Por Caio Sartori e Roberta Jansen.
Três anos após a morte da vereadora Marielle Franco, do PSOL-RJ, mulheres ligadas a ela ou à investigação do crime vivem sob ameaça. Os casos vão de ataques virtuais a planos concretos (segundo a polícia) de assassinato. Para especialistas, ativistas e parlamentares, a situação realça o crescente aumento da violência política no País. Marielle, o quinto nome mais votado da Câmara do Rio de Janeiro em 2016, e o motorista Anderson Gomes foram assassinados a tiros em um 14 de março, como hoje, em 2018. Dois acusados estão presos, mas o mandante e os motivos do crime ainda não são conhecidos.
A história mais simbólica é a da deputada federal Talíria Petrone, amiga e companheira de PSOL de Marielle. Em junho do ano passado, Talíria foi oficialmente informada pela Polícia Civil do Rio de que mais de cinco gravações planejando a sua morte haviam sido interceptadas. Depois disso, a parlamentar se mudou para outro Estado e não voltou mais ao Rio. Talíria já fora ameaçada antes da morte de Marielle, quando era vereadora em Niterói.
“Como se as ameaças anteriores à minha vida não fossem suficientes, alguns dias após o nascimento da minha filha recebi novas intimidações”, contou a deputada. “Em junho, o Disque Denúncia informou à Câmara dos Deputados que havia mais de cinco gravações de pessoas falando sobre a minha morte.”
A parlamentar denunciou as ameaças à relatora da Organização das Nações Unidas (ONU) para execuções sumárias, Agnes Callamard. Também pediu que a organização cobre do governo brasileiro respostas sobre o seu caso e o de Marielle.”Não tenho a menor dúvida de que a execução da Marielle é a expressão de uma democracia incompleta no Brasil, cada vez mais fraturada”, disse. “Não é só a questão de uma parlamentar executada; a não resolução do crime escracha o domínio da milícia. A milícia está dentro do Estado, elege parlamentares. Ela junta três esferas: política, econômica e braço armado. Não é exagero dizer que a milícia governa o Rio.”
Além dos planos que chegam às autoridades, outro tipo de ameaça perturba essas mulheres. São os ataques públicos virtuais, feitos no anonimato da internet. Foi o que aconteceu com a deputada estadual Renata Souza, ex-chefe de gabinete de Marielle na Câmara Municipal. No Facebook, um usuário disse que ela “falava demais” e iria “perder a linguinha”.
“As ameaças vêm em diferentes sentidos e fazem parte de uma política do ódio acrescida de uma insatisfação por estarmos ocupando esse lugar de poder. Esse é um aspecto muito característico dessas ameaças”, diz Renata, que também já teve endereço exposto nas redes por protestar contra Jair Bolsonaro. “O assassinato da Marielle abriu uma porteira de naturalização da violência política”, afirma.
Anielle Franco, irmã de Marielle e criadora do instituto que leva o nome da irmã, também recebeu ameaças. “Foram ameaças bem pesadas por e-mail e no Instagram; duas no fim do ano passado e uma este ano”, contou Anielle. Ela pretende voltar à ONU e à Comissão Interamericana. “Eu não prestei queixa ainda, por isso não posso revelar o conteúdo das mensagens.”
Em alta
Pesquisa das organizações Terra de Direitos e Justiça Global divulgada no ano passado já indicava um aumento da violência política no País de 37% em relação a 2016. O estudo mostrou também que as mulheres são vítimas de 76% das ofensas registradas. Outro levantamento, do Instituto Igarapé, entre as candidatas que concorreram em 2020, revelou que 78% das candidatas negras contaram ter sofrido ataques. “O Brasil é um lugar perigoso para ativistas de direitos humanos há muito tempo”, afirmou a diretora executiva da Anistia Internacional, Jurema Werneck. “A diferença agora é que pessoas como Marielle, que vêm dos movimentos sociais, estão ocupando cada vez mais espaços. E as autoridades não cumprem o dever de condenar o racismo e o sexismo. Pelo contrário, advogam em favor de uma sociedade armada.”
Não só figuras da política, ligadas a Marielle, tiveram de reforçar a segurança. Investigadora que mudou o rumo das apurações sobre o crime no final de 2018, a promotora Simone Sibílio entrou na mira de milicianos, segundo um alerta do Disque-Denúncia enviado ao MP em 2019. Coordenadora do Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado, Simone teria despertado a ira de nomes como Adriano Magalhães da Nóbrega, miliciano que chefiava o Escritório do Crime e morreu no interior da Bahia em 2020.
Amigo e padrinho político de Marielle, o hoje deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) anda com seguranças desde que presidiu a CPI das Milícias na Alerj, em 2008, que pediu o indiciamento de 225 pessoas. Uma das hipóteses da CPI foi que o assassinato de Marielle tinha como intuito atingir indiretamente Marcelo Freixo.
Para Pedro Abramovay, diretor do programa latino-americano da Open Society Foundation, na base do problema está o discurso de ódio disseminado pelo Palácio do Planalto. “Algumas pessoas acham que a retórica violenta na política é apenas retórica. Isso não é verdade”, afirmou Abramovay. “Não é que a violência política ocorra por ordem direta de um presidente autoritário. É uma cadeia de transmissão entre o discurso de ódio e a violência real lá na ponta.”
‘Novo jogo’
A cientista política Ilona Szabó, do Instituto Igarapé, vive no exterior desde o fim do ano passado, quando também recebeu ameaças de morte. Para ela, as estruturas de proteção de ativistas de direitos humanos estão corroídas. “Pela primeira vez desde a época da ditadura a hostilidade ao ativismo político vem do próprio governo; isso muda totalmente o jogo”, analisa.
Levantamento feito entre janeiro de 2019 e setembro de 2020 revelou que foram praticadas ao menos 449 violações de direitos contra jornalistas e comunicadores pelo presidente da República, seus ministros e por familiares dele que exercem mandatos.