Por Jéssica Moreira, em Comunidade Nós.
Ontem, celebramos o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Criada pela Unesco há 20 anos para reforçar a importância da imprensa para o pleno exercício da atividade. A data não é apenas celebrativa. É um dia para denunciar atos de censura à atividade jornalística, violência contra comunicadoras e comunicadoras em todo o mundo e honrar as memórias daqueles que morreram enquanto trabalhavam. Se sem uma imprensa diversa e livre, não há democracia plena, podemos dizer mais: sem uma imprensa plural, e que inclua vozes historicamente abafadas, jamais teremos a democracia que tanto almejamos.
E como será que uma mídia preta, periférica e gerida por mulheres tem resistido há quase 10 anos?
Chegamos aqui firmes em nossa missão: ouvir e contar histórias de mulheres que nem sempre foram contadas. Ampliar vozes que ainda estão de fora dos noticiários dos veículos tradicionais. Para contar a periferia a partir de nós mesmas, com todas as suas potências e desafios. E falando em desafios, manter um veículo de mídia é estar sempre lidando com muitos deles. Há uma batalha financeira das mídias independentes, principalmente as lideradas por mulheres.
Há poucos dias lançamos uma nova interface gráfica para nosso site, para facilitar a navegação de quem nos lê e garantir a segurança tecnológica de nosso espaço. Não é por nada, não, mas tá lindão! Tudo isso tem custo e muito trabalho. Embora tenhamos uma produção de conteúdo constante e diária, muitas vezes nosso trabalho é descreditado como “menos profissional”. Quem é da periferia sabe bem que uma história mal contada pode custar vidas. Por isso redobramos nossa responsabilidade. Esbarramos em outro grande desafio: a distribuição. Sabemos, no entanto, que continuar existindo é também preencher lacunas e desertos de informação que persistem em nossos territórios.
O Atlas da Notícia (2022), mostra que cerca de 50% das cidades brasileiras não possuem uma organização jornalística, portanto, podem ser lidas como desertos de notícias – não têm pelo menos uma organização jornalística local. “Pesquisas comprovam que a ausência de um ecossistema de informação local contribui para a manutenção de currais eleitorais, corrupção do poder público e diminui o acesso a direitos básicos, além de desincentivar a participação do cidadão nas instâncias da política próximas do seu cotidiano”, nos recordam Iza Moi e Nina Weingrill em artigo publicado recentemente no Nexo Jornal.
PL 2630/2020
E falar sobre isso no Brasil de 2023 é falar diretamente sobre o Projeto de Lei – PL 2630/2020, a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Mais conhecido como “PL das Fake News”, o projeto tramita nesta semana na Câmara dos Deputados de forma urgente. O PL, de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), e relatoria do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), aguarda a votação dos deputados desde junho de 2020, quando foi aprovado pelo Senado. Ontem (2/5), mais uma vez foi adiado, aguardando mais considerações de parlamentares.
E o que esse projeto tem a ver com as mulheres negras e periféricas e as crianças?
Como bem dito por nossas parceiras da Revista AzMina: “regulação das plataformas digitais e combate à desinformação também são questões de gênero”. Segundo a Coalizão Direitos na Rede, O PL irá criar “obrigações a essas empresas de ações gerais para atacar problemas amplos (chamados riscos sistêmicos) e a possibilidade de demandar ações específicas para combater conteúdos ilegais quando houver riscos iminentes à população”.
O último texto do PL diz, em seu Art. 11º “Os provedores devem atuar diligentemente para prevenir e mitigar práticas ilícitas no âmbito de seus serviços, envidando esforços para aprimorar o combate à disseminação de conteúdos ilegais gerados por terceiros, que possam configurar: IV – crimes contra crianças e adolescentes (…), V – crime de racismo e VI – violência contra a mulher”.
Ou seja, tudo que Nós, mulheres da periferia, defendemos e também falamos sobre. A internet deve ser um espaço democrático, onde as diversas vozes podem existir. Vimos nos últimos anos o abundante crescimento de canais e perfis de mulheres negras que os utilizam para refletir e opinar sobre nosso cotidiano e história. Mas nós não estamos seguras no espaço cibernético. Só nos quatro meses de 2023, a Plataforma ‘Violência de Gênero Jornalismo’ já registrou 20 ataques, sendo a maioria deles considerados ataques de gênero.
“Entre eles, 64.4% são ataques à reputação e à moral, usando a aparência, a sexualidade ou traços sexistas de personalidade para agredir. As demais situações envolvem agressões físicas e censura na internet. Segundo a Repórteres Sem Fronteiras, em 2022, jornalistas sofreram um ataque por segundo durante o período eleitoral, sendo 86% destinados a mulheres. Só em setembro de 2022, os ataques contra as mulheres jornalistas chegaram a crescer 250%, segundo dados colhidos pela Abraji.
Trocando em miúdos
Uma vez que os fluxos de comunicação em todo o mundo são mediados por grandes corporações de tecnologia – chamadas de “big techs”, como Alphabet (Google), Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp –, é importante que essas gigantes do setor também sigam regras em território nacional, a fim de evitar a disseminação de notícias falsas e de garantir a liberdade de expressão de qualquer usuário(a) de sua plataforma.
O que é o PL 2630
O Projeto de Lei 2630 prevê a transparência das redes sociais e dos serviços de mensagens privadas e a responsabilização das grandes corporações de tecnologia (Big Techs) no combate à desinformação e notícias falsas (fake news). Além de ampliar a transparência dos conteúdos patrocinados, a atuação do poder público, e propôr a remuneração de conteúdo produzido nessas plataformas. As regras do PL irão se aplicar a plataformas com mais de 10 milhões de usuários por mês. Exemplo disso são as redes sociais, como Facebook, Instagram, Tik Tok; plataformas de busca, como o Google; e também serviços de mensageria instantânea, como WhatsApp e Telegram. Não entram nessa conta: plataformas como Wikipedia; reuniões virtuais fechadas, como Zoom; comércio eletrônico; jogos e apostas online e demais conteúdos de repositório educativo ou científico; plataformas de código aberto.
Como vai funcionar?
“Com o objetivo de proteger a liberdade de expressão e o acesso à informação e fomentar o livre fluxo de ideias na internet”, as plataformas de redes sociais e também aplicativos de mensagens privadas (com mais de 10 milhões de usuários), como WhatsApp e Telegram, deverão adotar medidas como: vedar contas inautênticas ou automatizadas; identificação de contas incompatíveis com a capacidade humana de produção de conteúdo; políticas de uso que limitem o número de contas controladas pelo mesmo usuário; limitar o número de encaminhamentos de uma mesma mensagem a usuários ou grupos, bem como o número máximo de membros por grupo.
Regulação não é censura!
Antes de tudo, é importante dizer que regulação não é o mesmo que censura. Regular significa criar regras e regras são importantes para entendermos como seguir dentro de um determinado espaço – no caso, a internet. Em uma “terra sem lei nem regra”, a possibilidade do crescimento dos discursos de ódio e da disseminação das notícias falsas (famosas “fake news”) são ainda maiores. O PL aponta as vedações e condicionantes previstos nesta Lei não implicarão restrição ao livre desenvolvimento da personalidade individual, à livre expressão e à manifestação artística, intelectual, de conteúdo satírico, religioso, político, ficcional, literário ou qualquer outra forma de manifestação cultural, nos termos dos arts. 5º e 220 da Constituição Federal. Segundo a Coalizão Direitos na Rede, “no nível individual, ele dá maior poder ao usuário, que passará a ter garantido informação e meios de recorrer em caso de remoção de conteúdo. A lei cria procedimentos que limitam o poder das plataformas na criação e aplicação de suas regras, os chamados termos de uso”. A regulação já é uma realidade na Alemanha, França e Austrália e o PL 2630 também se inspirou na Lei de Serviços Digitais (DSA) aprovada pela União Europeia.
Como ficam os impulsionamentos e anúncios?
No artigo 26º, do Capítulo 5º, o PL diz: “Os provedores que ofereçam publicidade de plataforma devem identificá-la, de modo que o usuário responsável pelo impulsionamento ou o anunciante sejam identificados (…) por meio de apresentação de documento válido no território nacional, de todos os anunciantes de publicidade de plataforma. (…) A identificação do contratante de publicidade da plataforma deve ser mantida em sigilo pelos provedores”.
E o pagamento de conteúdo jornalístico?
O PL prevê que empresas jornalísticas sejam remuneradas por plataformas por conteúdos jornalísticos. Porém, ainda não houve um detalhamento de como isso será realizado, gerando críticas principalmente de veículos independentes, de pequeno e médio porte, que temem que essa remuneração não os inclua. A Ajor (Associação de Jornalismo Digital), a qual o Nós é um dos membros fundadores, entende a importância e urgência da aprovação do Projeto de Lei, mas também reivindica a discussão de uma política de fomento ao jornalismo digital. “As mais de 100 associadas da Ajor de todas as regiões do país, fortalecem a cidadania e a democracia brasileiras e contribuem para superar a histórica concentração da mídia num país diverso e continental. Suas particularidades reforçam a necessidade de uma política pública efetiva de garantia à sustentabilidade do jornalismo digital. Por isso, a Ajor defende a criação de uma política pública transparente e com governança adequada de apoio ao desenvolvimento do jornalismo a partir de receitas provenientes de taxação das plataformas digitais”.
A lei pode proteger as crianças?
São cerca de 22,3 milhões de crianças e adolescentes que usam internet no Brasil. Sem proteção, eles estão expostos a: exploração de seus dados pessoais, violência sem restrições, conteúdo ligados a terrorismo, mentir. O que o PL 2630 cobra é maior transparência das plataformas digitais sobre seus termos e condições; fim de publicidades que usam dados pessoais das crianças e famílias; combater as mentiras e violência on-line; proteger os direitos das crianças e adolescentes. As redes deverão garantir maior privacidade, proteção de dados e segurança para crianças; verificação de idade, controle parental, notificação de abusos; responsabilização das plataformas por conteúdos com violência e exploração envolvendo crianças e adolescentes; educação midiática – ensinar às crianças pensamento crítico para analisar e produzir conteúdos na internet; proibir o uso de informações pessoais de crianças e adolescentes para direcionar publicidade a eles.