Por Oz Iazdi, para Desacato.info.
Vamos começar esse texto com um pequeno exercício de faz de conta. Pense que você acabou de passar no vestibular de uma excelente universidade, está todo feliz e contente, já fazendo os preparativos para iniciar sua jornada estudantil no ensino superior. Chega o dia da matrícula e, como é de praxe, alguns veteranos estão lá para te atormentar um pouco. Ótimo. Você entra na brincadeira, pinta o rosto e vai com todo o pessoal até um semáforo movimentado da cidade. Está um sol de rachar a cabeça, mas o esquema todo mundo já conhece: você e os outros calouros vão indo de carro em carro para pedir dinheiro, ao passo que os veteranos ficam ali na sombra só coordenando os inexperientes pedintes e esperando a coleta da grana enquanto bebem alguma coisa suspeita. Chega o final do dia e o dinheiro é revertido em uma quantidade razoável de álcool e mais alguns complementos necessários para uma boa festa de confraternização. Como seus veteranos são um pouco cruéis, determinam que os calouros só podem beber pinga, e daquela mais barata possível. Eles, por outro lado, têm acesso a algumas bebidas de ordem superior, embora você perceba que um ou outro ainda prefira entrar na onda da pinga junto com os novatos. A princípio, isso te parece um pouco injusto, já que foram você e seus amigos que coletaram todo o dinheiro. No impulso, você até tenta pegar um copo de uma maravilhosa vodca russa na festa, mas um dos veteranos percebe sua atitude contestadora e toma bruscamente o copo da sua mão, derrubando um pouco de bebida na sua camiseta. Você fica nervoso por um tempo, mas acaba por perceber que essas regras e práticas acontecem com certa frequência nos trotes, sendo algo quase natural. Diante disso, você deixa suas preocupações de lado e se diverte, mas acaba passando um pouco do ponto e, no dia seguinte, ganha de recompensa uma dor de cabeça e um enjoo tão fortes que te deixam arrependido de não ter ido um pouco mais devagar. Afinal, a pinga realmente era de péssima qualidade. Que pena, meu caro jovem!
Agora deixemos de lado nossa anedota por um momento, visto que nosso objetivo aqui não é construir uma biografia das desventuras estudantis do seu “eu imaginário”. A intenção deste artigo é, na verdade, falar um pouco sobre algo que talvez seja mais importante – e certamente mais sóbrio – do que o exercício de faz de conta do parágrafo anterior: falaremos sobre a formação da percepção de justiça das pessoas e como isso acaba por interferir nos assuntos socioeconômicos. Mas afinal, para que discutir isso? Qual a relevância desse assunto? Em realidade, a resposta é muito simples: utilizamos nosso senso de justiça e nosso julgamento em inúmeras interações sociais que, por sua vez, também acabam por contribuir para reforçar ou transformar essas nossas percepções de justiça iniciais.
Muito bem, se essa é uma questão tão presente em nosso cotidiano, resta tentar entender em que ocasiões nosso senso de justiça vem à tona e o que isso pode influenciar nas decisões socioeconômicas. Como eu sei que você já estava com saudade da sua vida fantasiosa de calouro, vamos recordá-la um pouco. Você se lembra que achou injusto só poder beber a pinga ruim, mesmo depois de passar o dia todo arrecadando dinheiro? Pois é, a distribuição final dos benefícios resultantes do seu árduo trabalho ativou seu senso de injustiça, visto que a maior parte do dinheiro foi gasta nas bebidas exclusivas aos veteranos, ainda que eles tivessem passado o dia inteiro ali na sombra, sem maiores preocupações e esforços. Quem mais contribuiu foi quem menos recebeu. Perceba que, além de ter ficado com a pior parte dos benefícios, você também não teve nenhum poder de participar dessa decisão. Na vida universitária, calouro não tem voz. Como se não bastasse tudo isso, quando tentou pegar um copo da vodca importada em um ato quase heroico, foi tratado da pior forma possível, sentindo-se inferiorizado. Ainda assim, dada a aparente conformidade geral com a situação, resolveu seguir em frente e aproveitar a festa com seus novos colegas, apesar dos efeitos colaterais do dia seguinte.
Utilizei essa singela história para ilustrar que nossa percepção de justiça trabalha em três tipos de ocasiões diferentes. A primeira ocasião – e mais evidente – é a questão distributiva. Distribuições muito desiguais ou que não seguem algum padrão de equidade – isso é, que não dão mais a quem trabalhou ou produziu mais – são vistas como muito injustas pela grande maioria das sociedades contemporâneas. Apesar disso, o sistema econômico em que vivemos, o capitalismo, gera um nível de desigualdade de renda cada vez maior, aumentando cada vez mais a diferença entre aqueles que recebem muito – os veteranos – e aqueles que recebem pouco – os calouros. Particularmente, pode-se dizer que o Brasil tirou o bilhete premiado nesse quesito, sendo um dos países mais desiguais do mundo, ainda que também seja um dos dez mais ricos.
A segunda ocasião em que nosso senso de justiça liga um alerta vermelho tem a ver com o modo como as coisas são decididas, ou melhor, tem a ver com os procedimentos que levam às distribuições finais dos benefícios. Quando você não tem poder de participar democraticamente das escolhas, não tem poder de voto ou não sente que sua voz é ouvida, tende a se sentir injustiçado. É o caso do calouro sem voz. Mesmo que tivesse sido beneficiado pelo resultado final da decisão exclusiva dos seus veteranos, poderia sentir que a decisão não foi tomada da forma mais justa. Um debate geral em que tanto veteranos quanto calouros pudessem discutir e decidir sobre a melhor forma de gastar e distribuir o dinheiro arrecadado teria sido um procedimento muito mais justo. Se extrapolássemos essa situação para a arena política, tendemos a preferir processos de decisão de políticas públicas que sejam mais participativos, democráticos e claros, ou seja, livres de qualquer forma de corrupção que distorçam os processos de escolha e debate.
Finalmente, a terceira ocasião em que respondemos à nossa percepção de justiça diz respeito à forma como somos tratados pelos outros. É natural esperarmos sermos tratados com educação e respeito, incitando um grau minimamente aceitável de dignidade e confiança nas nossas relações com as outras pessoas. Caso contrário, é fácil surgiu um elevado senso de injustiça, como aconteceu quando você foi tratado bruscamente por um veterano ao pegar um copo de vodca. Esse tipo de percepção de justiça é extremamente relevante em um nível mais amplo, pois reflete a coesão da sociedade e os laços que as pessoas formam entre si, o que acaba por determinar a força que elas têm para alcançar metas sociais e econômicas coletivas. Quando há um clima generalizado de elevada desconfiança e desrespeito, não é surpreendente esperarmos por atitudes mais individualistas e conflitivas, já que, através desse comportamento, as pessoas procuram se antecipar para evitar possíveis decepções em suas interações sociais e econômicas.
Se essas três situações – distribuição, procedimento e tratamento – acabam por acionar nossa percepção do que consideramos como sendo algo injusto, a pergunta final é: por que simplesmente não mudamos a rota e agimos para mudar as coisas? Embora a resposta possa ser complexa, talvez seja seguro dizer que o principal motivo de tal conformidade seja o poder de influência que as regras de pensamento e comportamento que compartilhamos têm sobre cada um de nós. As normas e convenções sociais – a que damos o nome de instituições –, embora sejam fundamentais para o funcionamento das relações socioeconômicas, também acabam por exercer um papel inibidor ou uma influência profunda sobre as pessoas. Desse modo, estamos sujeitos a uma espécie de conflito psicológico interno e a uma possibilidade de sanção externa caso decidamos agir de modo a contradizer o que é usual, habitual e corriqueiro. Foi exatamente isso que aconteceu quando você tentou pegar o copo de vodca, quebrando uma regra que, por mais injusta que fosse, era compartilhada por quase todos ali presentes na festa, sendo percebida quase como algo natural.
Da mesma forma que em nosso exemplo, modificar ou estruturar novas políticas públicas consiste em um grande desafio de quebras institucionais, mesmo que as políticas tenham sido pensadas de modo a serem mais justas do que aquelas vigentes, seja em termos distributivos ou procedimentais. Somando-se a isso, interesses de classe e a influência midiática são outros elementos que podem desacelerar ou impedir a realização de mudanças nas normas, convenções, hábitos e costumes que poderiam levar a ganhos sociais e econômicos.
Apesar de todas essas barreiras e dificuldades de transformações institucionais, é justamente quando percebemos a injustiça presente em diversas instâncias sociais que temos alguma motivação e energia para tentar alguma mudança. Portanto, entender como as pessoas formam essas percepções é um passo essencial para guiar o desenho e implementação de macro e micropolíticas públicas que sejam socialmente benéficas. Se aceitarmos um status quo imbuído de privilégios e desigualdades, podemos até aproveitar e nos beneficiar disso por um breve momento. No entanto, é certo dizer que os veteranos sempre acabam por aproveitar muito mais e que, depois da festa, a ressaca é muito pior para você e para os outros calouros que acabam por ficar com a bebida de baixa qualidade. Isso parece injusto? E é, mas há espaço para mudanças.
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Oz Iazdi é doutor em economia pela Unicamp e atualmente estuda instituições, justiça e economia comportamental.
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