Por Raphael Tsavkko Garcia.
Em apenas quatro dias, três assassinatos foram cometidos pela Polícia Militar de São Paulo. No dia 26/10, o cabeleireiro Severino de Oliveira Filho, de 49 anos, foi morto durante uma perseguição de policiais a um suposto assaltante. Ele apenas passava por perto quando foi baleado no ombro e morreu depois da polícia se recusar a prestar socorro imediato.
No dia seguinte, em 27/10, na Vila Medeiros, zona norte de São Paulo, Douglas Rodrigues, de 17 anos, foi baleado no peito por um PM, Luciano Pinheiro, que afirmou ter sido acidental o disparo – a porta da viatura teria disparado a arma, assim noticiou a mídia, garantindo ainda amplo espaço para sua defesa. As últimas palavras de Douglas foram “Por que o senhor atirou em mim?” Não há, ainda, uma resposta aceitável.
Na segunda (29/10), no Parque Novo Mundo, também na Zona Norte, o jovem Jean, de 16 anos, foi assassinado pela Polícia Militar, que o acusou de, desarmado, tentar assaltar um policial. Segundo testemunhas, ele teria levado dois tiros no abdômen e um na cabeça.
Todas as notícias acima têm algo em comum, e não apenas o fato de se encaixarem no que as comunidades da periferia chamam de “genocídio da população negra”, mas a cobertura enviesada da mídia, a desconfiança da inocência da vítima e a crítica tímida, senão inexistente, do uso da força policial nas “quebradas”.
Coronel, descontrolado, exigia documentos
A primeira versão, a da manchete, é sempre a da polícia. Depois é que há – quando há – o espaço para as testemunhas, para o contraditório. Quando a polícia mata, não há reação. Todos estes assassinatos geraram protestos, os dois últimos resultando em ônibus e caminhões queimados e mais violência policial como resposta. Para a periferia, a resposta é sempre mais repressão, mais violência.
No Rio de Janeiro, por sua vez, não podemos nos esquecer de Amarildo. Mas ele é apenas um dos milhares de “desaparecidos” nas UPPs. Torturado violentamente, não é do interessa do Estado encontrar seu corpo e, na verdade, não era sequer do interesse do Estado que seu caso tomasse as ruas. No dia 17 de outubro, um “novo caso Amarildo”, na favela de Manguinhos: Paulo Roberto, de 18 anos, foi espancado por PMs até a morte. Dado curioso: durante um protesto em Manguinhos pela morte de Paulo Roberto, uma adolescente de 17 anos foi… baleada. Em nenhum desses casos a versão principal, na mídia, é a das vítimas.
No dia 26, o mesmo em que Severino foi assassinado, o coronel da PM Reynaldo Rossi foi agredido por adeptos da tática conhecida por Black Bloc no centro de São Paulo. A versão da mídia, baseada em relatos da PM e em vídeos nem sempre completos foi a de que o pobre policial havia sido agredido de graça enquanto trabalhava na contenção dos “vândalos”. A versão de quem estava presente foi a de que o coronel, descontrolado, exigia documentos de identificação de qualquer um que se aproximasse, mesmo jornalistas, e que partiu em direção a um mascarado para, com violência, efetuar uma prisão sem qualquer acusação – como a Polícia Militar está tão acostumada a fazer.
“Porte de vinagre” foi criminalizado
Frente a isto, as pessoas em volta reagiram e “partiram pra cima” do coronel, que foi defendido por um policial armado e sem uniforme, um conhecido P2, ou agente infiltrado. Ora, muitos dos presentes depois suspeitaram de toda a ação. O que fazia um coronel sozinho em meio a mascarados em um protesto e, pior, o que fazia um policial sem uniforme ou identificação no local? De qualquer forma, em momento algum a “grande mídia” buscou o outro lado. Ouviram a polícia, o governador, a presidente (que ofereceu “ajuda” federal, ou seja, ofereceu-se para apoiar a repressão com mais força), e até mesmo a esposa do coronel. Mas não ouviram as testemunhas que estavam presentes – e muito menos foram capazes de ligar sua figura à repressão de junho, com vítimas inclusive entre os jornalistas desta mesma mídia.
Ao ligar a TV em busca dos noticiários, é possível, como já fazem muitos na internet, “brincar” de bingo e esperar que as palavras “vândalos”, “criminosos”, “provocaram a reação da PM”, “a PM reagiu” dentre outras, sejam pronunciadas pelos âncoras. Não importa qual noticiário ou qual canal de TV: invariavelmente, a criminalização dos protestos acontece.
Mais grave que isto, aliás, é a ideia passada pelos jornais de que a PM apenas reage à violência dos protestos quando, na verdade, é a PM a primeira a agredir, a efetuar prisões sem qualquer motivo, a realizar revistas vexatórias (circula pela internet a foto de uma garota que teve sua vagina vasculhada por uma policial no meio de um protesto), a criminalizar mesmo o “porte de vinagre”, como durante os protestos de junho.
Manter a situação sem tocar nas feridas
As notícias na mídia impressa, por sua vez, em geral destacam não apenas a versão “oficial” da polícia e do Estado, mas ao cobrir protestos dão destaque ao “vandalismo”, e não às razões pelas quais se chegou naquele ponto. É o sensacionalismo puro, cruel, que criminaliza e praticamente pede por uma “reação” policial. Jornalistas são alvos preferenciais das forças policiais, mas seus patrões estão mais interessados em criminalizar os manifestantes – raramente assim chamados – enquanto fazem vista grossa às agressões policiais.
Não há como comparar a ação de indivíduos, em geral poucos, que porventura queimem lixeiras, pichem muros ou depredem agências bancárias com paus e pedras e a ação violenta de uma polícia que mata diariamente, armada com bombas, gás e, algumas vezes mesmo com armas com munição letal. O repúdio à violência dos chamados Black Blocs não pode ser mais alto, mais consistente que o necessário repúdio à violência policial. Ora, quantos foram mortos ou mesmo feridos gravemente pelos Black Blocs desde que a tática começou a ser usada no país, durante os protestos de junho? Agora contemos quantos negros, pobres, moradores de periferia foram torturados, espancados e mortos pela PM apenas em um mês. Ou melhor, apenas em uma semana!?
A violência das ruas jamais poderá ser equiparada à violência do Estado. E “quem começou primeiro” faz diferença. Não se trata de birra ou de brincar de “ovo e galinha”, mas de compreender que a violência estatal está presente desde sempre. Está na gênese do Brasil, na concepção da polícia e das ditas forças de segurança, que em geral servem para garantir o controle da periferia, para que esta não exploda e incomode as elites. A mídia, ao reportar sem qualquer questionamento a posição das forças de segurança (sic), ao tratar como nota de rodapé a posição das vítimas e de seu entorno, contribui para a manutenção do status quo, este que significa a repressão violenta ao protesto e, em muitos casos, a repressão antes mesmo do protesto.
Enquanto jovens são assassinados na periferia ou são espancados pela polícia nas ruas do país, a mídia guarda para si o papel de mantenedor dessa situação, sem questionar, sem tocar nas feridas, mesmo que ela mesma seja alvo da violência policial.
Fonte: Observatório da Imprensa.
Imagem: Wikimedia