Por Ivan César Cima e Roberto Liebgott, Cimi Regional Sul.
Iniciamos essa análise da conjuntura lembrando e homenageando duas mulheres indígenas que nos deixaram em 2023. Em comum, além de suas lutas por suas terras, as duas viviam às margens de rodovias.
Do Rio Grande do Sul, a Xixa’i’ri Laurinda Borges, Kunhã Karaí, do povo Mbya Guarani, morreu com mais de 100 anos de idade. Vivia na Aldeia Estiva, às margens da rodovia RS-040. Sua vida foi dedicada à defesa dos modos de ser e viver dos Mbya sobre a Terra Mãe. Laurinda partiu sem ter sua terra demarcada, apesar da incessante luta de um século. Nos últimos anos de vida, seus opositores usaram a inconstitucional tese do marco temporal como justificativa para a negação de seus direitos.
De Dourados, em Mato Grasso do Sul, Damiana Cavanha, do Tekoha Apyka’i. Um pouco mais jovem, 84 anos, foi encontrada em frente a seu barraco, com o corpo cheio de hematomas. Levada ao hospital, não resistiu. Existiu e resistiu em barracos de lona, na beira de uma rodovia que rasga sua terra ancestral, sem nunca poder viver nela. Quando buscou entrar na terra, foi agredida, expulsa, ameaçada. Muitos dos seus acabaram mortos.
Damiana e Laurinda representam a resistência de uma vida inteira nas margens, sempre brutalizadas pelos invasores e seus capangas. Estes nunca deixaram de ser agraciados pelos governantes, através de bilionários Planos Safra liberados todos os anos – seja pelos social-democratas, pelos “sem medo de ser feliz”, pelos populistas extremistas e agora, de novo, pelos ditos progressistas.
A elas duas e a todos e todas que tombaram sem poder sentir a paz de viver dentro de seu território originário, nossa admiração pela luta e nossa indignação por terem feito tanto, mas nunca terem sido tratadas e tratados com justiça por aqueles e aquelas que deveriam respeitar seus direitos fundamentais à terra e à vida.
Dito isso, passamos a analisar a conjuntura a partir da eleição do presidente Lula, ocasião em que os povos indígenas no Brasil sentiram-se aliviados, pois se consolidaria, a partir de sua posse, o rompimento com a perspectiva genocida de Bolsonaro.
Antes da posse do presidente Lula – 1º de janeiro de 2023 – os movimentos indígena, indigenista e outros setores da sociedade que acompanham a causa indígena no país se alimentaram do sentimento de esperança. Isso ocorreu em função de discursos e anúncios de propostas, os quais indicavam que se entraria num período onde os direitos fundamentais à terra e a políticas públicas diferenciadas seriam incorporados e assumidos como prioritários no novo governo.
A esperança se espalhou pelos territórios indígenas e também quilombolas, porque os anúncios se comunicavam com aqueles e aquelas que tinham as suas vidas e histórias violentadas por um governo inimigo, que se declarava adepto à integração ou ao extermínio dos povos e comunidades originárias e tradicionais.
No dia da posse, na subida da rampa do Palácio do Planalto, tratada como rampa da diversidade, a presença de representantes dos povos indígenas, negros, quilombolas, crianças, deficientes físicos e mulheres expressava e simbolizava todas e todos os pobres e excluídos do país. Todo esse simbolismo indicava que o governo Lula III se destinaria, em suas bases fundamentais, ao atendimento dos direitos dos segmentos sociais representados naquela rampa.
O presidente Lula prometeu e criou o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), nomeando Sonia Guajajara, que havia sido eleita deputada federal, como ministra. Para o órgão indigenista, que passou a se chamar Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), escolheu a ex-deputada federal Joênia Wapichana. E, para a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), também escolheu um indígena, Ricardo Weibe, do povo Tapeba, do estado do Ceará.
Portanto, as estruturas responsáveis pela execução da política indigenista passaram a ser comandadas por duas mulheres e um homem indígenas. Para ambos os órgãos, houve a indicação – a inúmeros cargos de confiança – de pessoas pertencentes às comunidades indígenas de diferentes regiões do Brasil.
A partir desse ambiente de governo, os povos, país afora, deixaram a esperança de lado e passaram a criar expectativas quanto à necessidade de explicitação de um plano de ação a partir do qual se demarcasse as terras e se executasse políticas públicas voltadas para a segurança das vidas nas aldeias, ou fora delas, possibilitando a assistência em saúde e educação e o combate à fome, à violência e às invasões territoriais.
Havia também a expectativa de que medidas administrativas – portarias, instruções normativas e decretos – do governo anterior fossem revogadas de imediato, tais como o Parecer 001/2017 da Advocacia Geral da União (AGU) e a Instrução Normativa nº 09, da Funai, assim como outras iniciativas que inviabilizavam a garantia dos direitos indígenas.
Concomitante, lutava-se pela conclusão do julgamento do Processo de Repercussão Geral nº 1.017.365, que discutia, no Supremo Tribunal Federal (STF), a tese do marco temporal e os direitos originários. A sessão de julgamento definitivo acabou ocorrendo apenas no dia 27 de setembro de 2023. A análise desta decisão, assim como um olhar em relação às modulações propostas pela Suprema Corte, foi analisada no artigo Uma análise da tese jurídica contra o marco temporal definida pelo STF.
Passadas as expectativas e a falta de implementação de um plano de ação, os povos indígenas perceberam, no dia a dia, que seus problemas não retrocederam. Tanto o MPI como a Funai sofrem com a falta de orçamento para a execução de políticas assistenciais, bem como para demarcações e proteção dos territórios.
Passadas as expectativas e a falta de implementação de um plano de ação, os povos indígenas perceberam, no dia a dia, que seus problemas não retrocederam. A demora nas escolhas dos coordenadores regionais da Funai também contribuiu para os atrasos no encaminhamento de demandas mínimas das comunidades. Além disso, tanto o MPI como a Funai sofrem com a falta de orçamento para a execução de políticas assistenciais, bem como para demarcações e proteção dos territórios.
Nos territórios, as violências e as invasões não recuaram. Isso se evidenciou em Roraima, com a invasão de garimpeiros entre os Yanomami e no Pará, no território Munduruku. No caso Yanomami, as imagens das vítimas – especialmente crianças desnutridas – percorreram o mundo e não havia alternativa ao governo a não ser agir no sentido de combater o garimpo e buscar salvar as vidas.
Apesar de todo o empenho inicial, a situação do povo Yanomami permanece sem grandes modificações estruturais: garimpeiros voltaram a adentrar a terra com seus grandes maquinários, devido à falta de vigilância permanente do território. O governo federal não deu conta das demandas, pois foi inserido num ambiente de contradições, já que as próprias Forças Armadas, através da Aeronáutica e do Exército, manifestaram contrariedade e não adotaram, como deveriam, as ações de proteção, assistência e combate às invasões no território Yanomami.
Após pressão ruralista, a atribuição de emitir portarias declaratórias de terras indígenas foi devolvida ao Ministério da Justiça, que, ao longo de todo o ano de 2023, não publicou nenhuma portaria. Ao contrário, silenciou sobre o tema dos direitos territoriais
O governo também foi pressionado pelas bancadas do agronegócio e do ruralismo no sentido de retirar funções demarcatórias do MPI, a quem competia a publicação das portarias declaratórias das terras identificadas e caracterizadas, pela Funai, como sendo de ocupação tradicional. Essa atribuição foi devolvida ao Ministério da Justiça, que, ao longo de todo o ano de 2023, não publicou nenhuma portaria. Ao contrário, silenciou sobre o tema dos direitos territoriais.
A Funai, por sua vez, deu “encaminhamento para portarias declaratórias de 25 terras indígenas e constituição de 37 Grupos Técnicos de identificação e delimitação” (Assessoria de Comunicação da Funai). Já a Presidência da República homologou apenas oito terras indígenas – na sua maioria, em áreas de pouco ou quase nenhum conflito. Há que se registrar que a Casa Civil da Presidência da República parece ser a centralizadora e “amortecedora” das reivindicações dos povos indígenas. É naquele espaço onde se discutem e se negociam os direitos indígenas junto aos poderosos grupos econômicos e ao parlamento.
No Congresso Nacional, embora os deputados e senadores estivessem cientes do julgamento do processo de repercussão geral, sobre os direitos indígenas, no âmbito do STF, aprovaram, de forma acelerada, o PL 490, que depois, quando tramitou no Senado, foi transformado no PL 2903/2023. Esta proposição legislativa impõe restrições aos direitos indígenas, bem como introduz, nas normas jurídicas, a tese do marco temporal, que acabou rejeitada pelo STF.
Após a aprovação do PL 2903/2023 no Senado Federal, o presidente da República realizou a apreciação do seu conteúdo e vetou grande parte dele. Mas, em 14 de dezembro, o Congresso Nacional rejeitou a maioria dos vetos e tornou eficaz a tese do marco temporal, que agora vem expressa na Lei 14.701/2023. Caberá às organizações indígenas, indigenistas e partidos de esquerda a tarefa de buscar impugnar a lei através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao STF.
No que se refere ao trabalho do MPI, sua direção teve como prioridades, ao longo de 2023, a realização de viagens pelos estados, onde se buscou ouvir indígenas; participação em eventos acadêmicos, sociais e junto a organismos internacionais; o ministério buscou, ainda, realizar mediações em conflitos, especialmente aqueles que atentavam contra as vidas e os territórios, com invasões e arrendamentos de terras.
Na ausência de um projeto de política indigenista, somando-se à falta de recursos financeiros, às pressões das bancadas, especialmente, da mineração e do agronegócio/ruralistas e às indisposições no governo – onde alguns apoiavam e outros detestavam os indígenas –, as ações do MPI e da Funai se vincularam à sistematização das demandas, identificação e controle das invasões e acompanhamento dos julgamentos dos processos judiciais, que exigiam o cumprimento de sentenças.
Em Mato Grosso do Sul, sem uma intervenção eficaz e contundente do governo federal, ampliam-se dramaticamente as violências contra as comunidades Guarani e Kaiowá. Há narrativas de torturas, ataques a tiros, cárcere privado, sequestro e desaparecimento de pessoas. Nem equipes de jornalistas estrangeiros escapam, vítimas de espancamento e tortura. Os invasores, com seus jagunços, não se intimidam e desafiam os órgãos públicos e suas forças de segurança, impondo a barbárie.
O governo federal assiste a tudo sem muita reação. Ao contrário, aceita que um de seus ministros se licencie do cargo e retorne ao Senado Federal para, contra seu próprio governo, votar pela rejeição dos vetos do presidente da República na questão do marco temporal.
Também tem sido assim no Pará, na Terra Indígena Apyterewa, onde uma equipe do governo federal sofreu uma emboscada. O veículo em que trafegavam ficou cravejado de tiros. Um servidor foi atingido por um tiro. O governo federal assiste a tudo sem muita reação. Ao contrário, aceita que um de seus ministros se licencie do cargo e retorne ao Senado Federal para, contra seu próprio governo, votar pela rejeição dos vetos do presidente da República na questão do marco temporal.
O arrendamento de terras indígenas, uma prática recorrente nas últimas décadas, seguiu negligenciado na esfera governamental e nos órgãos de controle, possibilitando o aprofundamento da prática ilegal, formando, em seu entorno, um cinturão de exclusão, de esbulho territorial e de violência contra famílias indígenas. Ações práticas no combate a essa mazela são opacas. Não se observa iniciativas no sentido de reflexão, de construção e de implementação de políticas públicas específicas e diferenciadas de apoio e fomento às comunidades indígenas no Brasil, que garanta o direito ao usufruto exclusivo das terras, e tendo como enfoque a produção de alimentos e a garantia de renda às famílias indígenas nos seus territórios.
Houve, portanto, ao logo deste primeiro ano, esperanças, expectativas, gargalos, problemas, pedidos de paciência, passando-se a um contexto de decepções, porque os povos indígenas têm pressa em relação à garantia de seus direitos fundamentais. E não se pode negar as promessas que foram sendo desenhadas pelo governo Lula num quadro onde as soluções viriam de forma natural, porque as causas dos povos indígenas e também dos irmãos e irmãs quilombolas são de todos. E mais notoriedade se deu à temática indígena quando o presidente da República disse estar bem mais sensibilizado agora com essas causas do que no passado.
Os direitos dos povos indígenas e quilombolas acabaram sendo usados como moedas de troca junto aos ruralistas e empresários. Infelizmente, o MPI, em relação ao núcleo de poder dentro do governo, tem a sua estrutura caracterizada como periférica, assim como o Meio Ambiente e os Direitos Humanos.
E não foi, de fato, o que aconteceu. Os direitos dos povos indígenas e quilombolas acabaram sendo usados como moedas de troca junto aos ruralistas e empresários. Infelizmente, o MPI, em relação ao núcleo de poder dentro do governo, tem a sua estrutura caracterizada como periférica, assim como o Meio Ambiente e os Direitos Humanos.
Por isso, permanece ausente, apesar dos direitos territoriais terem centralizado os debates durante todo o ano de 2023 nos poderes Legislativo e Judiciário. E o ministério acabou esvaziado, funcionando como uma área de marketing para os olhares do exterior e mantido de fora das discussões sobre as ações de governo em relação às demarcações de terras. Um dia, talvez, saberemos sobre o papel do ministro-chefe da Casa Civil na condução das tratativas para impedir avanços nos procedimentos de regularizações fundiárias.
No que tange às políticas assistenciais, o governo não tomou medidas estruturantes. A política de atenção à saúde permanece intacta. Não houve mudanças efetivas para a superação das fragilidades na assistência básica diante das graves situações de vulnerabilidade, como a ausência de saneamento básico. A intensificação da crise climática tem mostrado uma realidade em saúde ainda mais dolorosa nas comunidades.
Não houve, da parte do governo, incremento com o objetivo de auxiliar na superação dos danos e garantir apoios emergenciais nas comunidades, especialmente nas regiões de enchentes e secas. E, para tumultuar ainda mais o ambiente já desgastado, o governo decidiu regulamentar a Agência Brasileira de Apoio à Gestão do SUS (AGSUS), dando a ela atribuição de gestora da política de saúde. Com essa medida, fragiliza a Sesai e torna viável a privatização da saúde indígena no Brasil. Esta temática foi analisada no artigo Do direito ao negócio: a privatização como ameaça à saúde indígena.
Já a educação escolar indígena é executada pelas secretarias de educação nos estados, mas sempre de forma voluntariosa, de parte de alguns, descompromissada de outros e desrespeitosa pela maioria. Ou seja, o debate sobre a gestão da educação escolar indígena, a partir do Ministério da Educação, simplesmente não existiu. Há de se retomar os debates e a elaboração de uma política com estrutura, administração e gestão diferenciada, dentro de um subsistema específico.
Os povos indígenas, suas organizações e apoiadores perceberam, ao final do ano, que os direitos não serão assegurados sem luta articulada com as comunidades quilombolas e outros segmentos da sociedade, para juntos imporem suas pautas e demandas perante o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Não há porque ter paciência, não há porque esperar pelos de cima da pirâmide, já que eles se alimentam de acordos, negociatas e não se nutrem com as causas de vida e da justiça.
Chapecó (SC) e Porto Alegre (RS), dezembro de 2023.
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