Por Vinicius Gomes Melo.
Na semana em que o magnata conseguiu passar todos os limites (até mesmo para ele) ao incentivar hackers russos a invadirem os servidores do e-mail pessoal de Hillary Clinton, o tema “política externa” voltou a ser pauta e na corrida presidencial norte-americana e poderá desempenhar papel decisivo na escolha de quem ocupará a Casa Branca a partir de 2017.
Depois de sua declaração bombástica, o Partido Democrata não deixará tão cedo de ligar a imagem do candidato republicano à do premiê russo Vladimir Putin – a quem está recaindo a culpa sobre o recente vazamento do WikiLeaks – tudo por conta desse “convite” para que uma potência estrangeira lançasse uma operação de espionagem cibernética contra a possível próxima presidenta dos Estados Unidos.
Porém, entre todas as suas bravatas xenofóbicas, chiliques narcisistas e atitudes dignas de um moleque briguento no pátio da escola, há um assunto que Donald Trump já expôs um raro vislumbre de bom senso – ainda que enviesado: a política externa dos Estados Unidos.
Trump já vinha sendo acusado de adotar um comportamento amigável demais para com a Rússia: “Eu quero um relacionamento melhor com todos [os países], e com a Rússia. Se nós pudermos nos dar bem com a Rússia, isso será muito bom”, dissera ele, e que “ele se daria bem com Putin”.
Talvez, para aqueles que lidam com a política externa do país, deixar de ter Putin como um inimigo seja um pecado ainda maior do que a construção de um muro na fronteira com o México ou impedir que muçulmanos viajassem para os EUA, pois eram todos “terroristas em potencial”.
Poucos dias atrás, ele declarou que não mobilizaria a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para defender os países da Europa de uma hipotética invasão russa, a não ser que seus países membros estivessem pagando bem para ter os EUA como leão-de-chácara da Europa.
Essa, todavia, não foi a primeira vez que Trump deixava claro que não era tão fã da Otan, a principal aliança militar criada durante a Guerra Fria e ainda utilizada para manter as garras do temível Urso Russo longe dos outros países europeus.
“Eu acho que a Otan é obsoleta. Ela foi criada numa época em que havia a União Soviética, que era obviamente muito maior que a Rússia é hoje”, disse ele, durante um debate, em março deste ano.
À época, o colunista Stephen Cohen escreveu no The Nation que, “não importa o que se pense de Donald Trump como candidato presidencial, sua visão de política externa deveria ser bem recebida”.
Ainda que suas visões não fossem tão bem estruturadas, Cohen argumentou que, pelo menos, tais visões “desafiam as práticas e princípios bipartidárias (republicanos neoconservadores e democratas liberais) que norteiam a política externa em Washington desde a década de 1990 – e com resultados desastrosos”.
Segundo ele, essas políticas incluem “a premissa que os EUA são a única e indispensável superpotência que tem o direito de intervir quando bem entender, seja militarmente ou com mudança de regimes, e utilizando a Otan como sua própria Nações Unidas”.
Assim como também escreveu o comentarista politico Doug Bandow, na Forbes, “as pessoas de sempre que lidam com a política externa em todos os governos, republicanos e democratas, acreditam que os EUA devem intimidar todos adversários, lutar todas as guerras, defender todos os aliados, forçar a paz e solucionar todos conflitos”.
O principal argumento daqueles que defendem que os EUA continuem agindo como o xerife do mundo é a instabilidade internacional que supostamente assolaria o mundo se não fosse a vigia inabalável de Washington.
Todavia, os anos recentes mostram – do Iraque à Líbia, da Ucrânia à Síria, o aumento do terrorismo, a crise de refugiados que só aumenta e uma nova Guerra Fria contra a Rússia – que os Estados Unidos e a Otan são muito mais incendiários do que bombeiros.
No final de 2013, uma pesquisa indicou que para 68% dos entrevistados ao redor do mundo, com 66 mil pessoas em 68 países, conduzida pela Worldwide Independent Network of Market Research (WINMR) e Gallup International, a população mundial enxerga os EUA como a mais significante ameaça no planeta. Os EUA foram eleitos com uma larga margem (24%), enquanto em segundo lugar ficou o Paquistão (8%), seguido da China (6%). Afeganistão, Irã, Israel e Coreia do Norte empataram no quarto lugar (4%).
Obviamente, a crise na Ucrânia ainda não havia estourado, muito menos aconteceria um revivalda Guerra Fria, mas ainda sim é possível encontrar análises (essa e essa) sugerindo que Donald Trump não está de todo incorreto e que política externa norte-americana – não importando quem ocupe a Casa Branca – precisa sair do século 20, mesmo que isso signifique ser acusado ou acusada de isolacionista.
Certamente, os civis que ainda não viraram estatística de dano colateral nos ataques por dronena Somália, Iêmen, Paquistão e Afeganistão, ficariam agradecidos se os EUA se isolassem um pouco do resto do mundo.
Republicanos votando na Democrata
Não à toa que muitos neoconservadores da gema do Partido Republicano, que chegaram a fazer parte do movimento dissidente “Never Trump”, disseram que poderiam votar em Hillary Clinton.
“Acho que estou mais próximo de Hillary Clinton do que de Donald Trump, quando o assunto é política externa, e talvez comércio”, disse William Kristol, editor da neoconservadora Weekly Edition.
Kristol é alguém que ainda acredita que a invasão ilegal ao Iraque foi justa e que se recusa a acreditar que os EUA tenha intervindo, direta ou indiretamente, em 72 países soberanos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Ou seja, para saber para que lado fica o bom senso, basta tomar como norte a posição contrária dele.
Mas apesar de ser sugestivo observar que um republicano neoconservador intervencionista e belicoso dessa estirpe preferir votar na candidata do partido rival, Kristol não está sozinho no descontentamento com a visão de política externa de Trump.
Nesta quinta-feira (28), o Politico publicou um artigo afirmando que muitos profissionais em política externa do Partido Republicano “acreditam que Trump é um perigo maior para a segurança nacional dos EUA do que Clinton – e muitos deles dizem que votarão nela”.
De acordo com Michael Hirsch, autor do artigo, “pela primeira vez, possivelmente desde [a guerra do] Vietnã, o Partido Democrata agora é o partido que tem a expertise da segurança nacional – não apenas em seu próprio discurso, mas também aos olhos de especialistas no assunto em ambos os partidos”.
Entretanto, não é de hoje que Hillary é vista como uma “gavião” em pele de Democrata.
Em Washington, as figuras políticas são separadas em “gavião” e “pomba”, quando o princípio é o intervencionismo. Sendo que há muito tempo são os republicanos que vestem a penugem da ave predadora.
Um clássico exemplo foi a questão da invasão do Iraque durante as primárias democratas que escolheram Barack Obama como o candidato do partido.
Em 2002, Hillary foi a favor da invasão ilegal ao Iraque. Já em 2008, durante um debate, ela assumiu seu erro – não por ter votado a favor da guerra, mas por ter confiado em George W. Bush. “Eu acredito em diplomacia coercitiva”, disse ela.
“Não há diplomacia coerciva sem coerção”, escreveu o colunista Christopher Caldwell noFinancial Times. “Você não pode blefar em todas as mãos […] A concepção de Hillary sobre o poder dos EUA está ultrapassada, pois ela reside na disposição em interferir nos processos internos de países soberanos”.
Nesta quarta-feira (27), o comentarista internacional Micah Zenko escreveu na Foreign Policyque depois de inúmeras conversas com militares estacionados no Afeganistão e Paquistão, Hillary era de longe, a civil mais bem preparada nas reuniões e teleconferências.
“Eles contaram que Clinton possuía um entendimento íntimo com a doutrina militar, as siglas que o Pentágono utiliza, e os princípios de preparação militar”.
É por isso que o colunista alerta: “É impossível saber quais crises internacionais surgirão nos próximos naos, mas aqueles que votarem nela, devem estar cientes que Hillary lidará com tais crises tendo um longo histórico de apoiar e expandir intervenções militares”.
Mas o contrário também é verdadeiro. Apesar de toda estigma neoconservadora que o Partido Republicano carrega (e com justiça), é em uma de suas fileiras que o discurso de não-intervenção costuma fazer eco, muito mais que no liberal Partido Democrata.
Chamada de ala “libertária”, políticos como Dennis Kucinich e Ron Paul são alguns exemplos. Do lado do Partido Democrata, o maior exemplo seria Elizabeth Warren, senadora de Massachussets, que inclusive chegou a ser cogitada para entrar na chapa democrata com Hillary.
Trump “paz e amor” para o mundo?
Nada poderia estar mais longe disso.
Trump já disse abertamente que apoia a tortura (“simulação de afogamento seria uma brincadeirade criança“), apoiava assassinar as esposas e filhos de terroristas e, como escreveu Zenko, Trump é um grande fã de intervenções militares, “desde que elas não custem dinheiro”.
Mas como o The Nation escreveu à época, “o que Trump fez, da sua maneira, foi dar um pé na porta sobre uma importante e fundamental debate da política externa”, fazendo a simples pergunta “é do interesse dos EUA?”
De qualquer maneira, seja alguém com o ego do tamanho que Donald Trump tem, que não leva desaforo para casa e que está a um telefonema distante dos códigos de lançamento de mísseis nucleares; ou uma pessoa como Hillary Clinton, que tem a familiaridade e disposição para antagonizar e intervir militarmente em outros países, o resto do mundo não tem muito a comemorar, a princípio, com quem conquistar a presidência dos EUA no dia 8 de novembro.
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Do Blog de Vinicius Gomes Melo.
Fonte: Outras Palavras