Por Renato Jeanine Ribeiro.
Por que o Facebook virou uma arena que não vive sem o ódio? me pergunto. Não passam dois ou três dias sem que surja uma nova polêmica, mas sempre carregada das piores paixões. O “Tribunal do Feicebuqui”, como disse o compositor Tom Zé, em 2013, depois de ser duramente atacado por uma gravação com a Coca-Cola, conseguiu ficar ainda mais impiedoso.
Faço esta pergunta, e logo me questiono. Como cada facebooker vê um Face totalmente diferente, conforme os amigos que tem, o que ele curte e posta, não sei se minha pergunta vale para toda a rede social. Sei que em Portugal o Face é pouco utilizado para a política. Aqui no Brasil, imagino que as pessoas que postam coelhinhos, flores e sol radiante convivam só com outras pessoas que também postam coelhinhos, flores e sol radiante (mas não sei, não – no meio dessas fofices volta e meia crepita muito ódio). E acredito que, assim como meus amigos FB, que são na maior parte de esquerda, destilam ódio, também os facebookers de direita não percam ocasião de manifestar ódio e raiva. Imagino isso.
Gostarei muito se pessoas com outras experiências do FB, sobretudo no exterior, contarem como é essa rede social em cada país.
Mas volto à pergunta. O que vejo é que cada semana há pelo menos dois assuntos que pegam fogo na minha linha do tempo e geram reações condenatórias. E o mais grave: embora nem todos os meus amigos de esquerda concordem com a condenação, logo surge uma posição hegemônica, que condena todas as outras. Não é uma briga de direita com esquerda. É uma briga de ortodoxia com heresias.
A ortodoxia bem pode ser de oposição ao governo atual, ao machismo, ao racismo. Mas o fato é que ela se torna uma ortodoxia, e contestá-la leva a ataques e a ofensas. E repito, duas vezes por semana ou mais há um assunto a ser tratado, sempre com esse sentido punitivo, e gente a ser condenada e por vezes expurgada dos meios dominantes.
Insisto: quando falo em meios dominantes, quero dizer dominantes nessa mídia, o Facebook. Eles podem ser dominados em outras situações. (Mas sei não. Mesmo oposicionistas radicais ao governo atual, ao machismo e ao racismo podem ser, como eu, professores universitários, com a vida estável, não correndo grandes riscos). O fato é que, em meio aos heterodoxos, porque discordam do neoliberalismo, do preconceito e tudo o mais, surgiu e hoje predomina uma ortodoxia. Por ser ortodoxia, ela se torna tão preconceituosa quanto seus adversários ou inimigos.
E esse se torna um problema grande, que agrava nossa falência em tornar as redes sociais ou a própria Internet um espaço democrático de discussão.
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Antes de mais nada, o que bloqueia o diálogo na Internet, em especial no Facebook – que poderia ser uma ágora, um admirável espaço de debate político e de esclarecimento intelectual – é uma decisão comercial do Facebook, do Google e não sei quem mais: eles estabelecem uma bizarra homeopatia, em que semelhantes procuram os semelhantes. Começa pelos anúncios que nos mostram, baseados em buscas que fizemos antes, mas se estende às escolhas básicas de cada um na vida. Fãs de rock veem fãs de rock e, se o FB for politizado como no Brasil, coxinhas frequentam coxinhas e mortadelas veem mortadelas. Esse é o famoso “algoritmo do Facebook” – em linguagem comum, o procedimento pelo qual só verei quem for parecido comigo.
Mas o problema que aponto vai além de uma escolha comercial das empresas da Internet. É uma escolha “nossa”, ou de muitos frequentadores do FB, ou sobretudo dos seus militantes. Volto à excomunhão e tomo um exemplo destes dias, a polêmica carta assinada por Catherine Deneuve e mais cem francesas contra o que consideram exageros no combate ao assédio sexual.
A carta demorou a ser traduzida ao português. Saiu na França em 9 de janeiro. Nos dois primeiros dias, não a encontrei na íntegra em nenhum jornal. A primeira tradução que vi, e que reproduzi, feita por uma facebooker, estranhamente omitia as duas frases iniciais. Mesmo em francês, era difícil encontra-la fora do jornal Le Monde, que tem um paywall praticamente sem exceções. Sua primeira tradução integral em nossa mídia saiu no El País, diz 12, às 22 horas. Demorou.
É um texto curto mas complexo, com várias ideias-chave. Os jornais brasileiros o resumiram cada um a seu modo – por vezes, em versões conflitantes entre si.
E no entanto, mesmo sem terem lido o texto, muitos começaram a opinar a respeito, oops, a condená-lo. Danuza Leão, num texto de extrema infelicidade, comentou que o assédio é bem-vindo – o que em nenhum momento as francesas afirmaram. Mas vi muita gente dizendo que Danuza tinha dito a mesma coisa que as francesas.
Por outro lado, mesmo Oprah, que tinha feito o discurso politicamente correto contra o assédio, também foi condenada. E estou falando de condenações emitidas por mulheres. Nem entro no que homens pensaram ou disseram a respeito. Aliás, este é apenas um exemplo; cada semana temos pelo menos dois.
O que é tudo isso, se não tornar o Facebook um verdadeiro tribunal? Mesmo pessoas que criticam a forma como nossos tribunais de justiça estão se portando, invadindo o espaço político, se conduzem no FB distribuindo sentenças. O caso Deneuve-Oprah é apenas um; a vontade de julgar vai muito além.
A vontade de castigar vai além do ativismo judicial, que está invadindo o espaço da decisão democrática. Ela também está entre nós, está em nós. Não há defesa, não há debate, há apenas condenação.
E fica a pergunta: isso nos leva a algum lugar?