Em junho passado, fui aos Estados Unidos para participar de um programa de intercâmbio de jovens pesquisadores do “Sul Global”, vindos de países que outrora foram chamados de “em desenvolvimento”, “subdesenvolvidos” ou de “terceiro mundo”. Me espantei quando, em um domingo de folga, ao dirigir-me a moderna biblioteca da universidade em que estávamos, deparei com um tipo de setorização da sala de estudos que nunca tinha visto: por decibéis! Lá, um espaço com poucos livros e muitos computadores, havia um vasto setor que, sobre mesas e cadeiras, via-se uma placa indicando o limite sonoro de 50 decibéis. Mais ao fundo, onde localizavam-se apenas mesas individuais, outra placa o limite de 25 decibéis. No fundo da biblioteca, com apenas mesas individuais, separadas por pequenas divisórias e entremeadas por confortáveis cadeiras para leitura, havia uma taxatória placa em que se proclamava por silêncio absoluto através do texto “00 decibéis”. Minha primeira reação foi de admiração pelo grau de civilidade atingido pela elite de estudantes daquela universidade, notoriamente uma das maiores e mais caras daquele País. Contudo, logo em seguida, quando retornava para o alojamento, passei a pensar se as pessoas dali sabiam, ao menos aproximadamente, qual o volume sonoro e que tipo de barulho equivale a 50 ou a 25 decibéis, já que 00 decibéis, obviamente, qualquer pessoa saberia que significa barulho nenhum! (mais tarde vim a descobrir que 50 decibéis equivalem a uma conversa normal e 25 decibéis a fala sussurrada).
No evento de que participava, sobre os desafios para o desenvolvimento ao sul do equador, um dos principais temas discutidos era a poluição urbana. A discussão que se deu em uma manhã fria que anunciava o final da primavera tocou diretamente no tema que me inquietava após a visita à biblioteca. Viver em cidades talvez seja a principal característicos de nossa época. Embora essa forma de organização do espaço e da moradia seja uma invenção que data de milênios, pela primeira vez na história da humanidade mais da metade da população mundial mora nas cidades. Desse modo, grande parte dos problemas a serem enfrentados pela humanidade nas próximas décadas, como por exemplo as questões ambientais, serão problemas urbanos. Apesar das vantagens da vida na cidade, como o aumento da produtividade, a diversificação das atividades culturais e de lazer, a redefinição dos papéis familiares e maior equilíbrio nas relações de gênero, só para ficar em alguns exemplos, também somos obrigados a conviver com os problemas típicos desses espaços. O aumento da violência, a piora da qualidade do ar, a dificuldade de locomoção e de habitação, juntam-se a um típico problema urbano que, apesar de trazer danos à saúde individual e coletiva ainda tem sido pouco discutido e dimensionado: a poluição sonora.
À época do referido evento, já estava claro para mim – então morador do bairro de Copacabana no Rio de Janeiro – que o nível de decibéis suportável para que as pessoas pudessem se recolher à seus lares para atividades domésticas e descanso já havia sido ultrapassado enormemente. Viajando pelo país e pelo mundo percebi que a poluição sonora não era um privilégio do meu bairro e nem da minha cidade. Nas cidades, convivemos diariamente com um nível de ruído elevado, oriundo dos motores a diesel, buzinas, sirenes, geradores, fábricas, alto-falantes, furadeiras, martelos e – tentando se fazer ouvir em meio à balburdia – pessoas gritando. Contudo, qual é o nível de decibéis aceitável para descansarmos e recuperarmos nossa energia para o dia seguinte, no sentido estrito do que seria uma saudável e plena reprodução social? Apesar da medicina e da engenharia já terem estipulado níveis aceitáveis e perigosos de exposição ao ruído, a questão vai mais além: as pessoas comuns sabem qual o nível de ruído elas estão emitindo ao realizarem suas atividades? Quão acima de um limite sonoro aceitável elas viveriam? Afinal, todos sabem que há uma medida de volume de fácil apreensão e que hoje em dia estamos mais do que nunca aptos, com nossos smartphones, a monitorar esse volume?
Embora a solução para os problemas da poluição sonora não seja simples e trivial e passe por questões complexas como eficiência na produção dos motores a diesel, material utilizado na construção de casas e prédios, liberdade de expressão e zoneamento urbano, acredito que uma alfabetização auditiva possa ser o primeiro passo para a tomada de consciência individual e coletiva de que precisamos emitir menos ruídos se queremos viver um ambiente saudável, e que saúde realmente signifique algo mais do que ausência de doença. Assim como a noção de distância é facilitada por termos uma noção precisa do tamanho de 1 metro e a noção do tempo já foi totalmente internalizada de tanto que consultamos relógios (em geral, temos uma ideia bastante precisa do que são 1, 15 ou 30 minutos, mesmo sem precisar consultar o relógio). Quem sabe se fôssemos alfabetizados em termos de medidas de volume não nos sensibilizaríamos mais para o nível de ruído emitido em nossas cidades? Esse seria o primeiro passo para, quem sabe, passar a pensar em fazer a setorização das áreas urbanas por nível de ruído, e assim por diante, tentando construir cidades cujo ambiente seja cada vez mais saudável.
* Marden Campos é doutor em Demografia pelo CEDEPLAR/UFMG e bacharel em Ciências Econômicas pela UFMG. Também é Especialista em Gestão e Manejo Ambiental pela Universidade Federal de Lavras. Atualmente é Analista Socioeconômico do IBGE e professor colaborador do Mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais e da Especialização em Análise Ambiental e Gestão do Território da Escola Nacional de Ciências Estatísticas. ([email protected])
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Fonte: Portal EcoDebate