Há menos de um ano, o professor e escritor Ivan Cavalcanti Proença participou de um evento em homenagem à escritora Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977), promovido pela Academia Carioca de Letras. Ali, afirmou que Carolina não teria produzido literatura, mas um “relato natural e espontâneo de uma pessoa que não tinha condições de existir por completo”. E completou: “Ouvi de muitos intelectuais paulistas: ‘Se essa mulher escreve, qualquer um pode escrever’”.
Não é o que pensa a pesquisadora Raffaella Fernandez, da Unicamp. Desde 1999, ela tem se aprofundado nas mais de 5 mil páginas deixadas por Carolina – partes de cadernos que a ex-moradora da favela do Canindé encontrava no lixo e reaproveitava para escrever. Em abril, pela Edições Carolina (UnB), será lançada uma versão ampliada da tese de doutorado de Fernandez, Processo criativo nos manuscritos do espólio literário de Carolina Maria de Jesus (2015), sob o título A poética de resíduos de Carolina Maria de Jesus – um mapeamento que mostra a diversidade de gêneros literários na criação da escritora.
“Carolina de Jesus sempre foi pautada por Quarto de despejo (1960). Sua própria filha [Vera Eunice de Jesus] não tinha dimensão da obra da mãe: achava que ela escrevera apenas um diário. Mas ela tem uma produção muito maior e mais diversa que isso”, diz a pesquisadora à CULT.
Segundo ela, além dos registros autobiográficos que compõem Quarto de despejo, os cadernos de Carolina guardam mais de 100 poemas e cerca de 63 “narrativas híbridas” entre contos, crônicas, fábulas e autoficção, que “começam em um caderno e terminam em outro”. Há, ainda, cartas, provérbios, letras de canções, cinco peças de teatro e sete romances completos e ainda não publicados – Dr. Silvio, O escravo, Rita, O Diário de Martha ou A mulher diabólica, Dr. Fausto e mais dois sem título.
“Em geral, os textos de Carolina falam da condição da mulher e da mulher negra. Mas sempre com caráter de vanguarda e engajamento: no poema Os feijões, ela trata, ainda nos anos 1940, das cotas para negros na universidade”, conta Fernandez, que aponta na escrita de Carolina de Jesus “características modernistas” – a mescla da norma culta com a linguagem cotidiana, a mistura da escrita clássica romântica a experimentações linguísticas e toques parnasianos; a “emergência do momento e a pegada do improviso” e o tratamento de temas cotidianos.
“Enquanto os modernistas quebravam a ‘escrita correta’, ela escrevia de um jeito ‘bonito’, porque sabia que ela, mulher negra, moradora da favela, só poderia se legitimar assim”, diz a pesquisadora, cujo objetivo é tornar pública a obra completa de Carolina de Jesus – algo que já tem feito desde 2014, quando co-organizou, ao lado de Maria Nilda de Carvalho Motta, a coletânea Onde Estaes Felicidade (Letraria), com textos originais da autora e sete ensaios sobre sua obra. Já em março deste ano, lançou Meu sonho é escrever – Contos inéditos e outros escritos (Ciclo Contínuo), que traz “narrativas que Carolina de Jesus gostaria muito que tivessem sido publicados em vida”.
De Carolina, além dos volumes organizados por Fernandez e de Quarto de despejo, seis livros já foram publicados: Casa de alvenaria (1961), Pedaços de fome (1963), Provérbios(1963) e os póstumos Diário de Bitita (1982), Meu estranho diário (1996) e Antologia pessoal (1996), todos autobiográficos ou autoficcionais. Mas, na visão da pesquisadora, os leitores deveriam encarar Carolina de Jesus como “uma autora que foi muito além da literatura de testemunho”, apesar desta criação também ter “grande importância”.
“A maior parte de sua literatura não é de denúncia. A questão é: o que [os editores] priorizaram, o que foi publicado é essa escrita testemunhal”, afirma Fernandez. A obra de Carolina veio a público em 1958, quando o então repórter Audálio Dantas, da Folha da Noite, visitou a favela do Canindé para uma reportagem e conheceu a autora. Em vez de redigir uma matéria, ele publicou trechos do diário da então catadora, sob o título O drama da favela escrito por uma favelada. Dois anos depois, os textos integrariam o livro Quarto de despejo, organizado pelo próprio Dantas – obra que Fernandez considera “solapada”: “É um livro sem recorte, uma tentativa de mostrar como é um caderno de Carolina”.
Hoje, Carolina de Jesus e Quarto de despejo estão em alta: o livro, por exemplo, foi recentemente adicionado à lista de obrigatórios do vestibular da Unicamp. Mas a popularidade não evita que as outras obras de Carolina, sejam as já lançadas ou os muitos manuscritos que aguardam publicação, permaneçam à sombra de sua escrita testemunhal.
Para Fernandez, retirá-la da posição de “mulher negra com um pano na cabeça” é essencial para “criar a oportunidade para outros autores negros que, ainda hoje, não são reconhecidos”. “Com sua escrita e seu corpo, ela não só rompeu o cânone; ela estourou o cânone. Então, aceitar Carolina, publicar Carolina, ler sua escrita nas escolas é fazer o mesmo.”