Por Giulia Garcia.
Perucas, cílios postiços e quilos de maquiagem. As drag queens se popularizaram nos últimos anos. E essa transição tem um marco: RuPaul’s Drag Race, reality show que tirou a cena transformista do underground e o transformou em fenômeno pop no mainstream. Festas como a Priscilla, a mais conhecida da cena brasileira, trazem artistas que brilham na série norte-americana para performances e, com a visibilidade, impulsionam a cena local, que, claro, vem de muito antes e vai muito além do programa.
Se no imaginário esse universo ainda é visto como masculino e gay, é interessante saber que as mulheres formam 50% do público que costuma estar presente na Priscilla. Na Cover Girl, um dos maiores eventos queer de São Paulo, elas são cerca de 30%. O número de mulheres como público já é relevante e o número de performers mulheres na cena vem aumentando. Mas, ao olharmos para personalidades como Elke Maravilha e Cher, cabe pensar se mulheres fazendo drag são uma novidade ou se é apenas o uso do termo para designá-las que aparece como novidade para o universo feminino.
Além dos palcos
A Cover Girl ficou conhecida por seus concursos. Durante a festa, cinco artistas performam para o público e uma equipe de jurados convidados — que elegem a vencedora da noite. Pelo menos uma das vagas da competição é destinada a mulheres que, com maquiagens e artifícios estéticos, montam personagens: drag kings, drag queers ou lady queens. “Tomamos essa decisão para mostrar que todo lugar pode ser de diversidade. Nós temos uma grande visibilidade, um trabalho reconhecido e que é visto por muitas pessoas. Por que não usá-lo como um espaço político nesse sentido?”, explica Liliane Pereira que, ao lado de Divina Raio-Laser, torna a Cover Girl possível.
A produtora é responsável pela festa e pela websérie Divã da Divina e não escolheu esse emprego apenas para pagar contas. O encanto pela arte drag vem da infância, ao ver Vera Verão na televisão, e foi fortalecido ao conhecer Kalil, o artista que faz Divina. “Eu sempre tive vontade de me envolver com esse universo, porque essas personas, além de serem lindas e trazerem toda uma aura muito artística, têm uma força que eu queria muito entender de onde vem”, diz.
Hoje, aos 35 anos, Liliane ocupa um espaço ainda muito masculino no mercado artístico. “As mulheres precisam estar em todos os lugares se assim quiserem. Se você tem vontade, o negócio é botar a cara e fazer”, defende, não só para sua área, mas também em relação às mulheres que performam e trabalham na parte técnica – na Cover Girl, há a sonoplasta Buba Kore, que simboliza a luta das mulheres trans, conquistando espaço mesmo onde a transexualidade ainda é apagada.
Também DJ, modelo, lady queen e criadora da Festa Fejão, Buba ocupou espaços antes impensáveis para transexuais e viu o preconceito se manifestar nos mais inesperados espaços, mesmo em lugares vistos como nichos de liberdade. “Existe muito preconceito por ser drag e me reconhecer como trans. Tem pessoas que acham que eu só posso escolher ser um e como não sou padrão, com peitão e bundão, não me aceitam.”
O excesso de padrões e imposições na cena inquietaram Buba: “Arte não é isso, arte não tem gênero, não tem o que você pode ou não pode fazer. Você pode fazer o que quiser”, explica. Em janeiro de 2016, criou a Fejão, uma festa que se propõe a ser um espaço de liberdade e experimentação da arte drag, sem opressões.
Mas mulher pode ser drag?
“A primeira vez que eu vi um homem vestido de mulher foi num carnaval. Eu tinha 4 anos, achei aquilo incrível”, conta Greta Dubois. A brincadeira carnavalesca é a primeira lembrança que a paulistana tem de seu encanto pela montação. A televisão lhe traria Vovó Mafalda e Vera Verão e o cinema, Priscilla e Para Woong Foo. Porém, a paixão de infância pelas transformações ficou adormecida até 2014, quando um reality show a cativou: RuPaul’s Drag Race.
Pamella Saphic era fascinada por Madonna desde criança. Começou a acompanhar o trabalho dos covers e seguiu o caminho. “Com 14 anos, eu comecei a fazer performance na escola e ninguém entendia nada, porque pensava ‘ué, mas é uma mulher, é um viado, é uma criança, é o quê?’.”
Foi por um grupo na internet que as duas se conheceram e descobriram que drag não era uma arte apenas masculina. As Faux Queens – como eram conhecidas até então – começavam a existir no Brasil. O estigma negativo ainda estava no nome, que as colocava como falsas queens, mas a cena crescente adotaria um termo mais amigável: lady queens. Foi pela irmandade gerada na internet que Greta Dubois, Pamella Saphic e diversas outras drags nasceram em 2015. Com elas, surgiu o coletivo Riot Queens, exclusivamente feminino e com o objetivo de mostrar o papel da mulher na cena.
“Eu sempre quis exagerar na maquiagem e usar saia de tutu na rua, sabe? É uma merda não poder sair assim”, diz Greta. Apesar de parecer algo simples, Palloma Maremoto explica que a questão vai além. Para a queen carioca, a sociedade não cobra que as personas e personagens desse universo sigam os padrões sociais cotidianos. A arte garante uma liberdade maior dos julgamentos.
“Ficava pensando se tinha alguma coisa errada comigo. Eu tive depressão e ansiedade ao longo de toda a minha adolescência, muito por causa dessa dificuldade de me aceitar e de aceitar que a forma que me expresso não é errada, não me faz menos ou mais do que ninguém”, explica Vlada Vitrova. Nascida no interior de Minas Gerais, a jovem de 26 anos teve uma criação conservadora e foi através de sua personagem soviética que ela pôde se encontrar e aceitar.
A arte vem mudando a forma como elas olham para si mesmas. “A gente vê que não precisa ser magra, ter peitão, bundão ou ser homem pra se sentir incrível. A gente olha no espelho e se vê bonita, mas, ao mesmo tempo, sabe que não precisa de tudo isso pra ficar linda”, diz Greta. A mudança na autoestima, ao que parece, não acontece só com quem está nos palcos: “No momento que você vê outras mulheres se aceitando com aquilo, você começa a pensar ‘porque eu não posso ser linda?’. As mulheres drags trazem isso até para as que não querem se montar”, completa.
Mas o tema é dilema para muita gente, como foi para Popia. “Eu conhecia drag, mas vivia num meio muito feminista na faculdade e via como uma coisa de homem. Era uma reprodução desses estereótipos que me aprisionam no papel de mulher, coisas que são ditas como corretivas para nós”, explica. Foi em meninas como Pamella, atualmente sua namorada, que viu como esse fator não invalida a cultura drag. “Eu era incrivelmente feminina. Tinha o cabelo comprido e loiro, usava salto, maquiagem social, corset. Me questionei sobre aquilo e comecei a ser mais masculina e a passar toda aquela feminilidade que eu performava na vida para a personagem”, conta Pamella.
Para Vlada, é justamente nesse ponto que existe a diferença entre um homem e uma mulher drag: “Drag mulher tem muito mais uma intenção de reivindicar o que é a expressão da feminilidade e rever as formas que a sociedade sempre bateu na gente. Estamos vendo que a gente pode sair, fazer o que quiser, passar o quanto de maquiagem quiser e que isso é para nós e não para o homem.”
Nas festas e grupos da cena ainda é possível perceber a invisibilidade. “Eu sinto que pra uma mulher ter um décimo do reconhecimento que um homem tem, ela tem que fazer, no mínimo, o dobro. De trabalho, de esforço, de acabamento, de qualidade, de performance, de maquiagem, tudo”, diz Palloma, que vive de sua renda na cena, atuando como lady queen, maquiadora e professora de maquiagem.
Há quem defenda, em diversas das discussões, que é apropriação da cultura gay. “Drag vem da cultura LGBT. LGBT começa com L de lésbica, fim. A cultura também é minha”, defende Pamella. “Uma das importâncias da mulher drag é a noite virar LGBT e não só G”, completa Greta. Mas quando tratamos de mulheres heterossexuais, as meninas também trazem uma questão interessante: “Estamos nos apropriando da nossa feminilidade? Do que é imposto pra gente?”, diz Pamella.
Mas, para elas, o preconceito vem da falta de informação, que tem raiz nos mesmos lugares que levaram a arte ao mainstream. “RuPaul’s Drag Race é incrível e eu devo muitas coisas, principalmente em relação a visibilidade. Mas eu tenho consciência de que ele não é um décimo do que a arte drag representa”, diz Palloma Maremoto. Reforçando a imagem da montação feminina, diversos fãs do programa não reconhecem as outras formas da arte. “As pessoas pensam que drag e mimetizar feminilidade. Aí ué, mulher mimetizando feminilidade não faz sentido. Mas drag não é só isso”, explica Vlada, ao que Palloma complementa: “Drag é performance, é política, é afrontamento.”
Na ponta do lápis
Giulianna Palumbo nunca quis se aproximar dos palcos. “Eu gosto muito de ser público, deixo meu ego de lado e vou pra aplaudir”, diz. Foi no carnaval que nasceu sua paixão pela cena, ao acabar acidentalmente em um bloco de rua com temática drag. Depois de muito fugir de RuPaul’s Drag Race, ela se via envolvida pela arte – maratonando temporadas do reality, canais do youtube, frequentando festas desse universo e sentindo-se acolhida por ele. “Passei a me sentir em família, uma sensação de lar, pertencimento e lealdade.” Foi assistindo a um vídeo de Lorelay Fox que resolveu imprimir no seu rosto o que vira até então e se montou pela primeira vez. Algo passou a inquietá-la mais a partir daquele momento. “Eu precisava mostrar pras pessoas que drag não é o que elas pensam. É uma arte que traz muitas reflexões, percepções e pontos de vista.” A necessidade virou o livro Reconstruindo Amora, em que trata do universo drag em meio ao autoconhecimento, as dificuldades LGBT e a homofobia. O texto foi construído a partir das vivências em festas, debates, conversas e documentários sobre o tema.
Enquanto Giulianna transformou a arte drag em palavras, Kate Bernardi escolheu o bordado e a ilustração. “Eu gosto de desenhar drags porque é tão rico que, quando você vai fazer uma representação visual, tem muito pra explorar e brincar. Da mesma forma que eu gosto de me maquiar e até tentar me montar como drag, às vezes, eu faço a mesma coisa no papel, representando-as. É uma forma de olhar essa arte sob um outro ângulo, arte sobre arte”, reflete. Suas representações trazem artistas estrangeiras, inventadas e brasileiras, experimentando diversas faces do movimento drag. “Tem muita drag fodida no Brasil, mas a gente não valoriza e fica só babando ovo das que fizeram parte de RuPaul’s. A cena drag aqui também é maravilhosa. A mesma coisa com as mulheres. A gente só valoriza os homens que se montam, quando tem várias minas precisando e merecendo serem vistas”, diz.