aliados investigados, denunciados e presos por atos antidemocráticos em processos liderados pela corte.

Ao ficar sem mandato, em 1º de janeiro, o presidente perderá também o foro privilegiado que possui há décadas e, portanto, passará a responder a processos na Justiça comum.

Atualmente, há quatro inquéritos autorizados pelo STF em que Bolsonaro é investigado por suspeitas de diferentes crimes, como a divulgação de notícias falsas sobre a vacina contra covid-19 (INQ 4888), o vazamento de dados sigilosos sobre ataque ao TSE (INQ 4878), o espalhamento coordenado de notícias falsas e a possível interferência na Polícia Federal (INQ 4831).

Há ainda as acusações de crimes feitas pela CPI da Covid, que estão em apuração pela Procuradoria Geral da República.

Três semanas

O que acontecer com os manifestantes pró-Bolsonaro nas ruas até o fim do atual mandato presidencial também poderá ser determinante para o futuro do capitão reformado.

Nas redes sociais, seus apoiadores têm relembrado a renúncia de Morales como uma espécie de exemplo motivacional do que suas ações poderiam gerar. “Em três semanas derrubaram Evo Morales, os protestos não podem ser de um único dia…”, postou um perfil de apoio a Bolsonaro no Twitter com dezenas de milhares de seguidores.

“Lula e o STF não têm o apoio dos militares, os movimentos se avolumam no Brasil e força humana nenhuma será capaz de conter. Me lembra a queda de Morales”, postou outro usuário, que se identifica como pastor evangélico.

Para Long, no entanto, as situações são muito diferentes. Primeiro, porque a própria OEA já publicou um relatório preliminar de observação eleitoral no Brasil em que descarta a possibilidade de fraude na eleição de Lula, assim como já fizeram outros observadores internacionais, o Tribunal de Contas da União e até mesmo as Forças Armadas. Na Bolívia, a denúncia de fraude eleitoral pela OEA foi determinante para a renúncia de Morales.

Segundo porque a comunidade internacional imediatamente reconheceu a vitória do petista, demonstrando que não há apoio para questionamentos sobre a lisura do pleito.

“No caso da Bolívia, Evo estava sendo visto como alguém com um comportamento antidemocrático, por tentar um novo mandato, e isso o enfraqueceu politicamente internacionalmente. Obviamente, isso não justificaria um golpe de Estado como o que ocorreu contra ele. No Brasil, quem é visto como antidemocrático é Bolsonaro”.

A atuação dos bolsonaristas pró-intervenção militar podem, no entanto, trazer implicações criminais para Bolsonaro caso fique provado que ele teve alguma atuação para a promoção de tais atos. Segundo Long, a condição de Bolsonaro nesse caso poderia ser análoga à de Trump, que enfrenta investigações por seu papel na invasão do Congresso dos EUA, em 6 de janeiro de 2021.

O ato de estimular comportamento golpista é em si um crime. O artigo 286 do Código Penal brasileiro também prevê detenção de três a seis meses, ou multa pra “quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade”.

A Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais (FenaPRF) e os Sindicatos dos Policiais Rodoviários Federais divulgaram uma nota antes dos pronunciamentos de Bolsonaro no qual afirmaram que o silêncio do presidente estaria “estimulando uma parte de seus seguidores a adotar ações de bloqueios nas estradas brasileiras”.

Bolsonaro e seus aliados têm tentado desvincular o presidente das manifestações. “Aplausos de pé a todos os brasileiros que estão nas ruas protestando, espontaneamente, contra a falência moral do nosso país! Confiem no Capitão!”, postou o senador Flávio Bolsonaro, caracterizando as ações como orgânicas.

“Eu quero fazer um apelo a você, desobstrua as rodovias, isso daí não faz parte, no meu entender, dessas manifestações legítimas. Outras manifestações vocês estão fazendo pelo país todo, em praças, faz parte. E, deixo claro, vocês estão se manifestando espontaneamente”, afirmou o próprio Bolsonaro no vídeo que postou no dia 2. O post do presidente nas redes sociais foi inundado por comentários com fotos de camas box, em referência ao esconderijo de Jeanine.

“Suspeito que Bolsonaro está buscando ser legalmente cauteloso para não ser acusado de ser golpista, o que contraria a Constituição e poderia ter fortes repercussões legais contra ele. Creio que o exemplo de Trump deve estar na cabeça dele. Então, ele está tentando legalmente se proteger ao não convocar explicitamente uma insurgência. Mas, por outro lado, ele está dizendo à sua base ‘estou com você, apenas não bloqueie as estradas’. Ele está sendo muito ambíguo em sua linguagem. Está preocupado em perder o apoio de sua base popular, que ficará desapontada com seu líder, que não está lutando o suficiente aos olhos deles. Mas, ao mesmo tempo, ele está preocupado com essas consequências legais que ele pode enfrentar”, resume Long.

Cumprindo a pena, Áñez reconheceu a vitória eleitoral de Lula ainda na segunda-feira, 1/11, antes de qualquer pronunciamento de Bolsonaro. E pediu que o governo Lula “condene abusos políticos” na Bolívia, na Nicarágua e na Venezuela.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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