Por Jeniffer Mendonça.
A polícia da Bahia foi responsável por 33 das 48 chacinas que aconteceram na capital Salvador e na região metropolitana no ano de 2023. Isso significa que o braço armado do Estado, sob a gestão do governador Jerônimo Rodrigues (PT) e do secretário de Segurança Pública Marcelo Werner, foi responsável por uma chacina a cada duas semanas em média, segundo relatório anual lançado nesta segunda-feira (29/1) pelo Instituto Fogo Cruzado, organização especializada em monitorar violência armada.
Nessas chacinas, as forças de segurança pública baianas ainda fizeram o maior número de vítimas: 136 civis mortos de um total de 190, ou seja, 72%. O índice superou o Rio de Janeiro, onde as polícias participaram de 29 das 47 chacinas na capital fluminense e na Grande Rio no ano passado, o que equivale a 34%, e que detém historicamente números mais elevados de tiroteios com atuação de agentes públicos.
O auge dessas chacinas na Bahia começou a partir do segundo semestre de 2023, quando, em cinco dias, 19 mortes ocorreram durante ações e operações policiais, entre 28 de julho e 1º de agosto, nas cidades de Salvador, Itatim e Camaçari. Com o pretexto de combate às facções criminosas, a Secretaria de Segurança Pública do estado (SSP-BA) e a Superintendência Regional da Polícia Federal implantaram em 11 de agosto a Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (Ficco) — denominação já usada pela Polícia Federal em outras ações pelo país com viés parecido.
É neste contexto, já com a Ficco em andamento, que ocorreu a morte do agente federal Lucas Caribé Monteiro de Almeida, 42 anos, no dia 15 de setembro no bairro Valéria, em Salvador. Ele participava da Operação Fauda quando foi atingido. Outros dois policiais (um federal e um civil) ficaram feridos e mais quatro pessoas morreram. As últimas foram apontadas como suspeitas da morte. Após o assassinato, o governo desencadeou uma série de operações policiais tidas como vingança.
O instituto aponta que setembro foi o mês com a maior letalidade policial, especialmente após o dia 15, que correspondeu a 41 das 72 vítimas de violência armada no período. O bairro de Valéria, inclusive, foi o segundo com mais operações policiais computadas (21), atrás apenas de Beiru/Tancredo Neves (30), também na capital.
Na ocasião, após pressão de movimentos sociais, o governo estadual publicou a Portaria nº 198 de 05 de setembro de 2023, a fim de instituir um grupo de trabalho (GT) para elaboração de um Plano Estadual de Redução da Letalidade Policial em 30 dias (cujo prazo foi prorrogado por mais 30 dias em novembro). O grupo não contém nenhum membro da sociedade civil com participação deliberativa, o que fez a Defensoria Pública, o Conselho Estadual de Proteção aos Direitos Humanos (CEPDH) e o Ministério Público estadual convocarem uma audiência pública, em outubro, para ouvir e reunir propostas do público para o plano e para que o governo prestasse esclarecimentos.
O Fogo Cruzado passou a atuar na Bahia a partir de julho de 2022, em parceria com a Iniciativa Negra por uma Nova Política Sobre Drogas, e verificou que os tiroteios com atuação das polícias foi crescendo a cada semestre, representando 37% dos 1.804 tiroteios mapeados ao longo de 2023, assim como o número de pessoas baleadas nessas ações (36% de 1.783). Ao todo, foram 659 tiroteios em operações policiais, com 639 feridos.
Para Dudu Ribeiro, cofundador e diretor executivo da Iniciativa Negra, existem duas razões para a Bahia se destacar na escalada de violência. A primeira é a configuração do crime organizado. “Eu acho que o mais significativo é que a Bahia e outros lugares do Nordeste vivem uma pulverização do comércio em muitas organizações, disputando o comércio de drogas e armas nos últimos 10 anos, mas se intensificou muito nos últimos cinco anos a chegada de novas organizações a partir do sudeste brasileiro, que são as principais organizações [PCC e Comando Vermelho], que trouxeram novos conflitos para o cenário de Salvador, da região metropolitana e de outras capitais do Nordeste”, afirma.
A outra é a própria atuação do estado, que há 17 anos é comandada pelo mesmo grupo político (PT) sob uma lógica que não se diferencia muito do que acontece no Rio de Janeiro, apesar de contextos diferentes. “Somado a isso, a continuidade da resposta do Estado tem sido no sentido de promover confrontos, de incentivar confrontos. Aqui em Salvador, no último ano, a gente monitorou que, em média, 35% dos eventos de tiroteio ocorreram em operações e ações policiais. Isso nos dá uma pista ruim na necessidade de uma mudança de rota, afinal de contas, é o Estado que está levando para as comunidades negras periféricas essa resposta de violência e tem colocado os moradores desses bairros na linha de tiro.”
A Bahia já estava em destaque no quesito letalidade policial quando da divulgação do 17º Anuário feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública no ano passado, com dados referentes a 2022. O estado computou 1.454 mortes decorrentes de intervenção policial, sendo o mais letal em números absolutos, ultrapassando pela primeira vez o Rio de Janeiro (1.330).
Em resposta à divulgação dos dados do Anuário, a SSP da Bahia emitiu nota dizendo que os mortos em confrontos com as polícias são “homicidas, traficantes, estupradores, assaltantes, entre outros criminosos”. Por esse motivo, justificou a pasta no mesmo texto, não computava esses óbitos junto com os dados de “morte praticada contra um inocente”.
De acordo com Dudu, em outubro, o governo estadual fez um workshop intitulado “(Re)Alinhando Dados para a Promoção da Paz e de Políticas de Segurança e Prevenção à Violência na Bahia” com a participação de autoridades, institutos de pesquisa e membros da sociedade civil. Do seminário, foi emitida uma carta de compromisso para a criação de um GT, em que o Fogo Cruzado e Iniciativa Negra participam, para qualificar a produção de dados e que deve iniciar os trabalhos em fevereiro. A Bahia não divulga dados de mortes cometidas pelas polícias em seu site oficial.
Além disso, uma promessa antiga que ainda segue sem definição há três anos são as câmeras nas fardas. Neste mês, o governador declarou que não iria estipular prazo para a instalação dos equipamentos após o Carnaval para “não criar expectativas”, após prometer que as câmeras já seriam implementadas até o final de 2023. A licitação dos aparelhos já tem uma empresa vencedora, que é a Advanta, a mesma que tem um consórcio com a Axon em São Paulo, e o governo federal ainda fez uma doação de 200 equipamentos a partir de uma parceria com a Embaixada dos Estados Unidos.
“Do ponto de vista da instalação das câmeras já está ficando um processo que nos envergonha”, critica Dudu Ribeiro. “Isso nos dá uma sinalização de que não é um problema burocrático, é muito mais uma perspectiva política que tem atrasado a instalação dessas câmeras”.
Já no Rio de Janeiro, a questão da letalidade policial também requer atenção. Dos 2.953 tiroteios totais, a maior parte (34%) é motivada por operações policiais. Contudo, houve uma redução de 2022 para 2023 nos tiroteios em ações policiais (de 1251 para 999), baleados (1323 para 977), de chacinas policiais (41 para 29) e mortos nessas chacinas (de 194 para 117).
O cenário, contudo, não é positivo, já que são três tiroteios por ações da polícia por dia, em média. Além disso, ao olhar detalhadamente para as regiões, a zona oeste do Rio foi a que mais cresceu em número de tiroteios (+53%), de mortos (+104%) e de feridos (+40%) em 2023, de acordo com o Fogo Cruzado. Quatro dos cinco bairros que mais tiveram ações policiais foram nessa região, com exceção da Maré, que fica na zona norte da cidade.
Isso se dá pelo acirramento da disputa territorial entre facções e milicianos que começou em 2021, após Wellington da Silva Braga, o Ecko, chefe da maior milícia da zona oeste e de regiões da Baixada Fluminense, ter sido morto em operação policial. Em outubro do ano passado, a onda de terror gerou mortes e 35 ônibus queimados depois do sobrinho dele ter sido morto em ação da Polícia Civil. O cenário fez com que o miliciano Luís Antonio da Silva Braga, irmão de Ecko conhecido como Zinho, se entregasse à polícia em 25 de dezembro de 2023.
“Essa obsessão do governo do estado do Rio de Janeiro em prender apenas as grandes lideranças e achar que com isso resolve o problema do conflito armado do Rio de Janeiro é equivocada”, critica Daniel Hirata, que é coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF). “É evidente que essas lideranças têm que ser presas, mas, por outro lado, é necessário também entender que não necessariamente a prisão delas vai desarticular as redes criminais. E por outro lado, o impacto, a consequência, os efeitos dessa atuação sobre essas lideranças vai causar essa crise sucessória que amplifica o conflito armado”.
Ele aponta que apesar de estarem num território hegemonicamente controlado pelas milícias, bairros como Vila Kennedy e Cidade de Deus têm “as maiores concentrações do poderio bélico” do Comando Vermelho. Pesquisas do Geni já identificaram que operações policiais costumam ocorrer mais em áreas ocupadas por facções do que pelas milícias. “Isso mostra por um lado que o Estado não foi capaz nem de frear a violência armada desses lugares nem de atuar com forças policiais de forma a não potencializar o conflito no que diz respeito ao aumento das mortes, como já é muito conhecido aqui do Rio. Você tem lugares com conflito entre grupos armados, a população está ali no meio do fogo cruzado, e esse aumento da letalidade policial nesses lugares vai mostrando que as forças policiais não estão exatamente protegendo a população. Elas têm intensificado os conflitos”, avalia.
Além disso, o governo estadual não tem se comprometido com a redução da letalidade policial. A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, que ficou conhecida como ADPF das Favelas e tinha como determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) a proibição de operações policiais em favelas no contexto da pandemia de 2020, virou uma demanda por um plano de redução da letalidade. Dentre as determinações da corte, está o uso de câmeras na fardas, o que começou a acontecer em julho de 2023.
O governo sob a gestão Claudio Castro (PL) já enviou ao STF ao menos duas versões que não foram consideradas suficientes. O Ministério Público Federal reforçou essa necessidade ao emitir recomendação sobre a criação do plano.
Em novembro do ano passado, Castro recriou a Secretaria de Segurança Pública, que, para Hirata, ainda tem atuação nebulosa. “Essa estrutura institucional ainda é uma incógnita, porque de fato a gente não entende direito, porque não foram extintas a Secretaria de Polícia Civil e a Secretaria de Polícia Militar. Me parece que a Secretaria de Segurança Pública é uma secretaria muito fraca, que não consegue, de fato, nem coordenar as ações das polícias nem controlar com a devida importância os excessos das polícias”, analisa.
O que diz o governo da Bahia
A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública sobre os dados do relatório e a análise do pesquisador. A pasta encaminhou a seguinte nota, sem responder sobre a letalidade policial:
A Secretaria da Segurança Pública ressalta que as mortes violentas apresentaram redução de 6% na Bahia, na comparação com o ano de 2022. Destaca ainda que o número absoluto de assassinatos foi o menor dos últimos sete anos. A SSP informa ainda que o reforço no combate ao crime organizado resultou na apreensão recorde de 54 fuzis (maior da história) e de 6.006 armas de fogo.
O que diz o governo do Rio de Janeiro
A reportagem também procurou as secretarias de Segurança Pública, Polícia Civil e Polícia Militar sobre o relatório e as observações feitas pelo pesquisador.
Apesar de ter enviado o documento do relatório que contém a metodologia do instituto, a Secretaria de Polícia Civil encaminhou a seguinte nota:
A Secretaria de Estado de Polícia Civil (Sepol) desconhece a metodologia utilizada para a confecção do levantamento citado e informa que as ações da instituição são norteadas com base em dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP).
Conforme dados divulgados pelo ISP, o estado do Rio registrou reduções expressivas nos crimes contra a vida. O indicador estratégico Letalidade Violenta (homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte, morte por intervenção de agente do Estado e roubo seguido de morte) diminuiu 5% em de janeiro a novembro de 2023, comparado com igual período do ano anterior. Ambos os cenários registraram o número mais baixo de vítimas desde 1991.Quanto às ações da Polícia Civil, todas são realizadas por agentes capacitados, após minucioso planejamento, priorizando sempre a preservação de vidas, tanto dos policiais quanto dos cidadãos.
A instituição ressalta que possui a maior Agência Central de Inteligência do ramo da segurança pública estadual do país, onde estão concentrados todos os setores que buscam e produzem conhecimentos para assessorar na tomada de decisões estratégicas e operacionais de combate ao crime.A Sepol acrescenta que a atuação em comunidades é parte das ações de combate à criminalidade e se trata de um trabalho fundamental, uma vez que as organizações criminosas utilizam os recursos advindos com as práticas delituosas para financiar seus domínios territoriais, com a restrição de liberdade dos moradores das regiões ocupadas por elas.
A Secretaria da PM enviou resposta semelhante:
A Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informa que, até o momento, não recebemos as informações sobre o estudo relatado pela reportagem. Cabe ressaltar que a Corporação leva em consideração sempre os dados oficiais divulgados pelo Instituto de Segurança Pública.
E a Secretaria de Segurança Pública (Sesp) deu a seguinte resposta:
A Secretaria de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro informa que 2023 encerrou com o menor número de mortes violentas em 34 anos. O indicador Letalidade Violenta, que são crimes contra a vida, registrou uma redução de 5% de janeiro a dezembro de 2023, quando comparado com o mesmo período do ano anterior.
Os números são do Instituto de Segurança Pública, órgão que compila os dados oficiais do Estado.
O empenho das polícias do Estado está refletido nos resultados: o número de fuzis retirados de circulação aumentou 28%, alcançando a marca de 610 armas recolhidas, a maior apreensão dos últimos 16 anos. Ainda em 2023, 6.281 armas de fogo foram retiradas das mãos de criminosos no estado do Rio, cerca de 16 por dia. Além disso, as polícias Civil e Militar realizaram 36.952 prisões em flagrante no ano e recuperaram, no mesmo período, 14.675 veículos roubados.
Em relação a região de Jacarepaguá, a SESP informa que as forças de segurança do Estado estão empenhadas na estabilização da região, e suas ações têm como prioridade a preservação de vidas.
A 8ª Delegacia de Polícia Judiciária Militar (DPJM) da Polícia Militar está atuando diretamente no combate a milícia daquela região. As ações são integradas com a Polícia Civil no intuito de identificar e localizar os criminosos.
A Polícia Militar permanece com reforço nas áreas de policiamento do 18º BPM (Jacarepaguá) e do 31º BPM (Recreio dos Bandeirantes), com apoio de todas as unidades do Comando de Operações Especiais (COE) – BOPE, BPChq, BAC e GAM – além de equipes das Rondas Especiais e Controle de Multidões (RECOM).
E a Polícia Civil monitora as articulações e movimentações criminosas. Por meio de investigações, operações e ações integradas com a Polícia Militar, a Sepol combate a ampliação dos territórios e busca a captura dos líderes destas organizações criminosas. Várias lideranças foram capturadas, tais como Wellington da Silva Braga, o “Ecko”, chefe do maior grupo paramilitar do território fluminense e Delson Lima Neto, o “Delsinho”, irmão de Danilo Dias Lima, o “Tandera”.
Vale reforçar que a Polícia Civil conta com a Agência Central de Inteligência, inaugurada no governo Cláudio Castro, a maior do ramo da segurança pública estadual do país, que assessora as ações estratégicas e operacionais no combate ao crime.
Reportagem atualizada às 11h37, de 31/1/2024, para incluir resposta da Sesp-RJ.