Pesquisadora faz descoberta inédita sobre chacina ocorrida em Canoinhas

A historiadora Viviani Poyer não sabe por onde começar quando questionada sobre sua pesquisa de Doutorado, iniciada em 2013 e que a levou por caminhos que jamais ela imaginaria. De Florianópolis e estudante na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), as pistas que a trouxeram a Canoinhas foram realmente surpreendentes, bem ao gosto de um historiador.

Tudo começou quando seu colega, também historiador, Rogério Rosa Rodrigues, a questionou sobre o tema de sua tese de Doutorado. Viviani respondeu que não tinha certeza do tema, mas que queria muito ser orientada pelo professor Paulo Pinheiro Machado. Sem pestanejar, Rogério decretou: “Então tem de ser algo relacionado ao Contestado”. Logo Viviani estaria debruçada sobre um arsenal de livros, entre eles a obra de um brasilianista estadunidense chamado Frank D. McCann, que dedica um capítulo do livro intitulado Soldados da Pátria à atuação do Exército brasileiro na Guerra do Contestado. No capítulo “O avanço das espadas”, McCann escreve em uma nota que o então ministro das Relações Exteriores, o catarinense Lauro Müller, cobrava satisfações do então ministro da Guerra, José Caetano de Faria, sobre a morte de italianos às margens do rio Iguaçu. “Aquela simples nota me intrigou e dali eu tirei o tema da minha tese”, conta Viviani.

Da nota até as centenas de páginas da tese que Viviani pretende defender até o final do ano, um longo caminho se descortinou. Os obstáculos começaram a aparecer quando ela tentou pesquisar no Arquivo Histórico do Itamaraty, no Rio de Janeiro. Justamente em 2013, o Arquivo foi fechado para restauração do prédio, impedindo o acesso à pesquisa. O prédio só foi reaberto aos pesquisadores no início de 2015. Viviani teve que trilhar outros caminhos para começar a pesquisa. Procurou o Arquivo Histórico do Exército no Rio de Janeiro e o Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. Depois de muita pesquisa encontrou uma nota do então secretário geral dos Negócios do Estado de Santa Catarina, Fulvio Aducci, fazendo referência a um dos supostos mortos às margens do rio Iguaçu. Por intuição, Viviani imaginou poder se tratar das mesmas pessoas citadas na documentação do Ministério da Guerra. O nome era José Sartori. “Eu tinha um nome, então fiz contato por intermédio de uma amiga com um jornalista de sobrenome Sartori. Ele me disse que havia muitas pessoas com este sobrenome na região, mas que desconhecia a existência de algum familiar seu que tivesse morrido na região do Contestado”, relata Viviani.

Pesquisadora Viviani Poyer/Divulgação

Frustrada, ela voltou ao Rio de Janeiro e intensificou a sua pesquisa no Arquivo Histórico do Exército (AHEX), já que a nota do livro de McCann falava de um inquérito que havia sido instaurado acerca da morte dos supostos italianos. Pesquisando nesse arquivo foi em busca desse documento, mas curiosamente até o momento, nada foi encontrado nesse sentido. Mas como numa investigação, o pesquisador segue pistas e seguindo essa metodologia, Viviani encontrou uma correspondência enviada pelo general Setembrino de Carvalho a um de seus coronéis subordinados, Coronel Sócrates, que era o comandante da Coluna Oeste com sede em União da Vitória. A correspondência se preocupava em dar instruções e avisar ao coronel que o cônsul italiano, após ter procurado o ministro das Relações Exteriores em busca de informações sobre a morte de um ou dois italianos, seguiria viagem para União da Vitória – sede do comando geral da Linha Oeste -, a fim de obter informações e se inteirar do caso. A estas alturas, já sabia o cônsul que as mortes eram atribuídas a “gente” do Coronel Fabricio Vieira.

Depois de encontrar alguns documentos referentes às mortes dos italianos, a pesquisadora foi ao Arquivo da Cúria de Florianópolis. Esse arquivo que pertence a Igreja Católica reúne grande acervo de certidões de batismo, matrimônio e óbito, principalmente de períodos anteriores a instauração dos registros civis no Brasil. Foi lá que ela soube da existência de um site de pesquisas de registros antigos organizado pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. No Family Search encontrou dois registros de José Sartori, mas as informações eram igualmente vagas. Um deles teria morrido em casa de morte natural. Sobre o outro nada havia referente à certidão de óbito. “Imaginei que este era o José Sartori que eu procurava”.

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JORNAIS

A pesquisa começou a decolar quando Viviani foi aos jornais. Começou pelo Diário da Tarde, periódico paranaense tido como testemunha ocular da Guerra do Contestado. Nas páginas do jornal existem relatos de repórteres que percorreram a região durante a guerra. Além da pesquisa nos periódicos da época a historiografia especializada sobre o Contestado também foi de suma importância para a pesquisa. Entre os livros está A Campanha do Contestado, de Demerval Peixoto, que escreveu uma obra com três volumes sobre a Guerra logo depois do fim do conflito. No livro A Campanha do Contestado, o autor narra em 11 páginas o que chamou de “Uma ação extemporânea”, se remetendo a uma espécie de chacina acontecida às margens do rio Iguaçu. No texto há referência a 18 homens. Em um longo rodapé, ele reproduz o noticiário do Diário da Tarde sobre o episódio. Consultando demais jornais não só paranaenses, como catarinenses e cariocas, Viviani descobriu que o episódio de fato aconteceu na madrugada de 21 para 22 de novembro de 1914. “Com todas essas etapas de pesquisa fui montando um quebra-cabeças que ia se encaixando aos poucos”, revela a pesquisadora.

O TIRANO

Voltando aos arquivos do Diário da Tarde, Viviani conseguiu reconstituir em parte o que ocorreu. A primeira nota é de 2 de dezembro de 1914 e fala em 18 mortos degolados pelo coronel Fabricio Vieira, famoso por seu envolvimento com atos obscuros geralmente ligados a furtos, roubos e mortes.

Fabrício era um coronel da antiga guarda nacional que comandava homens que eram chamados de vaqueanos, mercenários contratados pelo Exército brasileiro para atuarem na Guerra juntamente com as tropas militares, como tropas civis. No jornal, uma pista importante: a carta da viúva de uma das vítimas da chacina, Giuseppe Lyrio Santi ou Bepe Liro como também era conhecido. Orientada pelos professores de Canoinhas, Fernando Tokarski e Josmar Kaschuk, Viviani localizou um bisneto de Santi. Com ele fez uma pequena entrevista, mas da qual não pode colher muitas informações que contribuísse com a pesquisa.

Depois de muitas leituras de páginas do Diário da Tarde, Viviani descobriu que a Gazeta do Comércio, um jornal do Rio de Janeiro, reproduzia muita coisa do jornal paranaense, porém, vez ou outra, acrescentava informações. Foi assim que Viviani chorou de alegria ao descobrir nas páginas deste jornal, depois de quase quatro anos de pesquisa, os nomes dos mortos na chacina. Descobriu, ainda, que Santi era o líder do grupo assassinado pelos homens de Vieira. As informações inéditas sobre um dos episódios mais tristes da Guerra do Contestado compõem a tese que ela está finalizando. A descoberta da pesquisadora já chamou a atenção de muita gente e a Câmara de Vereadores de Canoinhas estuda homenageá-la pela importante contribuição nos estudos sobre a Guerra.

Detalhes de uma noite de agonia

Acossados por Fabricio Vieira e seus capangas, Santi e 16 empregados foram brutalmente assassinados depois de percorrerem 8 quilômetros às margens do rio Iguaçu. 

A pesquisa de Viviani teve no Diário da Tarde uma das fontes mais importantes. Nas páginas do jornal curitibano está o relato minucioso da chacina:

Região pela qual as vítimas passaram seguidos por seus algozes/Reprodução

“Nas proximidades dos Bugios, à margem direita do Iguaçu (à época grafado como Iguassu) reside Rufino Teixeira. Na casa deste se achavam José Lyra e um camarada conversando à noite, quando batem à porta a escolta da qual fazia parte o sargento do Exército de nome Saturnino e certo Domingos de tal, civil arvorado em capitão do bando de vaqueanos.

Logo essa escolta com os dois prisioneiros descem em direção a um rancho onde se achavam as outras 16 vítimas da sanha sanguinária dessa horda.

No caminho, o camarada de Rufino Teixeira teve a grande ventura de ser amigo de um dos homens dessa escolta, o qual conhecera nesta capital (Curitiba) e sabia ser ele um homem morigerado e com família e assim deu-lhe o ensejo de embrenhar-se no mato e fugir à morte bárbara que o esperava.

Chegados ao rancho, os da escolta, que nos dizem em número de 45 homens, fizeram as suas vítimas servir-lhes café com bolos de farinha e, com eles, na mais aparente camaradagem a cear.

Depois disseram-lhes que vinham prendê-los por ordem do coronel Fabricio, que precisava ouvi-los em certas explicações.

 

 

Grande foi a surpresa de todos, alguns quiseram reagir; outros aconselharam que nada devendo, residentes que eram na margem direita do Iguaçu, nada tendo em comum com os fanáticos, não havia motivos para temores e que, todos deviam se apresentar ao coronel Fabricio que estava lhes prestando até bons serviços, impedindo que os jagunços (rebeldes) atravessassem o rio e lhes invadissem os ranchos e as lavouras.

Em paz e confiantes, esses homens embarcaram na lancha que seguiu rumo ao local Bugres.

Num certo ponto a lancha parou e atracou em frente a um descampado, parece que previamente preparado para a execução sumária desses 17 desgraçados.

Feito o desembarque, os facínoras, à arma branca (faca), foram entrando em ação sem clemência, sem atenderem aos rogos dos infelizes que invocavam as famílias, pediam para ser levados à presença do coronel Fabricio ante quem queriam se justificar.

Diante de tão pavorosa cena, alguns dos desgraçados perderam os sentidos, sendo mortos em estado comatoso devido à comoção.

Apenas um deles foi valente até o último momento, dizendo-lhes: ‘Bandidos, fiquem sabendo que matam a um homem desarmado. A Justiça de Deus tudo vê!’

Durante essa carnificina hedionda o sargento Saturnino, mudo, abatido e envergonhado, cobrindo o rosto com o chapéu e o capote, tristemente murmurava para o marinheiro: ‘Isso é uma covardia’.

Terminando a chacina, foram as vítimas despojadas de tudo que consigo traziam, sendo que de Lille foi aproveitado um terno novo, com o qual um dos bandidos foi visto desembarcar em Barra Feia (atual Fluviópolis, interior de São Mateus do Sul).”

DESCOBERTAS

Para além do relato do Diário da Tarde, Viviani fez descobertas importantes. O coronel Fabricio Vieira, citado no texto do jornal, já era mal afamado, conhecido como ladrão e assassino. Quando Setembrino de Carvalho vem para pacificar a região, ele contrata Fabricio para patrulhar a margem direita do rio Iguaçu, no perímetro que ia de Barra Feia (atual Fluviópolis), até aproximadamente Poço Preto. Fabricio tinha uma fazenda na região. “Tudo leva a crer que os homens de Fabrício tinham dívidas com esses homens que morreram, principalmente com Joaquim Vicente e Giuseppe Lyrio Santi. Provavelmente mataram eles para roubar”, diz a pesquisadora.

 

Comerciante bem-sucedido, Joaquim Vicente estava em casa na noite da chacina com a esposa. Dente de Ouro, apelido de um dos homens mais violentos comandados por Fabricio, comandou a tropa que invadiu a casa de Vicente, estuprou sua esposa e botou fogo na casa da família. Com Vicente e tudo que haviam roubado dele, a tropa liderada por Dente de Ouro foi até o Porto dos Bugios aguardar a passagem da lancha que vinha subindo o rio de Porto Marcolino, localidade próxima, e de onde haviam sido capturadas outras 17 vítimas. Nas proximidades do Porto Marcolino cerca de outros 30 vaqueanos comandados por Isaías Daniel e João Ruas capturaram os homens de Santi. Ele era empreiteiro da companhia que administrava a estrada de ferro EFSPRG, mas trabalhava na construçãodo Ramal São Francisco. Como o ramal parava com muita frequência, Santi e seus empregados ficavam sem trabalho, então, durante esse período eles iam para as terras que Santi possuía na região para plantar e criar pequenos animais. “A esposa dele contou em carta ao Diário da Tarde que eles estavam trabalhando lá há três meses e tinham dinheiro”, contextualiza Viviani.

Os vaqueanos disseram a Santi que ele devia explicações a Fabricio, tal como conta o Diário da Tarde. Dali eles teriam amarrado cordas nos pescoços dos homens e os levado de lancha rio acima por cerca de 8,7 quilômetros, até chegarem em Felipe Schmidt, na margem esquerda do rio, onde foram degolados. Não se sabe por que alguns foram poupados, pois por meio de documentos do Itamaraty, constatou-se que um deles de origem portuguesa e outro brasileiro, fugiram e serviram de testemunhas posteriormente. Dizem também os moradores da região, que um dos 18 homens pediu para tomar água e se jogou no rio, conseguindo assim fugir desse ato de crueldade, fato que a pesquisadora conseguiu constatar a partir do laudo cadavérico realizado em apenas 17 corpos e não 18. Viviani, no entanto, avançou muito na pesquisa e hoje já sabe o nome dos mortos, as origens e a profissão de cada um deles. Revelações importantes que devem ser feitas quando sua tese for publicada.

Até lá fica a homenagem singela feita pela família Crestani aos “heróis” sacrificados em uma pequena lápide instalada no local onde teria ocorrido a chacina, às margens do rio Iguaçu.

 

Fonte: Jmais.

 

A matéria é responsabilidade do jornal Jmais.

5 COMENTÁRIOS

  1. Boa noite. Sou bisneta de Giuseppe Liryo Santi. Gostaria de saber como entrar em contato com a historiadora Viviane Poyer.
    Um e-mail para que eu possa esclarecer umas dúvidas.
    Obrigada
    Roselaine

    • Roselaine, esta manhã, dia 2 de dezembro, a Redação deixou mensagem com seu contato, na caixa de Facebook da pesquisadora Viviani Poyer. Aguardamos que entre em contato com você. Abraços.

  2. Prezados, o jornal Jmais já alterou a imagem da matéria e escreveu uma retratação.
    Sugiro que façam o mesmo.

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