Moro estudou a operação “Mãos Limpas” da Itália. Desenvolveu a Lava Jato baseado no que aprendeu. Mas em seu estudo pulou algo crucial para evitar sua própria queda enquanto ator político fundamental no regime: a análise das classes sociais e seus interesses por trás da formação da “opinião pública”. As mudanças em diferentes frações da burguesia explicam a ascensão e depois o espatifar no chão dos atores políticos e não de seu legado em ataques aos trabalhadores. Falar da história da Lava Jato é falar também de poder emprestado e do poder verdadeiro, e dos efeitos duradouros para além de seus “heróis” burgueses passageiros.
Por Leandro Lanfredi em Esquerda Diário.
O que Moro aprendeu e copiou da Mãos Limpas
Poucos dias depois daquela reacionária votação do impeachment, Moro escrevia a introdução e um artigo em um livro sobre a operação “Mãos Limpas”. Na introdução destacava que a “lição a ser aprendida (…) é que a superação da corrupção sistêmica exige uma conjugação de esforços das instituições e da sociedade civil democrática” (Barbacetto 2016, p.9). Na análise da sociedade civil a “opinião pública” e os “formadores de opinião” aparecem de forma separada e desconectada com os interesses de classe por trás justamente dos “formadores de opinião”. Existe nele uma atenção especial com o que ele chama de “opinião pública esclarecida”, conceito que ele não desenvolve, mas pode-se supor que deve significar algo como os comentaristas da Rede Globo, visto que se trata de toda uma argumentação para que parcelas reduzidas da população influenciem outras mas não aparecem os interesses da classe dominante por trás disso, e justamente a mudança nesses interesses ajuda a entender a ascensão e queda do “herói” de Maringá.
Em artigo no mesmo livro ele destaca a maneira pretoriana de operar da Mãos Limpas que ele copiaria para o Brasil: “pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita que outras já teriam confessado (…) disseminação de informações sobre uma corrente de confissões (…) isolamento na prisão (…) delação premiada” (idem, p.879) e especialmente “publicidade conferida às investigações (…) garantiu o apoio da opinião pública” (p.881).
Neste artigo há todo o arcabouço autoritário conhecido. Não há no artigo menção a combinar o jogo com o procurador Dallagnol, nem haveria como ter, pois na Itália o juiz que investiga não é o que julga e o “juiz investigador” faz o papel casado que Moro-Dallagnol fizeram. Motivo legal que foi a desculpa com que o STF não somente anulou as sentenças de Moro contra Lula mas o julgou suspeito, limpando sua própria trajetória até ali (o que trataremos mais à frente).
Também não há nem em Moro nem nos italianos que narram sua versão da operação europeia qualquer menção a relações com Washington. Evidentemente há suspeitas já que a operação na Itália minou o sistema partidário italiano, especialmente a centro-esquerda social-democrata e eurocomunista, praticamente não prendeu ninguém e teve como consequência mudanças na geopolítica italiana no Mediterrâneo e particularmente o único feito “indelével” da ação, segundo um procurador italiano foi transferir riquezas a mãos privadas: “sem a mãos limpas não teria acontecido a reviravolta das privatizações” (idem 53). Em menos de três anos da operação já haviam sido privatizados a empresa estatal de petróleo (ENI), bancos, empresas estatais de seguros.
Justamente o mesmo legado privatista, com o agravante do Brasil ser um país dependente e não imperialista, Moro também garantiu, mesmo que depois tenha se esmaecido enquanto ator político crucial no regime. Diferente dos italianos ele deixou rastros muito claros de seus vínculos com os EUA, desde as menções a ele nos documentos diplomáticos vazados, os Wikileaks, bem como nas inúmeras negociações ilegais do MPF-PR com o State Departement.
Tal como a sua inspiração italiana, a Lava Jato está marcada por um profundo sucesso como ferramenta para mudança de regime, para abrir caminho a imensos ataques, privatizações, mas ao mesmo tempo, tal como a italiana resultou em ocaso de seus protagonistas enquanto políticos de primeira relevância.
A “opinião pública”, e as classes sociais na ascensão de Moro e da Lava Jato como atores políticos fundamentais
A ascensão de Moro e da Lava Jato seguiu perfeitamente o roteiro delineado nos artigos sobre a Mãos Limpas. Procedimentos autoritários, utilização da mídia, e confluir das instituições e “opinião pública esclarecida” em torno do objetivo. O objetivo, nunca foi acabar com a corrupção é claro mas intervir na política com dois objetivos: 1) econômico e geopolítico – minando todos setores onde estatais ou burgueses brasileiros competiam no mercado mundial; 2) político – escolhendo precisamente quem atacar para garantir que houvesse o golpe institucional e sua continuidade, mesmo que com o filho semi-indesejado Bolsonaro, para assim aumentar os efeitos econômicos, garantindo ataques muito maiores e mais rápidos do que o que o PT fazia.
Os objetivos eram esses e não a corrupção. Se não, Moro teria seguido coisas que delatores falavam sobre bancos, sobre empresas imperialistas, mas ele conscientemente ignorou delações que falavam de carteis internacionais, como denunciávamos meia década atrás.
Na ascensão de Moro e da Lava Jato como atores políticos (não votados) de fundamental importância no regime contaram com o claríssimo papel de apoio e aval fornecido pelo STF, mídia, Forças Armadas, bem como a FIESP e seus patos, e a Bovespa que demandava o golpe. A Lava Jato era o aríete para arrombar os portões da cidadela. Facilitou o caminho a esse desfecho, todo profundo desgaste do PT e particularmente do governo Dilma no movimento de massas. Dilma se elegeu jurando “que não retiraria direitos nem que a vaca tussa” e realizou o contrário. Também last but not least a insistência do PT em não mobilizar contra o golpe, mas confiar no desfecho institucional (naqueles tempos se dizia que o Senado, “mais qualificado”, iria barrar).
A força desempenhada pelo juiz da 13ª Vara de Curitiba era uma força emprestada. Não estava em si, não estava em sua comunicação direta com a massa e qualquer organicidade com qualquer classe social, estava no fato que a burguesia e os atores institucionais queriam desenvolver a Lava Jato. Bem que Dallagnol tentou criar um fundo bilionário com dinheiro da Petrobras para azeitar essa relação direta, mas tanto o PGR Janot como o STF o barraram.
O judiciário brasileiro, com salários e benefícios nababescos, tem entre suas fileiras um peso desproporcional de gente sulista, do interior, filhos de pequeno-burgueses e de filhos de outros membros da cúpula do funcionalismo, como já mostrávamos em artigo utilizando pesquisa empírica do próprio judiciário. Moro e Dallagnol encaixam-se perfeitamente na sociologia de sua categoria.
O que fez que estes atores, aparentemente periféricos e secundários ficassem no centro da política nacional, nem que fosse por alguns anos?
O local de onde são oriundos muitos dos juízes está passando, há vários anos, por importante transformação econômica e social. Há um crescente agronegócio, tal como no centro-oeste e parte do norte do país, com fortalecimento de uma burguesia, ampliação da camada pequeno-burguesa e ainda uma formação de um proletariado de indústrias primárias. Nesses locais Bolsonaro teve altas votações em 2018 e segue tendo boa popularidade, ali há também um peso evangélico superior à média nacional (e também a antípoda potencial mais forte ao bolsonarismo, ali superando a média nacional o proletariado é de maioria feminina).
Com essas transformações em curso, e com crescimento econômico local foi possível que se forjasse um bloco político entre a burguesia do agronegócio, os novos pequenos-proprietários, toda extensa camada de caminhoneiros autônomos (ao menos 600mil nos números oficiais) e todo uma cúpula do funcionalismo que queria mais poder, queria deslocar os poderes do regime de 88, e abrir caminho para si, fazendo do país uma “república de Curitiba”. Esse “bloco interiorano” por sua vez não caminhou sozinho, como dissemos, foi erguido mais alto com as mãos do STF, das Forças Armadas, com toda cúpula das igrejas, a Globo.
Essa dinâmica é muito similar à explicação dada por Gramsci sobre protagonismo de setores pequeno-burgueses e desfechos em situações de crise orgânica:
“A primeira investigação a fazer é esta: existe em um determinado país um estrato social difuso para o qual a carreira burocrática, civil e militar seja um elemento muito importante da vida econômica e de afirmação política (participação efetiva no poder, ainda que seja indiretamente por “extorsão”?. Os sulistas do interior e moradores do centro-oeste já respondemos. A investigação de Gramsci continua: “o processo se acelera quando a “vontade” específica desse grupo coincide com a vontade e os interesses imediatos da classe alta; não somente o processo se acelera, mas também se manifesta imediatamente a “força militar” desse estrato, que uma vez organizado dita lei às classes altas, ao menos no que diz respeito à “forma” da solução e não a seu conteúdo”. (Cadernos do Cárcere 13, XXIII).
Com uma força emprestada, confluindo sua “vontade” com a classe alta esse setor avançou. Junto com Bolsonaro esboçaram uma tentativa de mudar ainda mais profundamente o regime, fazendo desaparecer o “presidencialismo de coalizão” para colocar no lugar um “presidencialismo de coerção” que tomasse as mãos de Moro, Lava Jato, e dos militares para disciplinar outros poderes (e assim até mesmo ditar a “forma da solução” e não o “conteúdo” de como enterrar o regime de 88).
Essa tentativa fracassou por uma multiplicidade de fatores, a mudança de política do Departamento de Justiça dos EUA perante a Lava Jato (criada sob os democratas) e depois bombardeada por jornal financiado por bilionário ligado aos democratas, a eleição de Biden e a pandemia terminaram de sepultar um caminho que já estava bem difícil de se concretizar desde o ano passado. E agora se somou toda uma mudança de humor em setores de massa diante do flagrante negacionismo presidencial e as crescentes misérias impostas as massas, tornando ainda mais opaco o brilho da Lava Jato e seu príncipe enquanto atores fundamentais do regime. Mas é bom frisar, diferente da operação ideológica operada pelo PT que tende a separar o político e institucional do social e econômico, a Lava Jato e Moro vivem como uma partícula da responsabilidade (se somam outras responsabilidades) de cada contrato intermitente, de cada privatização, de cada avanço na primarização do país.
As mudanças de fundo que minaram o poder emprestado da Lava Jato
Diversos desenvolvimentos políticos nacionais e internacionais minaram o poder “emprestado” que a Lava Jato teve. Internacionalmente já mencionamos como o “deep state” americano mudou sua política de como usar o judiciário local, e até o momento não há nenhum indício de que Biden pretenda mudar o curso. Um regime político que se assente sobre todas as bases do regime do golpe, mantenha toda sua maior subordinação aos EUA, mesmo que conte com o PT dentro dele, não parece em nada disfuncional aos EUA e já cumpre um papel de isolar os aliados tropicais do trumpismo. A consolidação do já conquistado, a consolidação dos efeitos econômicos e políticos do golpe e da Lava Jato pode acontecer a despeito do lugar da Lava Jato no próprio regime.
Outras mudanças podem ser buscadas dentro do país para entender o ocaso enquanto ator político crucial. Dentro do bloco “interiorano” que deu sustentação não somente a Bolsonaro como também a Moro há nascentes sinais de divisão. Um exemplo delas pode se notar na Aprosoja – principal patronal mato-grossense e nome forte do apoio empresarial ao movimento de caminhoneiros em 2018 – emitiu nota criticando o ministro Lewandoski por ter dado uma liminar que atrasou uma ferrovia que a livraria da dependência justamente dos caminhoneiros que ela tanto tinha apoiado. Caminhoneiros, latifundiários e agronegócio parecem começar a ficar em páginas diferentes.
Esta diferenciação em interesses também se expressa politicamente, as forças políticas tradicionais no interior (PP, DEM, PSD, etc), habitualmente representadas por latifundiários e grandes barões do agronegócio, tinham se mostrado super-bolsonaristas em períodos recentes, agora parecem dar mais apoio ao Centrão do que a Bolsonaro. Fazem parte do coro para mudança do chefe do Itamaraty e evidenciam que o plano “destituinte” que em determinado momento confluíam com Bolsonaro e Moro, e é talvez o que melhor represente uma grande massa “interiorana” de caminhoneiros a juízes que não se sente representada, já não é seu negócio preferencial. Se preocupam com suas exportações para China, com a imagem (e não com os fatos) da gestão ambiental no país que podem colocar em risco suas exportações para a Europa. A grande burguesia do campo ainda dá sustentação a Bolsonaro mas trabalha agora muito mais fortemente pela estabilidade e controle tanto do governo como do regime, aceitando até mesmo a reabilitação de Lula. É chamativo que em nenhum lugar do interior do país tenham sido vistas mobilizações de tratores e bandeiras verde-amarelas e toda aquela estética 2015-2018 tendo Lula como alvo, sem isso o poder “independente” de Moro é impensável. Seu legado sobrevive a seu nome nas capas de jornais.
Outros movimentos também podem ser vistos. Um deles é que o STF ergue e derruba atores e instituições conforme o interesse político, e acabou o interesse político de erguer Moro de um lado e, proscrever Lula de outro. O STF nesse jogo de uma hora uma coisa, depois outra, poupou Cunha enquanto ele tinha utilidade para garantir o impeachment, para depois trucidá-lo. Ergueram Moro para derrubá-lo como ator fundamental logo depois com toda cara-de-pau do mundo, como se não tivessem sido os mesmíssimos juízes não tivessem dado aval a tudo quando se tratava de avançar com o golpismo. É claro que o grau da “punição” aplicada a Cunha e Moro difere bastante. Pode-se fazer uma longuíssima lista de atores e instituições que a mais alta corte coloca numa escada para logo em seguida retirá-la, seja para realizar medidas judiciais punitivas ou meramente para escantear do centro político, como fizeram com o juiz de Curitiba.
Essa oscilação do STF tem lá suas determinações pessoais, como Fachin e Carmen Lúcia tentando agora limpar seu próprio papel na Lava Jato, mas esse movimento também ilustra coisas bem maiores que estão em curso.
O STF, erguido como árbitro no regime político golpista, é o interlocutor por excelência de políticos, empresários (por exemplo no dia seguinte a carta de banqueiros exigindo mudanças de rumos na pandemia, o Bradesco que não assinou a carta se reunia com o STF). O supremo também é interlocutor importante do imperialismo. Antes da pandemia víamos volta e meia Barroso e Fux, antigamente defensores da Lava Jato, em palestras nos EUA junto a poderosas ONGs e lobbies anglo-saxões. Já Tóffoli e Mendes frequentavam com muito maior assiduidade palestras na Alemanha e em Portugal. Não é conhecido, mas é digno de investigação, quais relações mantém com a embaixada chinesa visto que vários deles, como Gilmar Mendes, oriundo do centro-oeste, tem grandes relações com o agronegócio.
A força de árbitro conferido a esses juízes repousa em diversos fatores, sua eficaz garantia de interesses econômicos e políticos da burguesia, mas também é decorrente da falta de força de outros atores, erguendo esse poder acima dos outros.
Mas todo esse poderio do STF é justamente parte de seu problema. Há para a burguesia sinais de alerta de luta de classes por todo continente, Bolsonaro está crescentemente enfraquecido no cenário externo com a derrota de Trump e sob questionamentos internos fruto do desemprego, fome e milhares de mortes diárias por COVID. O “centro” não mostra nenhuma alternativa viável até o momento, nem do ponto de vista eleitoral, muito menos para recompor uma hegemonia sem um perspectiva de novo cenário econômico.
Sendo assim, o próprio golpismo começa também a ter crises e preocupações com o futuro. E só assim se entende o crescente silêncio (relativo) dos militares e mais ainda a reviravolta de habilitação eleitoral de Lula. Para se aprofundar sugerimos o artigo “Da crise de Bolsonaro e do bonapartismo judicial ao retorno de Lula”.
O STF se dá conta que há perigos crescentes para o regime, há receios com o potencial de luta de classes e ele mesmo precisa mudar de cara. O Supremo precisa se repaginar do contrário expõe a riscos tudo que se consolidou até aqui com o regime do golpe, e expõe uma parcela do que é a couraça do próprio Estado que toma sua cara para impor-se sobre as massas como um agente supostamente neutro. Nesta empreitada conta que o PT e Lula perdoem o golpismo, como já se prontificaram a fazer, que todos os ataques passados sejam aceitos, tal como antes disso o PT também deixara intacta cada medida de FHC, como a privatização da Vale, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Pode ser que o PT e Lula aceitem, que avalizem a continuidade de cada ataque que leva a cara do golpe e de seu agente Sérgio Moro. Mas pode ser que a luta de classes apareça e bagunce o acordado. É preciso atuar para que isso aconteça, para que assim não sobre pedra sobre pedra de um regime autoritário, golpista e anti-operário, um regime que colocou um reacionário como Bolsonaro no poder e que teve em Moro uma outra faceta de seu autoritarismo. Moro foi uma estrela cadente neste regime golpista, brilhosa porém fugaz. Para além de Bolsonaro e Moro há toda uma outra constelação de inimigos a ser enfrentada e todo o rastro de seu legado que vai muito além de sua centralidade como atores políticos.
Nota de Rodapé
Livro sobre a Mãos Limpas citado: Barbacetto, Gianni; Gomez, Peter; Travaglio, Marco. Operação mãos limpas: a verdade sobre a operação italiana que inspirou a Lava Jato. Porto Alegre, CDG 2016.