Foto: Isac Nóbrega/PR
A crise econômica mundial que se avizinha – bafejada gora pelo coronavírus – pegará o Brasil, como até as pedras já previam, no contrapé. Antes da pandemia a fragilidade externa do país já tinha aumentado muito, a partir das medidas do golpe de 2016. Por exemplo, o governo Bolsonaro está queimando as reservas internacionais deixadas pelo governo Dilma Roussef, na tentativa de deter o aumento do câmbio. Somente em março o Banco Central já injetou US$ 15,245 bilhões em recursos novos no mercado de câmbio, tentando conter a escalada do dólar. Mesmo assim o real foi a terceira moeda que mais se desvalorizou no mundo, perante o dólar norte-americano, em 2020.
Um dos vários efeitos demolidores do Corona se deu sobre a economia chinesa, principal motor da economia mundial há muitos anos. A produção industrial caiu 13,5% no primeiro bimestre, em relação ao mesmo período do ano passado, uma queda superior à verificada na crise de 2008. Dos 41 maiores setores industriais, 39 tiveram redução na produção. As exceções foram petróleo e gás, e tabaco. Há previsões de que a queda no PIB chinês, no primeiro bimestre do ano, possa chegar a 13%. Como seria de esperar a economia como um todo mergulhou: vendas no varejo encolheram 20,5% ao ano no bimestre, a taxa de investimentos caiu 24,5%, construção de imóveis caiu 44,9% nos dois primeiros meses do ano. Como os dados do primeiro bimestre incluem duas semanas de janeiro, nas quais a economia funcionou normalmente, tudo indica que os dados de março serão ainda mais devastadores.
A nós, meros mortais comuns, é sonegada muita informação, pois os donos do Dinheiro não têm interesse em divulgar certas coisas. É, portanto, muito difícil estimar o risco de a crise contaminar a economia mundial como um todo, o chamado “risco sistêmico”. Segundo alguns analistas[1] o risco dessa crise afetar o sistema mundial é muito mais grave em 2020, do que foi em 1979, 1987 ou 2008. Segundo o jornalista, informações de bastidores indicam que, nesta crise, o risco é mais alto de contaminação do mercado de derivativos, o que envolve trilhões de dólares. É uma verdadeira fábula de dinheiro aplicada em papeis sem lastro, investimentos financeiros completamente descolados da esfera real da economia.
Dois sintomas de que o risco sistêmico é elevado, apesar da informação estar dissimulada pela maioria dos analistas internacionais: 1. O Fed (banco central norte-americano) eliminou exigências de reservas bancárias nos bancos comerciais, o que significa uma expansão, como lembrou Pepe Escobar no artigo citado, “potencialmente ilimitada de crédito, para evitar uma implosão dos derivativos, decorrente de um colapso total de bolsas de mercadorias e ações em todo o mundo”; b) O governo alemão anunciou no dia 13.03 empréstimos “ilimitados”, que podem chegar a 550 bilhões de euros, para amparar as empresas em função da pandemia. Este plano de ajuda às empresas na Alemanha é mais significativo do que o utilizado na crise financeira de 2008. A crise na Alemanha, como no mundo, também é anterior ao coronavírus: considerado o motor da economia europeia, a Alemanha cresceu meros 0,6% em 2019, uma notável e clara desaceleração em relação a 2017 (2,5%) e 2018 (1,5%). A crise sanitária apenas piorou muito uma situação que já era ruim.
A pandemia segundo a OIT, na previsão mais moderada poderá aumentar em 5,3 milhões o número de desempregados no mundo. No pior cenário, é possível que o número de desempregados cresça em 24,7 milhões, num universo, segundo a Organização, de 188 milhões de desempregados em 2019. Conforme previsão da OIT aumentará também o subemprego, com as inevitáveis reduções das jornadas de trabalho e dos salários. A Organização divulgou um cálculo da perda de renda pelos trabalhadores, com a crise, que deve ficar entre US$ 860 bilhões e US$ 3,4 trilhões até o fim deste ano.
A perspectiva de uma grande crise internacional, acelerada por uma brutal pandemia, está levando governos a optarem por ações drásticas, em todo o mundo. Não apenas no campo fiscal, tributário e creditício, mas em áreas diretamente ligadas ao controle da doença. Por exemplo, na Espanha o governo determinou que as autoridades de saúde estatais do país assumam o controle de hospitais privados, para atender e hospitalizar pacientes com coronavírus. Segundo o ministro da saúde da Espanha, a medida visa garantir por todos os meios a saúde e o interesse público e permitir que os cidadãos possam ser atendidos em condições de igualdade. O Ministério da Saúde espanhol determinou também que as empresas e laboratórios particulares que façam diagnósticos ou produzam máscaras e outros utensílios que possam ser usados no combate ao coronavírus, devem informar ao governo da sua existência e da sua capacidade produtiva em até 48 horas.
Em vários países do mundo se adotam medidas que protegem as pessoas da doença, e ao mesmo tempo procuram amortecer o impacto econômico e social para a população, preservando o emprego e a renda. Mas o governo e o parlamento brasileiros fazem exatamente o contrário, utilizando a crise como pretexto para a liquidação de direitos. Por exemplo, no dia 17.03, à portas fechadas, uma comissão mista do Congresso Nacional aprovou a Medida Provisória (MP) 905, conhecida como Carteira de Trabalho Verde e Amarela. A medida reduz garantias relacionadas aos acidentes de trabalho e modifica, de 8% para 2%, a alíquota de contribuição ao FGTS paga pelo empregador. Também diminui de 40% para 20% a multa paga em caso de demissão, por exemplo.
Ao mesmo tempo o ministro da economia vem tentando acelerar no Congresso o processo de privatização da Eletrobrás, aproveitando enquanto a sociedade tenta manter a saúde e sobreviver, ainda que à duríssimas penas. O mesmo Paulo Guedes recentemente listou 19 projetos ao Congresso, que são prioritários para o governo, absolutamente todos na direção de retirar direitos, enfraquecer o Estado e vender patrimônio público (dentre eles, autonomia do Banco Central, o Marco Legal do Saneamento e a MP do Emprego Verde Amarelo).
Nessa mesma lógica antipovo e de vergonhosa subserviência ao capital, o governo anunciou no dia 18 uma Medida Provisória que, dentre outras coisas, permitirá que as empresas reduzam em até 50% a jornada de trabalho e o salário dos seus empregados. Além da redução da jornada e salários as empresas poderão antecipar férias individuais, decretar férias coletivas e usar o banco de horas para dispensar os trabalhadores do serviço. Também poderão antecipar feriados não religiosos. A MP ainda permitirá ações visando simplificar o tele trabalho e a suspensão da obrigatoriedade dos exames médicos e treinamento obrigatórios.
Não fosse este o governo mais inimigo do povo de toda a história do Brasil, seria o momento para medidas fortes de proteção do emprego e da renda dos trabalhadores (que são 95% da população). Seria o momento de proibir demissões sem justa causa, instituindo garantia de emprego e de uma renda mínima de sobrevivência para os desempregados e informais, pelo menos enquanto durasse a pandemia. Seria o momento de revogar a Emenda Constitucional 95, imposta pelos banqueiros que ajudaram a financiar o golpe de 2016. Mas fazem o contrário e com tática bastante conhecida: aproveitar a confusão e a excepcionalidade do momento para rapidamente impor medidas que vão contra a esmagadora maioria da população, em favor dos grandes capitalistas e do sistema financeiro internacional.
[1] Ver por exemplo o artigo Como o exército dos EUA pode ter levado o vírus à China, do bem informado Pepe Escobar, publicado em 17.03.20.
José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
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