Por que a Previdência é sempre o alvo preferido?

 Por Luís Fernando Silva.*

Nunca é demais relembrar que desde o processo que levou à promulgação da Carta da República, em 1988, trava-se no Brasil uma importante disputa política, que tem de um lado a classe trabalhadora e setores organizados da sociedade civil (na busca da ampliação de alguns direitos fundamentais nela positivados e a efetividade de outros, ainda carentes de regulamentação), e como oponentes as elites nacionais, que segundo o FAGNANI (2016), professor da Unicamp, jamais se conformaram com a inserção de direitos sociais na Constituição Federal, em particular quando perceberam que estes direitos passariam a consumir anualmente algo em torno de 10% do PIB nacional, dificultando o patrimonialismo com que estas elites veem o Estado brasileiro desde a sua tenra criação.

Esta disputa, de certa forma, esteve arrefecida durante os dois períodos de governo de Lula da Silva (2003/2010), quando de um lado o País experimentou um importante crescimento nas despesas voltadas a ampliação e melhoria de serviços públicos (como saúde e educação), a adoção de importantes políticas de combate à pobreza e de distribuição de renda (como o incremento real e expressivo no valor do salário-mínimo e seus reflexos sobre o valor dos benefícios previdenciários, ou a adoção do programa “bolsa-família”); mas do outro lado, contraditoriamente, viu ser mantido o esquema de pagamento dos juros e amortização da dívida pública (com seus duros reflexos sobre o orçamento fiscal), viu aumentar fortemente o agronegócio, expandindo a fronteira agrícola para a Amazônia (aprofundando nossa crise ambiental), e teve mantidos os estratosféricos lucros outorgados ao setor financeiro (que tornaram o investimento na produção uma decisão bem pouco inteligente), todas concessões que deram ensejo à uma “trégua” na constante luta entre capital e trabalho, em particular durante os oito anos de Governo Lula e os primeiros dois anos de Governo Dilma .

Ainda assim, contudo, e independentemente das críticas que se possa fazer ao período Lula – em particular no que diz com a perda da oportunidade de avanços mais substanciosos em questões como a distribuição de renda, a taxação de grandes fortunas, o controle social da mídia, etc. -, quando voltamos os olhos aos serviços públicos e às políticas sociais não se pode negar a diferença entre este período governamental e os anteriores (estes de clara matiz neoliberal), como foram os casos dos Governos de Collor e Fernando Henrique, sob cujos mandatos os direitos emanados da Carta da 1988 ou permaneceram inertes e ineficazes, carentes de regulamentação, ou foram sendo solapados de forma indireta, mediante a drástica redução dos recursos indispensáveis à sua realização.

Por isso mesmo esperava-se mais de Lula e do PT, em particular no que tange ao aprofundamento das políticas de redistribuição de renda e de melhoria e ampliação dos serviços de saúde, educação, segurança, previdência, assistência social e reforma agrária, dentre outros. Para que isto ocorresse, contudo, mostrava-se imprescindível tocar em dois dogmas: a) a questão do pagamento dos juros e amortização da dívida pública, e. b) a reversão da perversa e cruel concentração da arrecadação tributária sobre a massa salarial, enquanto grandes fortunas e aplicações financeiras passam praticamente ao largo da incidência tributária.

Assim – e em evidente contradição com suas inegáveis preocupações sociais -, os governos Lula e Dilma não só se omitiram de tocar nestas “incômodas” questões, altamente sensíveis às elites nacionais, como acabaram por também propor reformas no sistema previdenciário brasileiro (tanto quanto haviam feito os governos anteriores, de viés neoliberal), utilizando-se para isto do mesmo falacioso argumento do déficit da previdência, que agora volta à tona nas mãos do governo ilegítimo de Michel Temer.

Assim, quando se trata de enfrentar as “crises orçamentárias” repetidamente vivenciadas pelo Estado brasileiro desde o início da década da 1990, o que se vê é que todos os governos – de Collor a Temer, passando por FHC, Lula e Dilma -, simplesmente “esquecem” que praticamente metade do Orçamento Geral da União é consumido anualmente com o pagamento de juros e amortização da dívida pública, preferindo concentrar seus esforços na promoção de “ajustes” na outra metade do orçamento, aquela onde estão as despesas governamentais com a manutenção de serviços públicos essenciais, política esta que agora se aprofunda e radicaliza com a provável aprovação das Propostas de Emendas Constitucionais nºs 241 2 287, de 2016.

Desta forma, se sob os governos do PT o sistema financeiro e as elites nacionais se mantiveram lucrando absurdamente, mas tiveram que aceitar a distribuição de parte da crescente riqueza nacional com os mais pobres (mediante as políticas sociais a que nos referimos), o Governo Temer vem para promover a retomada da política franca e aberta de proteção ao empresariado e aos grandes grupos financeiros nacionais e internacionais, em claro detrimento das políticas sociais, como demonstram o PLC nº 257, o PLS nº 204, a PEC nº 241, e a PEC nº 287, todos de 2016.

A lógica é simples, ainda que perversa: se para a execução das políticas públicas o Governo Federal só pode dispor efetivamente de algo em torno de metade do Orçamento Geral da União (já que por decisão política e compromissos de classe a outra metade está reservada ao pagamento de juros e amortização da dívida pública), então é preciso comprimir ao máximo as despesas com a oferta de serviços públicos, de modo a evitar que sua expansão venha a colocar em risco o régio adimplemento dos compromissos governamentais com o sistema financeiro, intocável em razão dos interesses de classe que encerra.

Em decorrência, na medida em que as despesas com a previdência social consumiram em 2015 cerca de 18,5% do Orçamento Geral da União, representando algo em torno de 37% da parcela que resolvemos chamar de “orçamento administrável” (a metade que sobra após a reserva feita para o pagamento de juros e amortização da dívida pública), é forçoso reconhecer que a despesa previdenciária sem dúvidas é a maior daquelas  “administráveis”, o que a coloca como alvo predileto daqueles que, sob o falso argumento de preocupação com o equilíbrio fiscal brasileiro, em verdade preocupam-se apenas em consolidar e assegurar o pagamento presente e futuro dos juros e amortização da dívida pública, que consome a outra metade do orçamento.

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É neste contexto que o País – envolto em nova crise econômica interna, que decorre de mais um ciclo de crise do capitalismo mundial -, vê voltar à tona nova proposta de reforma da previdência, sob os mesmos argumentos alarmistas e mentirosos que embalaram as reformas levadas a cabo em 1998 (governo FHC) e 2003 (governo Lula), desta feita sob a cantilena de que o pretenso déficit teria alcançado a cifra de 85,8 bilhões de Reais em 2015, podendo chegar a cerca de 120 bilhões de Reais em 2016, e projetando números ainda mais portentosos para o ano 2050, quando cogita-se que a população idosa brasileira represente cerca de 25% da população total.

Estaria conformado assim – ao ver destes “profetas do apocalipse” -, um quadro caótico de “explosão” do orçamento público, capaz de potencializar uma “crise financeira de proporções inimagináveis”, para usar as palavras do Ministro Henrique Meirelles.

Evidente que estas teses alarmistas contam sempre com o forte e incondicional apoio da grande mídia brasileira, acostumada a misturar seus interesses financeiros e corporativos aos interesses inescrupulosos das elites nacionais, da qual faz parte, conformando um “pano de fundo” destinado a conduzir os desinformados e os menos cuidadosos à conclusão de que não restaria mesmo outra alternativa plausível (diante de ricos tão profundos) que não alterar imediatamente o regime previdenciário, de modo a prevenir esta derrocada futura das contas públicas.

Forma-se, assim, aquilo que a grande mídia convencionou chamar de “opinião pública”, mas que nada mais é do que a opinião das poucas famílias que detém o controle dos grandes meios de comunicação nacionais, ou, em última análise, a opinião das classes dominantes.

É assim que voltamos a ouvir (com algumas pequenas variáveis), praticamente as mesmas propostas que nos acostumamos a ouvir de todos os governos nos últimos 30 anos, com a única diferença de que agora são repetidas por um Presidente ilegítimo, que chegou ao poder através de um golpe parlamentar cuja gênese está exatamente no esgotamento do modelo de conciliação iniciado em 2003 (de manutenção das concessões às elites brasileiras, em troca de alguma folga orçamentária para a introdução de políticas de redistribuição de renda), e na decisão destas mesmas elites de retomarem para as mãos dos seus representantes diretos a condução do Estado brasileiro.

Desmontar a farsa do déficit, assim, é imprescindível para desconstituir o principal argumento que embala as propostas de reforma da previdência, tarefa para a qual mostra-se fundamental fazer a correlação entre as despesas previdenciárias (assim como as despesas com saúde, educação, etc), e a inaceitável reserva de quase metade do orçamento da União para o pagamento dos juros e amortização da dívida pública, até porque é esta a única maneira de deixar claro que as propostas de “contenção de despesas públicas” – sucessivamente apresentadas pelos governantes brasileiros ano após ano -, longe de pretenderem assegurar a melhoria e a ampliação de serviços públicos essenciais ao nosso povo, buscam, isto sim, assegurar a manutenção e a ampliação do famigerado esquema da dívida e a privatização desenfreada destes serviços públicos.

Ou seja, sempre que ouvirmos falar que a previdência pública é “altamente deficitária”, sendo responsável por um portentoso “rombo” no orçamento público brasileiro, que teria alcançado a cifra de 85 bilhões de Reais em 2015, devemos sempre ter em mente que estamos diante de uma despesa pública que representou, naquele ano de 2015, pouco mais que 18% do Orçamento Geral da União.

Soa no mínimo estranho, portanto, que a esta fatia relativamente pequena do seu orçamento o Governo Federal atribua tamanha responsabilidade por problemas presentes e futuros no equilíbrio das contas públicas, enquanto o comprometimento de cerca de 47,4% deste orçamento com o pagamento de juros e amortização da dívida pública (em 2015) – ou seja, mais de duas vezes mais -,  não lhe causa nenhum sobressalto.

Com efeito, se o propalado e falacioso déficit da Previdência houvesse mesmo sido de 85 bilhões de Reais, em 2015, podemos concluir que este valor poderia ser facilmente coberto com uma simples auditoria nas despesas com o pagamento de juros e amortização da dívida pública, da qual resultasse, por exemplo, no mesmo ano, uma redução de módicos 10% do seu montante – bem menos do que o que se projeta que seria reduzido com uma auditoria série e independente -, o que pagaria o propalado déficit e ainda faria sobre outros 45 bilhões de Reais.

Mas se é assim, então porque diante de qualquer crise econômica os sucessivos governantes brasileiros não seguem este caminho, preferindo repetir a cantilena da reforma da previdência e da redução das despesas com a realização de outros serviços indispensáveis à população brasileira?

A resposta parece simples: primeiro porque o esquema da dívida nada mais é que a nova roupagem dada ao velho patrimonialismo que sempre marcou a relação das nossas elites com o Estado brasileiro. Segundo porque por detrás da dívida pública está o sistema financeiro (os bancos), e por detrás deles os grandes grupos econômicos nacionais e internacionais, aos quais a grande mídia brasileira e os partidos políticos que representam as elites nacionais sempre se alinharam incondicionalmente.

Some-se a isto os interesses privatizantes que sempre rondaram a Previdência Social brasileira, para os quais mostra-se fundamental a redução da proteção previdenciária publica, de sorte a abrir espaço à maior exploração da atividade e a ampliação dos lucros obtidos pelas instituições de previdência complementar, concentradas fortemente no sistema financeiro.

Assim, na medida em que os governantes brasileiros não podem (na verdade não querem!) tocar na metade orçamentária destinada ao pagamento dos juros e amortização da dívida pública, e uma vez que quase sempre comungam dos mesmos interesses privatizantes que rondam constantemente o Estado brasileiro e as riquezas nacionais, fica fácil compreender porque, diante de qualquer crise econômica, o “ajuste” por eles proposto recai sempre sobre os serviços públicos, e em particular sobre o sistema previdenciário público.

Advogado e assessor jurídico do Sindprevs/SC

Fonte: Sindprevs/SC

Imagem tomada de: Imgrum

 

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