Por Leonardo Soares.
O artigo do “filósofo” neoliberal Denis Rosenfield (“Anistia sim!”, O Globo, 21/04/14) achincalha não apenas a construção de uma memória sobre o Golpe Militar de 1964 (ao qual ele se refere como “contra-golpe”), como tenta defender a manutenção irrestrita da falta de punição aos agentes da Ditadura empresarial-militar que seqüestrou a democracia do país por 21 anos e que implantou o regime mais sórdido e criminoso da história desse país. Para esse notório pensador das hostes conservadoras seria um crime sim encostar o dedo nessa corja, fazendo-os responder por tudo que eles tramaram e executaram durante o período de exceção por eles patrocinados.
O filósofo tenta de todas as formas dar um verniz pretensamente filosófico ao seu deplorável discurso, apelando para o grotesco argumento de que a revogação da Lei da Anistia seria não apenas salutar para a nossa combalida democracia, mas algo que a ameaçasse:
O grande problema da revisão da Lei da Anistia consiste em que ela seria uma quebra de contrato, uma quebra de contrato institucional, que se encontra na própria raiz da democracia brasileira. Não se pode, 50 anos depois, deixar o dito pelo não dito como se a palavra que uma sociedade engaja consigo mesma nada valesse. Tal medida não apenas produziria instabilidade institucional, como seria uma péssima sinalização para o futuro. Se acordos políticos podem ser arbitrariamente revogados, não há por que fazê-los, nem, muito menos, cumpri-los. Na verdade, é uma volta da vingança sob a forma do politicamente correto. Mais ainda, tal medida constituiria uma ameaça à própria democracia.
Ora, se é assim, porque o filósofo não usa a mesma lógica para condenar o Golpe de 64? Muito pelo contrário, o que vemos é o escriba do Instituto Millenium festejá-lo como um mal – sim, um mal -, uma espécie de quebra de contrato, mas feito por uma boa causa, já que teria impedido a instauração de um macabro regime comunista, que aboliria a família, Deus, Nossa Senhora do Parto, o Framengo, o jogo-do-bicho e a festeira Vila Mimosa.
É impressionante que um sujeito que se intitule professor de uma universidade deboche assim de nossa inteligência, de maneira tão inconseqüente. Um descalabro.
Outra conseqüência desse raciocínio espúrio é imaginar o quão fácil teria sido impugnar o julgamento dos criminosos de guerra a serviço do Nazismo. Bom, imaginemos (ou: finjamos compartilhar da mentalidade canhestra do filósofo-Rei): partindo desse desastroso pressuposto, os julgamentos seriam imediatamente suspensos e os carniceiros da Gestapo e das SS teriam ido leves e sorridentes para suas casinhas, para passar os últimos anos de suas vidas com toda a impunidade que esse odioso pensamento consagra: todo o julgamento não passaria de um “ato de vingança” e “uma ameaça à democracia”. A Alemanha e a própria Civilização ocidental teriam se saído muito melhor se os órgãos multilateriais e as varias instâncias jurídicas tivessem jogado todos os bárbaros crimes dos nazistas para bem debaixo do tapete. É claro que só tendo uma concentrada e cavalar dose de cinismo intelectual para cogitar uma hipótese tão aberrante e atroz.
Mas se você acha que acabou, veja com seus próprios olhos:
Há, ademais, uma série de iniciativas parlamentares que visa explicitamente a essa revogação, restrita, evidentemente, aos artigos que dizem respeito à violência cometida por alguns grupos militares, nenhuma referência sendo feita à violência praticada pela luta armada empreendida por organizações de esquerda. Vale para uns, não vale para outros.
Se a bizarra lógica desse raciocínio pudesse ser levada a sério – o que duvido, a não ser que esse país tenha se tornado um imenso hospício…. – mais uma vez teríamos que recorrer ao exemplo dos nazistas para contestar a sua patética e tresloucada teoria: assim, teria sido um absurdo ter levado a julgamento apenas os asseclas de Hitler. Muito melhor teria sido julgar e condenar à forca ou à cadeira elétrica aqueles que pegaram em armas para resistir ao totalitarismo hitlerista. Um absurdo terem brindado com total impunidade os membros da Resistência Francesa, os partisans, os poloneses do Gueto etc. No mínimo o que eles mereciam era uma bela de uma cadeia – e que lá mofassem. Esse é o prêmio de quem realmente luta pela democracia através das armas. Ao menos essa parece ser a concepção de alguns inveterados neoliberais.
Mas Denis não se satisfaz em emitir opiniões devastadoras e chocantes. O seu artigo consegue descer mais e mais o nível do razoável. Não satisfeito em defender idéias e conceitos tão repulsivos, o filósofo da “Revolução Redentora” parte para a agressão contra os fatos, tratando-os a pedradas e pescoções. As linhas abaixo são um retrato do modus operandi intelectual do sujeito – e, convenhamos, é incrivelmente assustador…:
A transição democrática no país foi um exemplo para o mundo, tendo se realizado sem traumas nem eclosão de violência. São inúmeros os exemplos no planeta em que a saída de regimes autoritários ou ditatoriais se deu pela luta armada e, mesmo, pela guerra civil. Não é o caso do país, que fez uma transição pactuada entre os próprios militares democráticos, a oposição, sobretudo personificada no MDB, e os egressos do partido do governo, a Arena, que vieram a fundar o PFL. O seu instrumento central foi a Lei da Anistia, que alcançou todos os envolvidos em atos de violência anteriores. Tratou-se, naquele então, de um grande acordo nacional, maciçamente apoiado pela sociedade brasileira, aprovado pelo Congresso Nacional e, ainda mais recentemente, validado pelo Supremo Tribunal Federal.
Maciço como, se ainda vivíamos numa ditadura? Que pesquisa feita na época mostra esse apoio irrestrito e apaixonado da “sociedade”? E de onde ele tirou esse papo-furado de que a “transição democrática” nesse país não sofreu com a violência? Esse senhor por acaso não era chegado em ler jornal? Ou na sua mentalidade o Atentado Terrorista do Rio Centro não existiu? Todos sabem, até uma criança analfabeta, que balbucie algumas poucas palavras que a linha dura do Regime Militar atuou de todas as formas para boicotar a tal transição (inclusive realizando inúmeras execuções). Os próprios agentes desse regime de terror já admitiram isso.
Num de seus últimos arremates, o pensador se supera e desce às profundezas do pensamento ocidental sobre Democracia. Ele carrega no verniz e nos oferece uma reflexão digna de ser lida à luz de archotes:
Note-se que a esquerda “revolucionária”, hoje tão decantada, ficou totalmente à margem deste processo. Não apenas isso, ela tinha sido completamente derrotada na luta armada, não tendo tido nenhum apoio popular, sendo uma operação militar de intelectuais e estudantes, despreparados, porém ideologicamente bem apresentados. Atualmente, procura-se envernizar essa esquerda que não tinha nenhum compromisso com a liberdade e a democracia. Hoje, eles posam de combatentes da democracia, quando nada mais eram do que instrumentos de implantação do comunismo/socialismo no país. O seu objetivo consistia em instituir a “ditadura do proletariado” que, enquanto “ditadura”, não pode ser evidentemente democrática!
E somos obrigados a perguntar mais uma vez, de forma bem simples, com uma vontade louca de desenhar: ora, como ela poderia ter participado da transição se elas foram reprimidas e cassadas ferozmente?
Aqui o direitista recorre a velhos espantalhos (“a implantação do comunismo/socialismo”…) para fugir do fundamental: o que os militares e golpistas queriam evitar era a implantação de medidas concretas que visavam a uma redistribuição de poder e à implantação de novos padrões de produção e obtenção de capital no Brasil, como seriam os casos das reforma agrária, urbana, bancária, educacional. Era disso do que se tratava e não de fantasmas inventados por carrascos da democracia e que seguem sendo repetidos à exaustão por papagaios e viúvas do Regime Militar.
Perto do fim (ou depois dele) o filósofo joga a toalha e parte da maneira mais descarada possível para a justificação de um dos atos mais degradantes perpetrados pelo Regime Militar – o massacre do Araguaia:
Um dos episódios mais retomados nesses últimos meses, como de desrespeito dos militares com os direitos humanos, consiste na guerrilha do Araguaia. Agora, os atores revolucionários são apresentados como combatentes da democracia. Eles eram maoístas e seguiam as diretrizes dessa forma de marxismo asiático. Seu objetivo consistia claramente em criar no Brasil um Estado totalitário aos moldes de Mao. Alguns eram também albaneses, uma variante ainda mais mortífera do maoísmo. Para eles, a democracia era burguesa e, portanto, deveria ser completamente destruída. Neste sentido, o que os militares fizeram ao aniquilá-la foi simplesmente evitar que o totalitarismo maoísta se instalasse entre nós.
Neste sentido, o que os militares fizeram ao aniquilá-la foi simplesmente evitar que o totalitarismo maoísta se instalasse entre nós. Liberticidas se tornam combatentes da liberdade!
Aqui o autor consegue sabotar qualquer esboço de respeito que eu possa ter pelo seu dantesco artigo. Combater idéias – vá lá! Agora, tentar fazer a reabilitação intelectual de um ato asqueroso e criminoso como foi o massacre e trucidamento de militantes políticos, tendo ainda a coragem de frisar que os assassinos queriam “simplesmente evitar que o totalitarismo maoísta se instalasse entre nós” – não, não e não. Aí é demais Sr. Rosenfield.
E, além de tudo, é um raciocínio tão tosco que toma como pressuposto a nossa incapacidade total e absoluta de não acreditar na absurda tese de que uma guerrilha que contava com umas poucas dezenas de militantes estivesse prestes a detonar uma revolução cultural que se irradiaria do Oiapoque ao Chuí, passando pelas Avenidas Atlântica (Rio) e São João (SP).
Na verdade, mesmo que isso fosse verdade, como tolerar que opositores políticos possam simplesmente ser executados e até decapitados, e isso estando totalmente desarmados e rendidos? Mas é claro, os autores de tal disparate são autênticos defensores da verdadeira democracia e dos valores democráticos. E são tão democráticos que só toleram e concebem apenas uma noção de democracia: a de fachada liberal-mercadológica.
É o espírito da Marcha que nos ronda como um espectro e que continua a pairar sobre nossas cabeças.
O que se explica apenas pelo desejo quase fanático dos conservadores e liberais brasileiros pela restauração de um regime onde o Capital se desenvolvia livremente, sem qualquer possibilidade de contestação das classes trabalhadoras, onde a sindicalização era interditada, onde o povo era proibido de se manifestar, onde as classes patronais pintavam o sete, onde o exercício de crítica levava à tortura e à morte. Ou seja: tínhamos uma “Democracia” perfeita, pois sem povo – e na qual os interesses do Mercado reinavam absoluto. O sonho de consumo dos “verdadeiros democratas”.
Leonardo Soares é professor de História.