Ponto de Fuga

Sobem mais e mais prédios na metrópole: roubam o horizonte, encurtam o espaço, aceleram o tempo e apagam as estrelas. Mas, feito pião, a vida rodopia entre (e para além) destes mundos e fundos imobiliários. E, num mar de morros, outro viver começa a sair do papel…

Por Mazé Leite, na coluna Viver fora da engrenagem

São Paulo está sofrendo uma modificação visual como há muito tempo não se via. Praticamente não há bairro, entre a zona oeste e sul, onde inúmeros edifícios não estejam sendo levantados. Residenciais ou não, essas torres se erguem verticalmente ocupando o espaço que antes era de casas e sobrados. À esquerda e à direita do meu campo visual, aqui no bairro onde moro, a visão ampla está sendo bloqueada, incluindo a visão do céu. É como uma espécie de cerco, de redução dos limites, mesmo que visuais, e a sensação vai do desconforto à claustrofobia. Roubaram de mim o horizonte, encurtaram o espaço, aceleraram o tempo, apagaram as estrelas….

Imagino o futuro: mais densidade demográfica e mais carros, muitos mais. Mais gente disputando espaços, consumindo energia, consumindo… Torres altas, falos verticais finos ou largos, agressivos, ao gosto da arquitetura da vez. Os modismos arquitetônicos das novas modernidades urbanísticas vem afagando o mercado imobiliário e o lucro: em cada andar do prédio, onde antes cabiam dois ou quatro apartamentos, que agora caiba dez, vinte. Porque os tamanhos das moradas das pessoas também foram limitados a 15, 20, 30 metros quadrados.

Mas se oferece mundos. E Fundos: ou imobiliários abstratos ou bem concretos se você uberizar seu bem. Mas é para o seu bem! Você pode interagir com a vizinhança, caso queira. Há espaços para a malhação coletiva, piscinas, lobbies, spa, espaço co-working, lounge, espaço delivery e rooftop (a língua portuguesa não dá conta de tanta modernidade?)… Ah os rooftops! Pagando para morar apertado, você tem acesso à visão do céu no telhado da torre. Lá, sim, você pode respirar, mesmo que o ar impuro da urbe, e ampliar um pouco mais sua visão, não muito, o suficiente para voltar a ser o escravo que se é, mesmo sem querer, da engrenagem toda do sistema. Enjaulado como um carneirinho, você tem acesso ao mundo, se quiser, nos aplicativos do seu celular. Só que não. A ilusão se perde aos poucos, à medida que se amadurece. Não se iluda, não me iludo!

Quando cheguei em São Paulo, há 35 anos, a cidade me era um encanto. Tudo era grande, quantitativa e metaforicamente. Andava pelas ruas do Bexiga com suas casas antigas, testemunhas da passagem do tempo nas vidas de gerações de pessoas. E de Adoniran Barbosa. A avenida Paulista estava logo ali, mais acima, imponente, com prédios modernos. Também caminhei anos pelas ruas da Vila Madalena, onde também morei, bairro habitado por estudantes da USP e antigas famílias portuguesas que, aos domingos, voltava a parecer uma pequena cidade do interior. E pelos meninos do Premeditando o Breque, o velho “Premê”, que encontrei uma ou duas vezes no Sujinho da Vila.  Trabalhava, estudava, cuidava de crescer na vida, ia ao cinema, lia, frequentava museus, shows, bares, casas de amigos. São Paulo é tudo isso.

Muitas vezes saí por aí cantando o Premê: “é sempre lindo andar na cidade de São Paulo, o clima engana, a vida é grana em São Paulo, a japonesa loura, a nordestina moura (eu) de São Paulo, gatinhas punks, um jeito yankee de São Paulo, na grande cidade me realizar, morando num BNH…” Hoje São Paulo não tem mais jeito yankee, seu jeito é hipster! Mas já foi fashion.

Seu Francisco nunca saiu muito longe de sua aldeia. Seu Dito trocou a vida em Cunha pela vida no sítio, que ele comprou quando era possível a um trabalhador comprar um pedaço de terra naquela região. Seu Francisco não é fashion, seu Dito não é hipster. Há muitos mundos no mesmo mundo meu, que continuo nordestina e carrego em mim a sina da música de Luiz Gonzaga: quem sai da terra natal, em outro canto não pára. Não parei no meu canto nesta cidade grande que é de muitos e é também muito minha. Mas os movimentos de uma vida errante me levam em direção ao Ponto de Fuga que se inicia na pequena área de montanhas que circundam o Vale do Paraíba. Mas como não ando só, vou cantando a música de Chico Maranhão, que vai dizendo: “fique também pensando que o ponto de fuga por ser pequenino não cruza as retas mais curvas que o mundo tem”…

O trator está rasgando a terra, corte suave para traçar ruas. Como vamos chegar, há que se desenhar um espaço onde viver entre a Serra do Mar e a Serra da Bocaina, em meio ao mar de morros. A primeira construção, coletiva, já está com as paredes levantadas. Há formigas comendo as folhas dos limoeiros e há a braquiária crescendo de novo na horta que preparamos. Ou seja, a Vida pulsa. Há um lago que foi reformatado para ficar bonito. Há o espaço da minha casa a ser construída em breve sendo posto à vista. Já sabemos os nomes dos nossos vizinhos, algo de suas histórias, de seus bichos, da Zina e do Gominho. Já iniciamos novas relações com artistas cunhenses, da cerâmica e das artes plásticas. Já agendamos as datas das festas de São Benedito, do Pinhão, do Divino. Vamos chegando, lentamente, suavemente… pois alguém nos “avisou pra pisar neste chão devagarinho”.

Pareço um pião neste momento: nas mãos de uma criança, o pião sobe e desce, fazendo caracóis em movimento para a frente e para trás, para cima e para baixo. Meu carro já conhece as direções de um lado e do outro, já se sujou no pó fino da estrada de terra seca por falta de chuvas e se enlameou quando as chuvas vieram grossas, penetrando a terra. Olho para meus três gatos e falo a eles que esperem, que terão dias melhores na liberdade do mar de montanhas. Xavier, Tom e Chico me fitam sérios, parece que querem entender porque de vez em quando eu desapareço do apartamento, escorro pelo elevador do prédio, pelas ruas e estradas em direção àquele Ponto de Fuga… É necessário desenhar e retraçar esses caminhos, é meu ofício, é minha vida de desenhista e o traço precisa ser feito daqui pra lá, de lá pra cá, quantas vezes for preciso porque viver é preciso e necessário.

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