Por Almir Albuquerque.
Durante muitos séculos, prevaleceu no mundo político o costume da hereditariedade no poder. O monarca governante transmitia automaticamente, sob as bênçãos da autoridade religiosa, o poder para seus próprios descendentes – geralmente o filho primogênito. O monopólio do exercício político ficava assim assegurado durante várias gerações para sua família.
Os burgueses revolucionaram a política no século XVIII ao romper com os costumes e as tradições do mundo feudal, e dentre as instituições que foram criticadas e combatidas estava a da hereditariedade no poder. A partir de então, o poder não mais emanava da vontade de deus e de alguns poucos escolhidos, mas do próprio povo. Através das eleições, o povo, teoricamente, elegeria alguém de seu próprio meio para governar em seu nome. E assim se colocaria fim na transmissão de poder dentro das mesmas famílias, favorecendo a competência individual. Colocaria?
Como muitas das bandeiras burguesas – igualdade, justiça, etc. – esta também só ficou no papel. E não só na política, mas também nos empreendimentos privados, onde um indivíduo geralmente herda de mão beijada o controle do patrimônio de um parente sem tem feito o menor esforço ou demonstrado capacidade para isso.
Ao contrário da bonita teoria da meritocracia individual, na prática, lançar parentes como herdeiros políticos é um fato característico de toda a política burguesa. Ainda mais no Brasil, onde este costume chega a ser sintomático. Desde a Primeira República vemos, por exemplo, fulano cativar uma base política por defender uma proposta simpática a uma parcela do eleitorado, e depois de 25 anos ou mais exercendo algum mandato no executivo, mas principalmente no legislativo, com esse capital eleitoral nas mãos, lançar a candidatura de seu filho ou parente próximo. Este, usando o sobrenome do político famoso, angaria o maior número de eleitores, e em breve poderá lançar ele mesmo a campanha de seu próprio filho, dando continuidade ao legado da família. Isso não parece ser ilegal – como na época antiga também não era ilegal o príncipe herdar o trono do rei – mas é ético na moralidade burguesa? É bom para a democracia que um mandato pertença a uma família?
Recentemente, depois de 10 mandatos consecutivos, Inocêncio de Oliveira disse que se aposentará da política. Poderia terminar aí a sua bonita (??!!) trajetória, mas o nobre deputado federal não tardou a anunciar: Sebastião Oliveira, seu primo, será seu “herdeiro” político. Outro exemplo: dos quatro filhos do deputado Jair Bolsonaro, três estão na política. Com base em quê?
Como alguém pode transmitir a sua “herança política” — que nada mais é do que um curral eleitoral — de mão em mão como se fosse um bem qualquer? E por que as pessoas elegem parentes de políticos que não tem nenhum histórico de grandes feitos, apenas porque ostenta o sobrenome de alguém?
Acredito que é perfeitamente aceitável e até desejável que um político de sucesso indique um sucessor para que seu eleitorado mantenha seu legado, mas por que necessariamente um parente? Por que as pessoas toleram esse favorecimento dado a parentes por pessoas bem colocadas, que não passa de puro nepotismo?
São esses casos que nos fazem refletir: a burguesia e seu liberalismo político no papel é uma coisa maravilhosa, um modelo justo, perfeito e igualitário. Mas na prática, ela acaba tendo as suas características negativas, tendendo a favorecer uns poucos privilegiados no exercício do poder, mantendo o mesmo fosso que havia no passado entre governantes e governados. E não acredito que esta seja uma pequena distorção, mas sim uma característica imanente do próprio sistema. A política continua sendo negócio de algumas poucas famílias.
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Fonte: Panorâmica Social. (Matéria de 2014, com total vigência).