Pode chamar-me Identitário. Tu, hipócrita. Nós, privilegiados. Por Flávio Carvalho.

Por Flávio Carvalho.

“Que bloco é esse? Eu quero saber. É o Mundo Negro que viemos mostrar pra você. Branco se você soubesse…” (Gilberto Gil)

Qual a sua real capacidade de reconhecer dois dos piores males da atualidade, ao seu redor, o racismo e o machismo estrutural?

O quanto você acha que já foi até capaz de reconhecer, mas preferiu olhar pro outro lado, como se nada tivesse acontecido? Porque não te afeta diretamente? Porque é incômodo? Por puro conformismo? Ou porque achas que “o mundo já tem problemas demais”?

Aprofundou a reflexão e encontrou dentro de si mesmo alguma estranha razão? Aquela que te faz ter medo de “mexer com essas coisas que, de alguma forma, vão acabar te prejudicando, mais cedo ou mais tarde”?

Preferiu culpabilizar outra pessoa? Os f4scistas, aqueles que você nem gosta? Os antepassados, a história, o colonialismo, o patriarcado? Ou é porque você não está disposto a “pagar pelos erros dos outros”?

Você acha que já fez tudo o que podia, pois já fazes parte de outras formas de luta? Acha que já deu tudo que podia? Consegue dormir bem com a tua consciência tranquila?

Eu, não.
Como já deves ter percebido.

Ocorre que existe, agora mesmo, um movimento contrário ao que eu defendo e não estou sozinho.

Diversas pessoas (como você e como eu, em princípio), que até admitimos que pelo “simples fato” de não sermos pessoas negras e já que já somos “de esquerda”, já estamos bem cansadinhos de “tudo isso”. Pessoas cada vez mais próximas das outras mais conservadoras (mesmo que jamais admitam isso) e que decidiram encontrar um Bode Expiatório. Descobriram aquilo que alguns acadêmicos dos Estados Unidos decidiram chamar de Identitarismo. São pessoas que se dizem cansadas de serem apontadas pelo “Politicamente Correto”. E que também dizem-se sentir ameaçadas, comparando-se (exageradamente) com coletivos que estão sendo verdadeiramente exterminados. Acabam dizendo-se forçadas (é hipocrisia) por outras pessoas (de esquerda mesmo, como elas) que já não aguentam mais o final do final da fila das injustiças sociais. São pessoas cansadas e com pressa. Porque além da fome e das promessas políticas jamais cumpridas (nem pela direita nem mesmo pela esquerda), simplesmente perceberam que do jeito que caminha a sociedade, estarão mortas antes de ter um mínimo sossego na vida.

Me compreendes?

São homens brancos na sua imensa maioria, que se dizem de classe média e que fazem questão de escavar suas próprias dificuldades para demonstrar que o movimento feminista, negro, trans, está equivocado ao repartir suas críticas também para eles. Como se eles também não fizessem parte dessa mesma sociedade que se conserva (também por sua passividade ou omissão). Esses, estavam mais tranquilos quando o problema apontava claramente somente para os racistas e machistas assumidamente de direita. Pois essa mesma estrutura que denunciam, acaba também os beneficiando, queiram eles ou não.

No fundo, Eles estão morrendo de Medinho (enrustido) de acabarem ficando para trás. Não estão acostumados a serem questionados por isso. Nunca o foram, de fato, antes. Temem (já não mais em segredo) que as cotas e políticas de ações afirmativas (na medida em que foram saindo do papel e dos meros discursos de promessas não cumpridas pela esquerda) acabem complicando o futuro dos seus filhos brancos.

Esta reflexão é muito mais que um chamado. Tem coisas que só escutamos quando nos bate na pele. Nem precisa doer. Mas se for para falar de dor, esse texto não é sobre outra coisa. Embora não seja somente a sua dor, e sim MAIS sobre “a dor dos outros”. Porque sim, nem o sofrimento é igual para todo mundo, infelizmente.

Assim, Eles se assumem contra o que chamam de Identitarismo. Passam a lutar ferozmente contra o que temem, Eles (isto inclui os f4scistas e também os que se dizem “aliados das causas”, mas são capazes de mentir até e principalmente para si mesmos). Esse grupo de privilegiados insiste em chamar de Identitários aquilo que tanto temem. Desta forma, acabam seduzindo-se pelos machistas, identificando-se sutilmente com os racistas, ou sendo passivos em relação ao machismo e ao racismo estrutural. Como se tivessem, para isso, um salvo-conduto ou um desencargo de consciência por dizer-se progressista ou de esquerda.

Daí, por outro lado, ao contrário, eu não calo, venho e puxo essa briga para a minha zona de conforto.

Porque o racismo, o machismo e a transhomofobia não é problema exclusivo de quem sofre com isso. E com isso eu quero demonstrar que é muito mais fácil para mim, homem branco hétero (“padrão, normativo”) levantar a minha voz contra o verdadeiro Mi-mi-mi dos “anti-identitários”. Porque, sim, é bem mais fácil para mim, do que para aquelas pessoas que já cansaram, desistiram, calaram, fingiram que não era com elas ou que simplesmente morreram. Porque, afinal, estão arrastando esse sofrimento desde o dia em que nasceram. Eu, não.

Então, vens comigo?

Te identificas?

O que tens a dizer?

Aquele abraço.

@1flaviocarvalho. Sociólogo e escritor. Barcelona, 14 de fevereiro de 2025.

A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

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