Por que a crise existencial dos Estados Unidos é boa para o mundo

Por Jacob Devaney .

Tradução: Jefferson Costa.

Rádio Yandê.

O que está de fato acontecendo nos Estados Unidos?

Colin Kaepernick sentado em protesto durante o hino nacional, indígenas desarmados em Standing Rock (foto capa) atacados por seguranças pessoais com cachorros, vazamento de e-mails do Comitê Nacional Democrata, Donald Trump e o ciclo de eleição mais bizarro na história… o que está acontecendo nos EUA?

Os Estados Unidos estão passando por uma crise existencial?

Uma crise existencial acontece quando um indivíduo questiona as próprias crenças no alicerce de sua vida. Pode ser doloroso, até mesmo humilhante e destruidor do ego, mas enxergando através de nossas próprias ilusões é o que nos traz autoconhecimento. Às vezes tudo precisa desmoronar para fazer uma transição a algo melhor. Se você tem se sentido que as notícias e as redes sociais são muito deprimente você pode apreciar a considerar as coisas através dessa lente.

Nós estamos testemunhando um despertar massivo através de eventos recentes, que tem se tornado notícia graças à mídia independente e, é claro, à internet. Nos EUA o verão começou com o vazamento de e-mails expondo corrupção, levando as pessoas a questionar a autenticidade do processo eleitoral nas calorosas primárias. Isto é particularmente poderoso porque os políticos americanos tem vendido guerras estrangeiras, invasões e bilhões de dólares em contratos militares na noção de “espalhar a democracia”, para depois encontrar-se doente na própria casa.

Um momento muito poderoso na história

Os ciclos eleitorais são tipicamente um tempo quando assuntos contestáveis ficam evidentes. Trump tem sido abertamente racista em sua campanha, enquanto que o Concorrente Primário Democrata, Bernie Sanders, levou atenção às maneiras que a influência corporativa e Wall Street tem corrompido o processo democrático. No entanto com assuntos alcançando pontos alarmantes como a mudança climática, violência armada, corrupção policial, racismo, desigualdade econômica e outros, os cidadãos não estão dispostos a esperar os políticos agirem.

O ativismo, a desobediência civil e a discussão acalorada nas redes sociais tem arrebentado o script do ciclo eleitoral tradicional. Mais notável ainda tem sido o recente confronto sobre o oleoduto em Standing Rock, Dakota do Norte e a recusa de Colin Kaepernick de levantar durante o hino nacional. Apesar de estes incidentes parecerem sem relação eles tem uma linha em comum que vale a pena explorar.

Assim como um trauma pessoal, o potencial de velhas feridas de se recapitular (acontecer de novo e de novo) até que elas se resolvam também existe dentro de nações. O racismo, exploração, destruição do meio-ambiente, opressão, desigualdade e etc. são problemas que os humanos tem confrontado por milênios, ainda assim nós nunca estivemos tão confiantes para expressar esses assuntos quanto agora. Às vezes a situação pode até parecer irremediável, mas não é.

Qual é a linha em comum?

O ato de desobediência civil de Kaepernick em solidariedade com o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) teve o papel de trazer a atenção à falta de justiça pela brutalidade policial em relação aos afro-americanos. Trayvon Martin, Eric Garner, Sandra Blanch, Michael Brown são apenas algumas das ocorrências que provocaram revoltas em cidades como Ferguson e Baltimore. Quando a fúria alcança uma massa crítica ela pode ser volátil mas isso também significa uma grande oportunidade de crescimento interno e cura para uma nação.

Em Standing Rock mais de 200 tribos junto com ativistas não-indígenas se reuniram através do país para proteger os seus rios de um oleoduto proposto em 3.8 bilhões de dólares. Assim como a violência policial aos afro-americanos, o tratamento com indígenas sobre os recursos naturais tem seguido uma tendência previsível. A linha em comum é que os EUA tem alguns esqueletos no armário, uma história mal resolvida que continua a assombrar a nação e está ficando mais difícil para as pessoas desviarem o olhar.

“A razão pela qual as pessoas despertam é porque elas finalmente pararam de concordar com coisas que insultam a sua alma.” ~Anônimo

Vidas Negras Importam

Músicas transmitem estórias, elas expressão valores, as pessoas se reúnem ao redor de músicas da mesma maneira que elas se reúnem ao redor de uma fogueira para se manterem aquecidas. Cantar junto é uma bela expressão de solidariedade, harmonia, uma maneira para celebrar e lamentar. O hino dos Estados Unidos foi escrito por Francis Scott Key que foi um proprietário de escravos que acreditava que esta prática era moralmente aceitável.

“Se você acredita que pessoas não tem uma história que merece ser mencionada é fácil acreditar que elas não tem uma humanidade que merece ser defendida.” –William Loren Katz

Durante a guerra de 1812, quando os EUA tentaram capturar o Canadá da Inglaterra, os britânicos retaliaram invadindo plantações, libertando escravos e os armando para lutar contra os proprietários americanos de escravos. Essas são pessoas que foram chicoteadas, algemadas, compradas, vendidas e forçadas a fazer muito do trabalho manual que fez os EUA uma nação próspera. Esses escravos estavam lutando por sua própria liberdade e perderam. O hino nacional celebra a sua derrota.

Este ato pelos britânicos não foi muito diferente de outro episódio na história quando escravos foram libertos para lutar como Cavalaria Negra contra os indígenas. A Cavalaria Negra foram ordenados a tomar crianças indígenas de suas famílias e mandá-las à força para Reformatórios Indígenas onde elas eram abusadas sexual e fisicamente e proibidas de falar em sua língua nativa.

Em um país onde a maioria da população está sentada no sofá com uma cerveja em uma mão durante o hino nacional você pensaria que a recusa de Colin Kaepernick de se levantar para o hino passaria despercebida. Ainda assim não passou e isso revela muita coisa. Aqueles que ficaram mais irritados com o ato de desobediência civil de Kaepernick são também aqueles que afirmam em alto e bom tom que a história é irrelevante. Por que não simplesmente mudamos o hino para This Land is Your Land, This Land is My Land por Woody Guthrie?

‘Esta terra é sua terra, ela é minha terra?’

Em uma democracia que deu os direitos das pessoas para corporações (veja Citizens United Ruling), parece que talvez a terra na verdade pertença à indústria extrativista que tem a maior quantidade de dinheiro e representação política em Washington. Isto não é muito diferente de ideias antiquadas como a Doutrina do Descobrimento. Os sistemas de crença colonial justificam tomar, por força se necessário, sem pedir não importando as repercussões ambientais para todos os habitantes.

“Bulas pontifícias (Vaticano) do século 15 deu ao exploradores cristãos o direito de reclamar as terras que eles “descobriam” e reivindicar essas terras aos seus monarcas cristãos. Qualquer terra que não fosse habitada por cristão estava disponível a ser “descoberta”, reivindicada e explorada. Se os habitantes “pagãos” pudessem ser convertidos eles poderiam ser poupados. Se não, eles poderiam ser escravizados ou mortos.” –Doutrina do Descobrimento

Standing Rock não diz respeito somente aos indígenas

Estes nativos são os povos originários. Eles compreendem que eles estão lutando pelas 20 milhões de pessoas rio abaixo deles, pessoas que dependem da água que flui desde o Rio Missouri até o Rio Mississippi. Esta água é para colheitas, para beber, não apenas para os humanos mas para os pássaros, peixes e outros animais que dependem dela.

“Nós fomos avisados de profecias antigas sobre esses tempos em que vivemos hoje, mas também nos foi transmitida uma mensagem importante sobre uma solução para transformar estes tempos terríveis. Para compreender a profundidade dessa mensagem você deve reconhecer a importância dos Sítios Sagrados e perceber a interligação do que está acontecendo hoje…” – Chefe Arvol Looking Horse, guarda do Sacred White Buffalo Calf Pipe

Os ancestrais dessas pessoas foram massacrados em milhões e foram vítimas de um genocídio tão terrível quanto o Holocausto. Ainda assim eles se levantam em uma resistência pacífica para proteger o que é sagrado a eles e para todas as formas de vida, a água. O mesmo acontece com os Apache que protegem o Oak Flat, uma área ribeirinha preciosa com um fluxo perene em um cânion do Arizona, cercado pelo deserto, o qual senadores tentaram vender para mineradoras estrangeiras. O mesmo também sucede para os havaianos que resistiram pacificamente para proteger as suas áreas sagradas, o topo da reserva de água em Mauna Kea. É a mesma batalha que pessoas de todas as raças e cores de pele estão lutando ao redor de mundo para proteger o frágil ecossistema do qual nós dependemos para a vida diante das indústrias extrativistas gananciosas e negligentes.

“Nós não carregamos apenas dor, nós carregamos conexão. Cada vez que nós resistimos ou insistimos diante das depredações dos desenvolvimentistas, predadores corporativos, oficiais do governo, administradores de universidades ou até mesmo do público em geral nós estamos tentando proteger a nossa relação com os nossos ancestrais, nossa língua, nossa cultura e nossa ‘?ina (terra). Mas ao mesmo tempo nós estamos tentando despertar novamente e também proteger as suas conexões. Aquele modelo míope de ‘progresso’ – que parece que estamos tentando barrar – depende de todos nós, todas as pessoas do Havaí, todas as pessoas do Pacífico, todas as pessoas do mundo que estão perdendo a sua conexão com a terra, com a água, com os outros seres humanos. Quanto menos você sente essas conexões mais fácil é para que você seja convencido que o desenvolvimento irrestrito é o mais alto e melhor uso da terra. -de We Live in the Future. Come Join US por Bryan Kamaoli Kuwada

Sinta estas conexões

Estas são conexões à história, elas são conexões à terra, elas são conexões de uns com os outros, a despeito da cor de nossa pele, elas são conexões com todas as formas de vida. Existe dor onde essas conexões foram rompidas, onde nós perdemos nossa humanidade, e portanto, muitas pessoas prefeririam não senti-la definitivamente. Ainda assim a negação, o adormecimento e a desconexão somente fazer a dor piorar. O que fazemos uns aos outros fazemos a nós mesmos, o que fazemos à terra fazemos a nós mesmos.

A história ainda está viva na terra, nos descendentes, nos sistemas de crença e na cultura dos Estados Unidos. De vez em quando ela ressurge e nós temos uma oportunidade de fazer as pazes com ela, de curá-la e deixa-la passar. É um fato biológico conhecido que o trauma é passado através de gerações em nosso DNA. As estórias que nós nos contamos se tornam as crenças que governam a nossa realidade.

Como a crise existencial dos Estados Unidos é boa para o resto do mundo?

Apesar dos aspectos negativos da história turbulenta dos Estados Unidos, a nação sempre representou um papel especial no palco global. Os EUA são o lugar do nascimento de ideais democráticos, uma vez que os princípios da fundação do seu governo foram emprestados do povo nativo iroquês. Embora ideias democráticas similares tenham circulado na Grécia, nada foi tão evoluído quando a forma matriarcal de separação de poderes dos Haudenosaunee (Iroqueses) junto com uma compreensão integrada de compartilhamento da terra.

Os Estados Unidos conduziu o mundo em muitas maneiras criativas e inovadoras. Eles presentearam o mundo com o blues, jazz, hip-hop e muitas outras formas musicais e de artes visuais que são celebradas ao redor do planeta. Os estadunidenses tomaram posse de tradições do velho-mundo e as combinaram em belas formas, as integrando com a tecnologia, cinema, internet e mídia. As contribuições globais são enormes e as razões para amar os Estados Unidos são infindáveis.

No entanto as formas coloniais e imperiais também continuam. Hoje elas estão disfarçadas em “desenvolvimento” ou “progresso”, ou ainda guerras conduzidas para a “democracia” que lucra com o roubo da soberania e dos recursos naturais. As estratégias políticas e geopolíticas no Oriente Médio como os golpes para derrubar líderes democraticamente eleitos como Mosaddegh continuam hoje por mais de 50 anos. A venda de armas dos EUA para países com terríveis abusos de direitos humanos como a Arábia Saudita, políticas intervencionistas financiadas por impostos continuam, enquanto os EUA discutem sobre o levantar ou sentar por uma música em um jogo de futebol. No entanto quando os EUA lidar com sua própria sombra, com sua própria história ele vai novamente iluminar o mundo com inspiração.

“Vamos pensar em conjunto e ver o qual vida nós podemos dar para nossas crianças.” –Sitting Bull.

Quando nós estudamos ascendência e rotas de migração nós sabemos que sem sombra de dúvidas a humanidade é completamente interconectada uns aos outros. Quando nós estudamos a biologia de nossos próprios corpos nós reconhecemos que somos conectados a todos os aspectos de nosso meio-ambiente, desde o ar que respiramos, à água que bebemos, ao solo sagrado que nós pisamos. Quando encontramos a paz conosco mesmos, só então poderemos emaná-la ao mundo ao nosso redor. A jornada de cura cultural pode ser jocosa e colorida se decidirmos embarcar nela juntos.

Vamos honrar as raízes, vamos despertar à nossa história e nos tornar o nosso mais atualizado ser! Nós podemos emergir dessa crise existencial sabendo que somos um povo compartilhando um glorioso planeta. Os nossos parentes nativos americanos colocam melhor em palavras quando dizem

“Mitakuyeoyasin”, que em Lakota se traduz como “Somos todos relacionados”. Às vezes as coisas precisam desmoronar antes de se reconstruir mais fortes do que antes.

 Original: http://upliftconnect.com/americas-existential-crisis/

Imagem: medium.com

 

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