Os dados revelam que, com o golpe de 2016 explodiu a desigualdade social no Brasil, que é um grande fator de pobreza. Se alguns têm muito numa ponta, faltam a outros, na outra ponta. Desde quando, em 1960, o IBGE passou a coletar informações sobre o rendimento da população nos censos demográficos, nunca se havia observado um crescimento tão elevado, em tão pouco tempo, da concentração de renda. Se tomarmos os dados da publicação “Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira”, publicação recente do IBGE, pode-se verificar a gravidade do problema já antes da brutal crise trazida pela pandemia. Os dados mostram, por exemplo que, em 2019, os 10% mais ricos se apropriavam sozinhos de 43% de toda a renda do país, alcançando um dos maiores patamares histórico de concentração desde que a pesquisa começou a ser realizada.
Como a crise e o desemprego, a pobreza no sistema capitalista tem uma funcionalidade. O fenômeno é mais forte na periferia subdesenvolvida e periférica da economia global, mas ocorre também no centro capitalista, como demostra o caso dos Estados Unidos. Mesmo usufruindo de todas as imensas vantagens de ser o principal país imperialista do globo, o país enfrenta grandes contradições internas, porque o seu modelo de desenvolvimento gera imensa desigualdade social. Existem mais de 40 milhões de pobres nos EUA. Cerca de 40% dos estadunidenses se queixam de que não conseguem cobrir despesas inesperadas com emergências, que ultrapassem 400 dólares.
Esses indicadores representam verdadeira bomba relógio, que explode de vez em quando, como está acontecendo neste momento. Os conflitos nos EUA decorrem do ponto de vista imediato numa reação completamente justificada à violência contra os negros, ilustrada pelo brutal assassinato de George Floyd. Mas o pano de fundo reside no fato de que os negros são as maiores vítimas da pobreza e da desigualdade nos EUA. O assassinato foi o catalisador da revolta, num país em que um em cada mil negros morre pelas mãos da polícia. Mas o que está por detrás da explosão atual também é a desigualdade, que afeta profundamente o conjunto da vida dos negros nos EUA.
O Brasil vinha, até 2014, melhorando os seus indicadores de distribuição de renda. Para tanto, os estudos mostram que foram determinantes:
1) a geração de empregos e a valorização dos salários foram fatores determinantes para o crescimento da renda domiciliar per capita (respondeu por 71% da elevação entre 2004 e 2014);
2) seguido pelos repasses da Previdência (contribuição de 23%);
3) e pelas transferências de renda do Programa Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada (reforço de 4%).
A economia até 2014 vinha crescendo e distribuindo renda entre assalariados, fato inédito nos últimos 50 anos, até então. Quando a crise apertou, veio o golpe de Estado para – dentre outras coisas – interromper esse processo de melhoria da distribuição de renda. Foi um golpe perpetrado por razões econômicas, mas também políticas e culturais. Por incrível que possa parecer, a melhoria de vida dos pobres destampou um ódio clássico aos pobres, o ódio aos escravos, devido aos nossos 400 anos de escravidão (o sociólogo Jesse Souza nos explica isso muito bem, de forma conceitual. Mas o ódio aos pobres pode ser observado cotidianamente).
O ódio tem esse caráter histórico e cultural apontado, mas tem também uma base econômica objetiva: com a redução da pobreza que estava acontecendo no Brasil, alguns milhões de pessoas (classe média alta e ricos), poucos, mais muito influentes na sociedade, começam a perder ou deixar de ganhar (passam a ganhar menos). Há toda uma visão na sociedade, cuidadosamente alimentada, de que o sujeito é bilionário por mérito próprio, porque se esforçou, estudou, etc. Do outro lado, o sujeito tem que comer calango porque é preguiçoso, não quer enfrentar o batente, etc. É esse tipo de mentalidade que faz com que as pessoas aceitem como natural, e até achem bonito, que o Brasil tenha cinco bilionários com riqueza equivalente à metade da população mais pobre do país, ou seja 100 milhões de pessoas.
Esse processo de redução das desigualdades que o país vinha promovendo foi interrompido com o golpe de 2016. A distribuição de renda estagnou, a pobreza voltou com força e a equiparação de renda entre homens e mulheres, negros e brancos, que vinha acontecendo ainda que lentamente, recuou. Não se promove um golpe de Estado, que derruba um governo eleito pelo voto direto, para melhorar a vida da população. Todas as políticas adotadas no Brasil após o golpe levam necessariamente ao aumento dos níveis de pobreza da população e à concentração de renda:
1.Enfraquecimento do Estado nacional de muitas formas (financeiramente, politicamente, diplomaticamente, militarmente): políticas coletivas, como combate a pobreza, se faz via estado nacional, como vendo agora na pandemia;
2. Entrega das riquezas nacionais para o estrangeiro: o objetivo econômico central do golpe foi petróleo (que é “o golpe dentro do golpe”), mas estão entregando o que podem. Se o objetivo é entregar as riquezas, sobra menos recursos para distribuição de renda;
3. Destruição das políticas de segurança alimentar, fazendo a fome aumentar exponencialmente no Brasil: após ter saído do Mapa da Fome da ONU (em 2014), o Brasil está retornando para o famigerado Mapa;
4. Privatizações: pretendem privatizar o que for possível e rapidamente. Há 119 ativos federais listados para serem vendido a preços de banana. Privatização se faz para engordar ainda mais a conta bancária de quem adquire o ativo e não para diminuir ou erradicar a pobreza no país vendedor;
5) Congelaram gastos primários (como educação e saúde) por 20 anos: PEC 95, a chamada Emenda da Morte, que nem países que perderam guerras aceitaram assinar. Portanto estão congelados também os gastos sociais;
6.Destruíram as leis trabalhistas: junto com elas desmontaram o mercado de trabalho e a renda. São 27,585 milhões de trabalhadores subutilizados (desempregados, subocupados, desalentados ou na inatividade por falta condições) e 12,5 milhões de trabalhadores desempregados;
7. O golpe causou a maior estagnação econômica da história do Brasil. Não há registro anterior, nas contas nacionais, de seis anos de recessão e/ou estagnação. Como vimos, a base para distribuição de renda entre 2004 e 2014 foi a geração de empregos combinada com melhoria salarial;
8. Destruição da indústria: a década que se encerra em 2020, poderá ser considerada perdida para indústria. Nos nove anos entre 2011 a 2019 a perda acumulada é de 15% na indústria. Após uns cinquenta anos, o Brasil caminha para sair do ranking dos 10 maiores países industriais do mundo;
Se a política é de entrega das riquezas nacionais, os direitos, da mesma forma, não conseguem se sustentar. Há uma relação direta entre soberania e direitos da população. E também da renda. Uma parte das conquistas da sociedade custa dinheiro, e há que financiar com recursos públicos que, em parte são arrecadados com as riquezas que o país possui. Neste contexto o aumento da pobreza é inevitável. Num governo tipo Bolsonaro, o combate à pobreza, se houvesse, seria como “enxugar gelo” porque o conjunto das políticas tem como resultado matemático a geração de um número crescente de pobres.
A pobreza de grande parte do povo brasileiro e do continente latino-americano certamente não é uma casualidade. O programa “Ponte para o Futuro”, implantado por Michel Temer após o golpe de 2016, num momento em que o Brasil tinha recém atingido a menor taxa de desemprego da história, não foi empurrado goela abaixo, apenas porque Temer é rico e estar à serviço dos norte-americanos (apesar disto ser um fato). A razão é que há uma crise internacional do capitalismo, a maior da história, que tira o espaço para que países da periferia capitalista melhorem a vida de seu povo. Quando conseguem fazer é somente com luta encarniçada.
Não é que o sistema capitalista internacional não queira melhorar a vida dos trabalhadores dos países subdesenvolvidos. É que, no atual estágio de grande crise mundial, ele não pode, sem prejudicar os lucros dos grupos econômicos que controlam a economia mundial. Eles deram golpe em toda a América Latina não por diversão, ou porque são malvados, mas pela necessidade de manter seus níveis de lucro e seu domínio geopolítico e econômico na Região.
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José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.
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