Por Giovanna Galvani.
Nos anos 80, o início da epidemia mundial de Aids deu à palavra o peso de estigmas, preconceitos e desconhecimentos frente a uma doença que se assemelhava a um veredito de morte. Os anos passaram e o cenário mudou. Houve avanço. Houve aceitação e respeito. E agora há mudança de direção: depois de anos de pesquisas e de se tornar referência no tratamento de pacientes infectados com HIV e diagnosticados com Aids, o Brasil decidiu retroceder.
Em maio, o Ministério da Saúde decidiu alterar o nome do Departamento de ISTs, Aids e Hepatites Virais para Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. A retirada do nome da doença que ainda mata 12 mil pessoas por ano no Brasil foi vista com preocupação pelas organizações que fizeram com que o País caminhasse para superar a doença, mas demonstram um caminho há tempos percorrido – o da supressão das estratégias que visam a prevenção à doença.
“A retirada do nome favorece a invisibilidade crescente da epidemia nas políticas públicas, assim como favorece a desmobilização de Estados e municípios. Seguindo o exemplo do ministério de retirar o nome, pode estimular mais negligência ou banalização da epidemia”, avalia Veriano Terto, vice-presidente do Observatório Nacional de Políticas de AIDS.
Para Ligia Kerr, médica sanitarista, epidemiologista membra da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) e professora titular aposentada da Universidade Federal do Ceará, uma das razões que colocou o Brasil na vanguarda do tratamento gratuito e efetivo para HIV e Aids foi a união entre sociedade civil e membros de organizações pela causa – que carregavam consigo dados técnicos e informações precisas. “Isso permitia uma reflexão o tempo todo sobre onde e como precisávamos mudar”, diz Kerr.
A pesquisadora afirma que as mudanças, no entanto, não são de hoje e se acumulam desde 2012, ainda sob gestão de Dilma Rousseff. “O novo nome é uma consolidação, no sentido de dizer: ‘estamos dando tão pouca importância que vamos tirar até o nome Aids disso daí’ ”, afirma. Para ela, a restrição a campanhas de conscientização mais incisivas e diretas e o corte no apoio às ONGs consolidaram esse cenário.
“Em uma pesquisa que fizemos em 2012, cerca de 550 homens em um total de quase 4200 descobriu apenas na hora que era infectado com o HIV”, relata Kerr. “Há um crescimento grande na população jovem e de classes mais baixas. Para eles, Aids não é mais problema porque já tem tratamento.”
Contraponto
O Ministério da Saúde foi notificado pelo Ministério Público Federal no dia 24 de junho, por maiores explicações sobre como vem sendo dada a continuidade e eficiência da política brasileira de enfrentamento ao HIV/Aids. A resposta deveria ser dada em um prazo de 15 dias, mas ainda não foi concluída.
Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que “a estratégia de resposta brasileira ao HIV não será prejudicada com a reestruturação da Secretaria de Vigilância em Saúde. A intenção do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis é trabalhar com as doenças mais comuns nas populações com maior vulnerabilidade e com os mesmos condicionantes sociais.”
“O Brasil é reconhecido internacionalmente pelo protagonismo e pioneirismo na assistência ao paciente com HIV/Aids. A ampliação da assistência e a melhoria do diagnóstico são ações que continuarão sendo adotadas pelo departamento, visando garantir acesso ao tratamento e melhoria da qualidade de vida dessa população”, diz o Ministério.
Para Veriano, a diferença de prevenção, contágio e tratamento entre o HIV, sífilis e tuberculose, que são citados pelo governo, causa desconfiança. “São doenças de dinâmicas epidemiológicas, de vias de transmissão diferentes, com impactos sociais muito diferenciados – tanto na vida individual quanto na coletiva.”
Para o pesquisador, o prenúncio de um conservadorismo que ‘arrase terras’, como tem ocorrido com o meio ambiente e a educação, pode prejudicar os empenhos em divulgar informações responsáveis sobre a prevenção de HIV, Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis – uma temática que passa, necessariamente, por discussões de sexualidade.
“A gente não vai poder explicar para um adolescente o que é sífilis e como se previne falando em abstinência sexual. Não funciona assim. Os dados do Ministério mostra que os jovens começam a idade sexual no Brasil aos 13 e 14 anos. Qual é a família que vai orientar? Muitos não conseguem”, analisa Terto.
“Sem informação e oportunidade de discussão e espaço seguro de fala e escuta, as pessoas não podem refletir, escolher e tomar decisões mais bem informadas e mais racionais sobre a vida sexual”, conclui.