O programa Ecoando Sustentabilidade, que reúne vários laboratórios e pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), emitiu uma Nota Técnica sobre as potenciais fontes da lama depositada sobre o sedimento natural (areia) da praia da Enseada do bairro João Paulo, em Florianópolis, e seus impactos ambientais, culturais e sobre a saúde humana.
“A perda da qualidade ambiental e dos recursos alimentares importantes para a comunidade, como berbigão, marisco, ostra e tainhota, foram relacionadas com a expansão urbana, a entrada de efluentes da ETE-Saco Grande e dos rios contaminados. O tatu, molusco bivalve, ainda usado na alimentação da comunidade local, está contaminado por Arsênio, metal de alto poder cancerígeno”, relata a professora Alessandra Larissa Fonseca, Coordenadora do Curso de Graduação em Oceanografia.
Os estudos realizados na região buscaram avaliar a característica do sedimento e as potenciais fontes da lama depositada sobre o sedimento natural da praia, além de compreender as mudanças ambientais que ocorreram na enseada a partir do relato dos pescadores tradicionais.
A orla da Enseada do Saco Grande em geral é caracterizada por praias de areia grossa e na enseada do bairro João Paulo, em particular, historicamente existe a deposição de lama oriunda dos mangues e despejadas pelos rios do sistema. Desde a construção da ETE-Saco Grande, em 2006, os moradores locais relatam um aumento da espessura da lama, além de mau cheiro.
Emissário submarino
O sistema de tratamento de esgotos faz a deposição dos efluentes através de um emissário submarino, mas as pesquisas realizadas na enseada ao longo dos anos evidenciam o baixo poder de dispersão do sistema. “O estudo mais atual da hidrodinâmica das Baías da Ilha de SC (CZIZEWESKI, 2016) indica que as correntes de água são muito fracas ao largo da enseada de João Paulo, em qualquer condição de vento, e praticamente nulas no interior da enseada, onde é lançado o efluente da ETE”, relata a nota técnica.
De acordo com os pesquisadores, todo o material particulado que entra no sistema, e que tem o potencial de formar a deposição da lama, tende a ficar retido na enseada. “Assim, a modelagem hidrodinâmica detalhada, nas diferentes condições climáticas e oceanográficas, deve ser feita para compreender a dimensão do impacto (atual e futuro) da entrada do efluente tratado da ETE-Casan na Enseada do Saco Grande e na Baía Norte”.
Durante os trabalhos, os pesquisadores se depararam com uma situação que caracteriza falta de transparência da Casan em relação ao assunto. Em maio de 2021 foi protocolado um pedido de acesso aos resultados do monitoramento ambiental indicado no Estudo Ambiental Simplificado para o licenciamento de operação da ETE-Saco Grande. No entanto, as informações foram negadas pela companhia, sob alegação de serem sigilosas.
Concentração de metais
Para detectar a presença de contaminantes na lama e em organismos vivos da enseada, três amostras da camada superior da lama depositada e um exemplar do molusco bivalve Cyrtopleura costata, denominado de tatu pela comunidade, foram enviados para análise da concentração de metais em laboratório da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Segundo as análises, “a carne do molusco bivalve C. costata apresentou contaminação por Arsênio (As), com concentração acima do limite indicado pela Instrução Normativa Nº 88 (26/03/2021), que trata sobre segurança alimentar”. Estudos recentes apontados na Nota Técnica informam que o Arsênio é um metaloide de alta toxicidade, mesmo em baixas concentrações, se acumula nos tecidos e não é removido durante o tratamento dos efluentes domésticos pelas ETEs. Sua origem em área urbana está associada aos efluentes domésticos, pois é um produto de detergentes comuns usados nas residências.
Além das análises laboratoriais e de estudos sobre o tema, o trabalho dos pesquisadores incluiu entrevistas com moradores locais – principalmente pescadores – para compreender as mudanças ambientais e culturais que ocorreram na Enseada do João Paulo ao longo dos anos. Após a aceleração da urbanização iniciada nos anos 1980, os pescadores relataram o desaparecimento ou escassez de espécies como berbigão, mariscos, tainhotas e ostras.
De acordo com os moradores, além do aumento da camada de lama, foi possível notar o maior aparecimento de lixo na praia, principalmente sacolas plásticas e garrafas PET. Atividades de lazer como o banho de mar e fruição da natureza foram afetados pela degradação ambiental, influenciado até uma mudança de hábitos sociais.
Em conclusão, o documento apresenta propostas de ações para a propiciar a sustentabilidade da comunidade e de seus modos de vida:
* Disponibilizar e divulgar os resultados do monitoramento ambiental da área de lançamento do efluente tratado da ETE-Saco Grande, conforme Estudo Ambiental Simplificado feito para o Licenciamento de Operação da ETE-CASAN.
* Estudar o perfil sedimentar da lama sedimentada na praia do João Paulo, caracterizando-a quimicamente para compreender sua origem e histórico de contaminação;
* Garantir a segurança alimentar e ambiental pelo monitoramento de balneabilidade da água, de patógenos resistentes à água salgada e da qualidade dos ecossistemas e dos recursos pesqueiros utilizados na alimentação da comunidade, como o tatu (C. costata), peixes e camarão pescados no local e região.
* Refinar a modelagem hidrodinâmica da enseada do Saco Grande-João Paulo e rever o potencial de dispersão dos efluentes na região e o dimensionamento do emissário de disposição do efluente para áreas de maior hidrodinâmica e de maior potencial diluidor.
* Formar um comitê gestor deliberativo para acompanhar o sistema de saneamento local, garantindo a ampla participação da comunidade nas decisões que irão impactar o futuro da comunidade.
* Restaurar as áreas úmidas (manguezal, banhados e restingas) e a mata ciliar da bacia hidrográfica para aumentar o potencial de biofiltração das águas que drenam para a Enseada do SG.
Assinam o documento pesquisadoras e pesquisadores do Programa Ecoando Sustentabilidade, integrantes dos seguintes laboratórios: Laboratório de Oceanografia Química e Biogeoquímica Marinha (Loqui), Laboratório de Ficologia (Lafic) e Laboratório de Biodiversidade e Conservação Marinha (LBCM).
Veja aqui a íntegra da Nota Técnica.
Luís Carlos Ferrari / Agecom-UFSC