Há livros que é uma alegria fechar, lidas ou não todas as páginas. Não lidas, de preferência.
São os livros ruins. Ou desnecessários. Você entra numa livraria como a Cultura e vê aquelas pilhas de livros. Alguns podem ficar impressionados. A mim, o que ocorre é: Deus, quantos livros inúteis há nesta imensidão de papel, nesta orgia literária.Quantas árvores poderiam não ser sacrificadas se fosse feita uma triagem mais rigorosa entre os autores.
Sou um escritor barato. Há um livro meu publicado. Tenho a sensação de que a humanidade bem poderia passar sem minhas páginas baratas. Algumas árvores falecidas em meu nome talvez me agradecessem se eu fosse mais severo em relação a mim mesmo.
Há também livros que é uma tristeza fechar, tamanha a beleza e a sabedoria do conteúdo. Tirá-los de seu criado mudo, uma vez lidos, é como despedir-se de alguém querido numa estação de trem. Dói. Você acaba de lê-los e sabe que jamais será o mesmo. Alguma coisa em você mudou, e para melhor.
São os livros necessários, em oposição aos inúteis. Alguns são imprescindíveis. Os Maias, por exemplo. Aquele final. Os dois grandes amigos, Carlos e Ega, vagando pelas ruas tristes de Lisboa, anos depois da ruína de seus sonhos de jovens. “Falhamos a vida”, diz um ao outro. “Mas a vida que planejamos nunca é a que ocorre”, diz o outro. Estou escrevendo de memória. Sem precisão. O sentido é este, de toda forma. Nunca fui o mesmo depois de Os Maias, para ficar num caso.
Travessuras da Menina Má, de Vargas Llosa, não chega a ser imprescindível, mas é muito bom. Vargas Llosa é um romancista brilhante. O maior entre os autores latino-americanos contemporâneos.
Os melhores personagens da literatura raramente terminam bem. Sobretudo as mulheres. Penso aqui comigo por que as feministas não se insurgiram contra a crueldade imposta às mulheres na literatura.
Maria Eduarda, de Os Maias, por exemplo. Terminou se apaixonando, por acidente, pelo irmão do qual fora afastada menina. Ainda bebê. Perdera o contato por completo e não sabia que aquele homem que a fascinou imediatamente era seu irmão há tantos anos afastado.
Capitu traiu Bentinho e foi morrer solitária e amargurada no exílio europeu. Ana Karenina, casada dentro da melhor sociedade russa, sucumbiu à sedução de Vronski e terminou se atirando sob as rodas de um trem. Madame Bovary, atormentada pelo adultério, se matou.
Todas se deram mal. Por que a menina má, provavelmente a melhor personagem feminina criada por Llosa, se daria bem?
Quem quiser ler o livro, e se incomodar com informações sobre o final, é melhor que pare aqui.
Bem, a menina má, uma peruana cosmopolita que tem atitude de dona do mundo, uma fêmea diante da qual se prosternam machos de todas as partes em busca de seus favores sexuais, tem um final ruim.
Um câncer a devasta. Aqueles seios que fariam um bispo convicto hesitar diante de sua escolha pelo sacerdócio foram massacrados pelo câncer. Philip Roth, um escritor necessário, também acabou com o seio de uma jovem deslumbrante num romance que se transformou num filme, Fatal. O filme fica na estranha faixa entre o que não é nem útil e nem inútil, ao contrário do livro de Roth.
Um homem tivera pela menina má de Llosa um amor incondicional. O menino bom. Sempre a acolhera, sempre a aceitara. A paixão com a qual toda mulher sonha, mas que infelizmente só parece existir na ficção. Na vida concreta, homens – e mulheres – têm baixa tolerância em relação a seus amores. Num livro de Le Carré, outro romancista necessário, um personagem diz que as mulheres que lhe deram um tapa jamais tiveram a chance de dar um segundo.
A menina má, perto da morte, diz a seu apaixonado fiel que, depois de tanto frustrá-lo, lhe deu um grande presente. O menino bom sempre tivera preguiça de escrever um romance. Agora tinha material. “Eu te dei uma boa história para seu romance”, diz ela. “Um amor que se eternize nas páginas de um livro.”
É a redenção dela na agonia: que sonho mais lindo pode ter uma mulher do que inspirar um grande romance sobre o qual o tempo não tenha efeito?
Mas ainda assim: eis mais uma mulher da alta literatura que termina mal. Francamente, não sei por que nenhuma feminista denunciou isso. São homens que na ficção se comprazem em punir as mulheres.
Não é uma troca justa. As mulheres dão aos autores grandes histórias. E os autores retribuem a elas matando-as com a crueldade de cossacos russos. É uma coisa sexista, machista e, em certa medida, sinistra.
Um dia as mulheres vão se dar conta disso.
Fonte: Geledés.