Por Rodrigo Portella Guimarães.
“Luta eleitoral sem grande peso, algum avanço eleitoral aqui, acolá, dois deputados, um senador, quatro prefeitos; uma grande manifestação popular dispersada a tiros; uma eleição que se perde com menos votos que a anterior; uma greve que se ganha, dez que se perdem; um passo à frente, dez atrás; uma vitória localizada aqui, dez derrotas lá. E de repente mudam as regras do jogo e tudo recomeça.” (Crítica da via pacífica. Ernesto “Che” Guevara)
As gerações que se constroem intelectualmente a partir da simbólica queda do muro de Berlim passam a ter em seu espectro a formulação de Fukuyama, [1] que considera capitalismo como fim da história. Com um suposto “colapso” do comunismo, afirmava-se a inexistência de alternativas de superação do sistema vitorioso. Por esse percurso, tornou-se mais crível acreditar no fim do mundo do que no do modo de produção vigente. [2]
Diante de tal cenário, para a parcela da população que se coloca crítica às contradições que esse modo de sociabilidade impõe, nada mais radical restou do que a defesa de reformas pontuais, diretamente associadas à luta pelos mais diversos direitos. Associado a tal lógica, a luta política, antes muito disposta por uma contraposição de classes (proletariado x burguesia), passou a ser fragmentada em diversos movimentos sociais (feministas, antirracistas, LGBT´s) que pleiteiam, de maneira isolada, direitos aos seus pares de maneira, muitas vezes, desconexa com uma relação materialista de totalidade.
Afirmo que, até 2015, a racionalidade ocidental de “esquerda” se viu confortavelmente inserida naquilo que Nancy Fraser definiu como “neoliberalismo progressista”. Trazendo ao Brasil, com muitas restrições, até o período alguns avanços tornaram-se possíveis, em âmbito social, e por meio da conquista de direitos. Todavia, desde o golpe de 2016, o povo brasileiro vem presenciando o mais profundo ataque à direitos individuais e sociais de sua história, o que fez o país frequentar o rol da vergonha da Organização Internacional do Trabalho (OIT), por conta da antirreforma trabalhista, que se inicia em 2017 e permanece até hoje.
Ou seja, a experiência material demonstra que os ganhos sociais obtidos por meio de direitos não apresentam solidez e estão diretamente associados à fase de capitalismo a qual a sociedade está inserida. Se, antes, o Brasil experimentava um neoliberalismo com inclusão social, hoje, a fração de classe dominante busca consolidar um projeto de destruição máxima dos direitos e de benefício direto do capital financeiro especulador. Diante disso, promovo essa reflexão sobre os direitos para que, assim, adotemos uma nova estratégia para a esquerda nacional.
Os direitos a partir de sua existência
Na teoria geral do direito, uma das aulas iniciais diz respeito a distinção entre a forma e o conteúdo das normas jurídicas. A partir da concepção dominante, respeitada a forma, entendida como neutra, o conteúdo é disputável.
Tal questão é enfrentada, por excelência, pelo jurista russo Piotr Stutchka. [3] De acordo com o autor, o conteúdo das normas depende, diretamente, do mecanismo da luta de classes. Isto é, a positivação dos direitos sociais, sejam eles trabalhistas, feministas ou antirracistas, para existirem, depende de uma postura ativa da classe, em exigir a sua previsão, a partir da combatividade. A história do direito iria comprovar essa tese.
Quando se observa a construção das constituições sociais, a exemplo da mexicana de 1917 e a alemã de 1919, observa-se que, até o momento de sua consolidação, precedeu-se um cenário de profundos conflitos sociais envolvendo a contradição essencial entre capital e trabalho. No Brasil, por seu turno, exemplo marcante é a Consolidação das Leis Trabalhistas, em 1943, que visava encerrar o embate social, protagonizado pelos anarquistas e comunistas, por direitos trabalhistas urgentes.
Portanto, para que as demandas sociais que prezam pelo fim das opressões e que questionem a exploração, por meio do trabalho assalariado, sejam ouvidas e ganhem existência, enquanto lei, dependem, não de um conjunto de legisladores iluminados, mas de um profundo e potente processo de luta de classes.
Os direitos a partir de sua eficácia
A luta por direitos só se completa quando, para além da sua existência, tenha eficácia, ou seja, seja aplicável, na prática. Isto é, de nada adianta o Brasil garantir a ampla vigência dos direitos humanos se, na realidade, o complexo prisional materializa aquilo que se convencionou chamar de “estado de coisas inconstitucional”. E, nesse sentido, surge o questionamento natural – e, muitas vezes esquecido – do porquê dessa incoerência.
A reflexão acerca desse ponto, que é central ao artigo, deve recuperar a constatação, de um tal velho barbudo, que o Direito não possui história própria. O destrinchar dessa afirmação é dado por um outro jurista russo, Evgeni Pachukanis. [4] Este é responsável pela mais radical crítica à luta por direitos, na medida em que comprova que o essencial do direito não está em seu conteúdo, visto como parcialmente disputável, mas em sua forma que, longe de ser neutra, decorre, diretamente, da forma-mercadoria.
O que, basicamente, resta de tal reflexão é que nenhuma transformação radical e completa irá surgir a partir do direito e das suas garantias. Isso, pois, sendo a sociabilidade capitalista orquestrada por “uma enorme coleção de mercadorias”, [5] o modo de vida está diretamente associado a produção dessas e o direito é, nada mais, do que o instrumento organizativo para a sua realização. Ou seja, estabelece o direito de propriedade, fórmula as bases dos contratos, delimita o que é e como se manifesta o mercado e cria a fictícia figura de sujeitos juridicamente iguais que compram e vendem força de trabalho entre si.
Um exemplo, dos inúmeros possíveis, se refere ao art. 170, VIII da CR/88, o qual irá indicar que a ordem econômica brasileira, ao assegurar a todos a existência digna e prezar pela justiça social, traz como princípio básico o pleno emprego. Tal questão, para além de um mandamento jurídico, se trata de um conceito econômico, de base keynesiana, que pressupõe um funcionamento estável da sociedade, havendo baixíssimos ou inexistentes índices de desemprego. Todavia, trinta e dois anos depois de promulgada a constituição cidadã, o Brasil bate seu recorde histórico de desemprego. [6]
A mais completa explicação para essa aparente contradição advém do economista Michal Kalecki. A consolidação de uma situação de pleno emprego depende de gastos públicos associados à busca de demanda efetiva. Contudo, consequência direta desse contexto é que, para além da menor importância dos investimentos privados, as demissões perderiam seu caráter disciplinar, além de que greves e contestações teriam maior peso, em face de um quase inexistente exército de reserva de trabalhadores. Embora com mais trabalho e produção, há um potencial maior de lucros, entende-se que a “disciplina nas fábricas” e “estabilidade política” são centrais, de tal sorte que pleno emprego duradouro surge como uma verdadeira ameaça, e que o desemprego é parte integrante do sistema capitalista “saudável”. Interessante, para além disso, é que o autor desenvolve a importância dos governos fascistas como verdadeiros garantidores da ordem normal do capitalismo. [7] Enxerga alguma coincidência?
Portanto, torna-se central para aqueles que, como eu, apresentam um compromisso na luta por uma sociedade melhor, entender que o Direito é até capaz de recepcionar algumas demandas, postulando e garantindo direitos, mas o plano da eficácia, que vai para além da existência, é diretamente limitado pela função central de um ordenamento jurídico: garantir estabilidade e segurança para o funcionamento do capitalismo. Ou seja, um direito só será eficaz se não atrapalhar o modo de produção. Não existem respostas radicais por meio jurídico.
Uma nova estratégia envolvendo a luta por direitos
A abordagem da teoria crítica mostrada, até aqui, demonstrou que uma hipotética existência de determinado direito social depende, em essência, de uma aguerrida luta de classes. Para além disso, a eficácia decorre, essencialmente, da fase do capitalismo em questão, sendo a forma-jurídica um instrumento da forma-mercadoria, de tal sorte que o sucesso é diretamente proporcional aos interesses envolvidos na acumulação.
Por carência de tal consideração teórica, algumas situações reais formam verdadeiros cenários de perplexidade. Nesse sentido, a luta por direitos humanos, como promovida pela Anistia Internacional, a luta pelo meio ambiente e desenvolvimento sustentável, como promovida por varias entidades como o Greenpeace e, o próprio fenômeno do “ativismo judicial” tem seu fracasso muito explicado por essa carência de entender que a eficácia do direito não é um espaço em disputa, mas um quadrante hegemonicamente burguês.
O contexto histórico que serviu de pano de fundo para o início desse artigo, que propunha uma relação virtuosa entre uma dita economia livre e a efetivação dos direitos humanos se fez relativamente presente, no mundo ocidental, até que entre os anos de 2007 a 2009, por uma caótica desproporção entre finanças e produção, novos arranjos políticos foram necessários para que o sistema se mantivesse de pé.
A consequência direta desse processo é de uma crise de hegemonia em curso, com ameaça direta ao status quo norte-americano, o qual, a pandemia atual veio servir como potencializador. Nesse percurso, tornaram-se funcionais os governos de aspiração fascista, como Trump e Bolsonaro, os quais eliminam qualquer possibilidade de que direitos sociais relevantes sejam, sequer, reconhecidos, quanto mais, postos em prática.
Embora o presente seja de extremo pessimismo, o conjunto de contradições atuais, acentuadas por uma crise sanitária das maiores proporções possíveis, nos possibilita novos horizontes. Autores de larga competência, como Slavoj Zizek ensaiam uma retomada a um Estado de Bem-Estar social, com garantias democráticas, como um sistema universal e gratuito de saúde, como uma consequência necessária e natural, do contexto atual, sendo esse um movimento já protagonizado, inclusive, por políticos conservadores como Boris Johnson. Com o mais profundo respeito, acredito que aspirações nesse sentido são fortemente inocentes.
A luta por direitos sociais, em momentos de “normalidade democrática”, como vivemos durante os governos petistas, tem funções importantes, a despeito de qualquer idealismo, em organizar e politizar o povo, adquirindo consciência política e promovendo o empoderamento de classe. Nesses períodos, vitorias como a previsão desses direitos e até a eficácia são possíveis e se tornam importantes demonstrações da força do povo.
Contudo, perante governos marcadamente fascistas, a luta por direitos, que naturalmente esbarra nas limitações advindas do “funcionamento pleno do capitalismo”, tende a ter ainda menor eficácia. Portanto, se medidas pontuais vêm sendo tomadas, a exemplo do auxílio emergencial, essas não decorrem de pressões populares e, além disso, tem prazo de validade fortemente demarcado. Mediante tal cenário, porém, o signo correto não é afrouxar, mas, aproveitando-se de um profundo descontentamento geral, radicalizar o discurso, colocando-se em xeque o eixo estruturante da sociedade: a propriedade privada e o trabalho assalariado.
Abre-se uma janela histórica importante para que essa roda gigante de ora ampliação ora restrição de direitos, aos gostos e interesses dos capitalistas, passe a ser um jardim que seja capaz de superar as opressões raciais, sexuais e de gênero, além de tornar possível a fórmula geral da igualdade social, firmada como “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. [8] Grandes desafios exigem pensamentos maiores do que o que planejamentos cotidianamente. Utilizemos dos governos distópicos para a construção de nossa utopia concreta. [9] Esta, por sua vez, não virá pela existência de novos direitos mas sim, pela superação da forma-mercadoria e de seu apêndice jurídico.
Notas:
[1] FUKUYMA, Francis. The End of History and the Last Man. 1st ed. New York: Free Press, 2006.
[2] FISHER, M. Capitalist Realism: Is There no Alternative? Winchester: 0 Books, 2009.
[3] STUTCHKA, Piotr. Direito e luta de classes: teoria geral do direito. Tradução de Sílvio Donizete Chagas. São Paulo: Acadêmica, 1988.
[4] PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.
[5] MARX, Karl. O Capital. São Paulo, Boitempo, 2017.
[6] Desemprego no Brasil é recorde e pode piorar. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/economia/desemprego-no-brasil-e-recorde-e-pode-piorar/
[7] “Uma das funções importantes do fascismo, como tipificado pelo sistema nazista, foi remover as objeções capitalistas ao pleno emprego. A aversão à política de gastos do governo como tal é superada sob o fascismo pelo fato de que a máquina estatal está sob o controle direto da parceria entre grandes empresas e o fascismo. A necessidade do mito de “finanças sólidas”, que serviu para impedir o governo de compensar uma crise de confiança por gastos públicos, deixa de existir. Em uma democracia, não se sabe como será o próximo governo. Sob o fascismo não há governo próximo.” (KALECKI, M. (1944 [1990]) “Three ways to full employment”. Em Em J. Osiatynsky, ed., Collected Works of Michal Kalecki, Vol. I Oxford: Oxford University Press, 1990).
[8] MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. In: Obras Escolhidas de Marx & Engels. São Paulo: AlfaÔmega, s/ d, vol. 2, pp. 203-234.
[9] BLOCH, E. O princípio esperança(1959).Rio de Janeiro: Contraponto/EdUerj, V.1, 2005.