Por Míriam Santini de Abreu.
Há poucos dias, caminhando nas proximidades da Câmara de Vereadores de Florianópolis, ouvi uma conversa. Um rapaz perguntava a uma moça sobre um vereador:
– Mas ele é de que bairro?
Isso de vereador “de bairro” deve ser herança das Intendências. E quem acompanha a Câmara de Florianópolis nota que a política ali se move pelo bairro. Não é por acaso o desconhecimento, desinteresse, estupidez e má-fé da maioria dos legisladores pelos grandes temas da cidade. Só tratam da vida do bairro, onde muitas vezes reina a troca de favores por votos. Vereador “da cidade” são poucos, aqueles de olhos de libélula para ver a cidade de cabo a rabo.
Daí nasce a reflexão para hoje: falar de “meio ambiente”, “desenvolvimento sustentável” e “justiça climática” agora é moda em campanhas eleitorais da esquerda à direita. É “politicamente correto” incluir o tema nas propostas para o Executivo e o Legislativo. Mas há que recordar uma reflexão do geógrafo Milton Santos: o discurso sobre a coisa, no nosso tempo, tomou o lugar da coisa. Nas redes sociais é pior ainda.
Então o caminho para ver o que está atrás do discurso é a práxis. Ação na vida cotidiana orientada por conhecimento. Um critério: onde estavam e como se movimentaram os corpos desses discursos nas grandes lutas da cidade para defendê-la dos vendilhões a serviço do lucro de poucos?
Algumas grandes lutas: 1) o Levante do TAC (Teatro Álvaro de Carvalho), em 2010, contra a proposta de revisão do Plano Diretor do então prefeito Dário Berger; 2) a mobilização popular contra a instalação do Estaleiro da OSX em Biguaçu; 3) a irrupção da Ocupação Amarildo de Souza no Norte da Ilha, gerando inédita criminalização jurídico-midiática; 4) a mobilização popular em 2013 e 2014 mais uma vez em protesto contra as mudanças no Plano Diretor na gestão do então prefeito César Souza Júnior, sob forte repressão policial; 5) a luta pela Ponta do Coral 100% Pública e contra os emissários submarinos e seus impactos ambientais, assim como as grandes marinas, os “engordamentos” de praias e a despoluição de baías, que consumiu milhões para nada; 6) a defesa das lagoas, rios, águas marinhas, manguezais, restingas, áreas de preservação permanente e unidades de conservação; 7) a mobilização popular a partir de 2020 mais uma vez em protesto contra as mudanças no Plano Diretor na gestão do então prefeito Gean Loureiro e depois de seu vice e hoje prefeito, Topázio Neto, mudança esta sacramentada em melancólica votação na Câmara de Vereadores em 2023.
A falta de memória beneficia quem some com o corpo e aparece com o discurso. O jornalismo local, a serviço e a soldo dos interesses da atual gestão da prefeitura, joga a pá de cal na possibilidade de confrontar as candidaturas. Perguntas que não perguntam, respostas que nada dizem, encenação de jornalismo e de política.
Uma aula sobre como fazer? A edição de 26/27 de abril de 1986 no Jornal de Santa Catarina, o velho Santa impresso, que encontrei graças à jornalista Roseméri Laurindo, que entrevistamos para o projeto Repórteres SC, da equipe da Pobres & Nojentas. Ela guardou, entre outras, uma página dupla do standard, sem anúncio, com o seguinte título e linha de apoio: “OCUPAÇÃO DO SOLO: em debate as garantias de preservação da Ilha”. Ali está a síntese de uma mesa-redonda organizada pelo Santa, de duas horas e 30 minutos, para debater a regulamentação do chamado Plano Diretor dos Balneários e o processo de urbanização da capital. Foram nove convidados de diferentes campos de atuação e pontos de vista.
Em apenas duas páginas, um instigante retrato da cidade naquele período, ainda mais hoje, quando a prefeitura e o empresariado são as fontes predominantes a desfilar no jornalismo local revirando a cidade, plantando cimento e falando em “inclusão” e “desenvolvimento sustentável”. Destaque para as perguntas da jornalista: inteligentes, provocativas, capazes de instigar os entrevistados a efetivamente se expor, olho no olho, na mesa do jornal e na edição depois impressa. Roseméri e o Santa fizeram outras dessas, uma delas sobre a falta de moradia em Santa Catarina nos anos 1980 e com a qual estou escrevendo um artigo. Bah, Rose!
A eleição se alimenta da desconexão da política com a vida cotidiana, real, concreta. Desconexão que também é a marca do que se pratica como jornalismo hoje. Há que perseguir o Jornalismo. O Jornalismo que dá a volta nas coisas para nelas flagrar o mal dito no discurso. O escritor José Saramago ensina isso no documentário “Janela da Alma”. Ele fala sobre a coroa mui apreciada do Camarote Real no Teatro de Lisboa. De longe e de frente, enorme, dourada, magnífica. Mas, vista de trás, oca, repleta de pó e teias de aranha. Logo ele aprendeu uma lição da qual nunca se esqueceu: “Para conhecer as coisas, há que dar-lhes a volta. Dar-lhes a volta toda.”
Sim! Político “da cidade” tem que ter olhos de libélula. E jornalista também!
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