Por Lívia de Souza Vieira.*
Nas considerações finais de seu depoimento ao juiz Sergio Moro, na última quarta-feira, dia 10, o ex-presidente Lula fez duras críticas à imprensa, seguindo uma estratégia clara de defesa, já que nesse momento poderia falar livremente. Portanto, não é banal que Lula tenha usado 20 minutos para detalhar e denunciar a forma como a imprensa brasileira tem noticiado as acusações contra ele. E apresentou dados:
“De março de 2014 para cá, são 25 capas na IstoÉ criando a imagem de monstro do Lula. A revista Veja tem 19 capas e a Época 11 capas. (…) O que eu disse das revistas eu vou dizer dos jornais: a Folha de S. Paulo, nesse mesmo período, teve 298 matérias contra o Lula e apenas 40 favoráveis, tudo com informações ou da polícia ou do Ministério Público. Eles não se assumem, eles culpam alguém. O jornal O Globo, que é o mais amigo, tem 530 matérias negativas e 8 favoráveis. O Estadão, que é mais amigo ainda, tem 318 matérias contrárias e 2 favoráveis. Aliás, nesses jornais, parece que tem gente que tem mais informação do que os advogados de defesa ou de acusação, porque tudo passa por eles, antes, durante e depois. (…) Só no Jornal Nacional foram 18 horas e 15 minutos. Sabe o que significam 18 horas falando mal de um cidadão? Significam 12 partidas de futebol entre Barcelona e Atlético de Madrid”, afirmou.
Apesar de nenhum veículo jornalístico ter negado tais números no dia seguinte ao depoimento, não é difícil supor as justificativas possíveis. Afinal, poderiam dizer os editores, a Operação Lava Jato é notícia desde então e Lula é figura proeminente. Cinismo típico já apontado pelo menos três vezes neste ObjETHOS (aqui, aqui e aqui). No entanto, a discrepância de angulação nas matérias, além de todo o aspecto semiótico (imagens que o demonizam mesmo), mostra que a imprensa vem aplicando uma espécie de “watchdog seletivo”, ou seja, cães de guarda de uma pessoa só. Mesmo que contra ele não tenham sido apresentadas provas materiais, mesmo que ele não tenha sido condenado.
Lula coloca a imprensa como parte fundamental na engrenagem de seu processo judicial. “O comprometimento da Justiça e o comprometimento da acusação com a imprensa estão levando a um impasse, porque alguns canais de televisão e alguns jornais fizeram disso a sua peça principal de notícias. E eles estão com dificuldade. Como é que isso vai acabar se esse tal de Lula for inocente? Como é que nós vamos prestar contas para o nosso telespectador se de repente o Lula não cometeu o crime que eles disseram que ele cometeu? Porque esse é o problema da mentira, depois não tem como voltar atrás”, diz, num dos trechos.
Novamente fazendo o exercício hipotético do contraponto, editores poderiam argumentar que a opinião pública clama por essas notícias. Contudo, todas as pesquisas mostram que Lula ganharia a eleição presidencial, que tem grande aprovação popular. Talvez porque as pessoas já perceberam que a retórica de uma cobertura jornalística enviesada não passa de… retórica. Que repetir delações de réus que nada provam, ao invés de incriminar Lula, acabam reiterando sua defesa. Ora, como ainda nada se provou contra uma pessoa que está tendo a vida completamente devassada há três anos? No depoimento, foi patético o momento em que Moro mostrou um documento que comprovaria que o apartamento é de Lula. O único detalhe é que não havia assinatura alguma. “Então, se não está assinado, doutor…”, afirmou, dispensando conclusão da frase.
Respeito à dignidade
A essa altura, depois de tantas arbitrariedades cometidas pela imprensa – desde antes do golpe até hoje – recorrer ao Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros ou à Declaração Universal dos Direitos Humanos chega a soar démodé. Mas às vezes o óbvio precisa ser dito, até para fins de registro histórico. “Tratar com respeito todas as pessoas mencionadas nas informações que divulgar”, diz o artigo 12 do primeiro documento citado; enquanto o segundo conclama “sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana”.
“Quantas matérias já me condenaram? Os jornais não têm respeito a nenhum familiar meu”, disse Lula. Por duas vezes ele citou os netos e mencionou o bullying que sofrem diariamente. Difícil calcular esses danos, mas fácil imaginar que eles não serão apagados, mesmo que o ex-presidente seja inocentado.
Essa não é uma discussão nova no jornalismo, mas é preciso ressaltar a crueldade desse dilema ético. Seja com Lula ou com qualquer outra pessoa, a imprensa precisa ter alteridade. Precisa refletir sobre os danos que causa, ou então estaremos à mercê do “custe o que custar”.
Vazamentos
O ex-presidente também não poupou críticas ao vazamento de informações para a imprensa. O principal argumento de Moro é que a acusação é pública e, portanto, não há como manter sigilo sobre ela. “Então não existe vazamento sobre essas ações penais”, disse.
Mas Lula chamou de “vazamento proposital”, e lembrou que “alguns jornalistas sabem o que vai acontecer um dia antes”. E prosseguiu: “Há o interesse de vazar, doutor Moro, porque esse julgamento tem que ser pela imprensa. Senão é difícil. (…) É que foi feito um acordo de que não é possível você, na Lava Jato, condenar pessoas – políticos importantes ou pessoas ricas – sem o apoio da imprensa”.
O juiz interrompeu Lula diversas vezes durante suas considerações finais, alegando que suas ponderações fugiam do propósito ou que “não é a imprensa que faz acusação nesse processo”. Ao que o ex-presidente respondeu: “Não fogem não, doutor, não fogem não. (…) A imprensa é o principal julgador disso”.
Em outro momento, Moro diz que Lula tem acesso à televisão, onde poderia fazer essas declarações. Após mencionar as 18 horas de cobertura do Jornal Nacional, o juiz o indaga, em tom de defesa à imprensa: “E eles não divulgaram sobre os outros também?”.
Moro ainda enfatizou que “esse não é o foro próprio, o juiz não tem nenhuma relação com o que a imprensa publica ou não publica e esses processos são públicos”. E de novo Lula contrapõe: “O senhor sem querer entrou nesse processo, sabe por quê? Porque o vazamento de conversas com a minha mulher e dela com meus filhos foi o senhor quem autorizou. Eu não tinha o direito de ter minha casa molestada sem que eu fosse intimado para uma audiência”.
Quando Lula diz que “esses mesmos que me atacam hoje, se tiverem sinais de que eu serei absolvido, prepare-se, porque os ataques ao senhor vão ser muito mais fortes do que eles fazem até com ministro da Suprema Côrte que não pensa como pensa a imprensa brasileira” -, Moro se defende dizendo que já é atacado “inclusive por blogs que supostamente patrocinam o senhor”. Como se fosse possível algum grau de comparação justa entre essas duas coisas.
A centralidade do papel da imprensa no julgamento de Lula já havia sido comentada por diversos especialistas e acadêmicos. Mas fazê-la constar de seu depoimento é muito emblemático, embora, a meu ver, vá produzir poucos efeitos práticos. Basta ver as capas dos jornais de hoje (11). A angulação única prossegue, na típica síndrome de avestruz.
*Doutoranda no POSJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS
Assista abaixo ao vídeo com as considerações finais do depoimento de Lula:
Charge de Vitor Teixeira.
Ponto de Vista: “A imprensa é o principal julgador disso”, diz Lula