‘Pela primeira vez me senti acolhida’: as ocupações que acolhem vítimas de violência doméstica e correm risco de despejo

 

Por Letícia Mori, da BBC News Brasil em São Paulo.

Ao longo dos anos de seu casamento, o abuso que a assistente social Flora* sofria do marido foi se agravando, indo de pequenas manipulações a forte violência psicológica; de xingamentos e gritos para violência física e sexual.

Flora, hoje com 43 anos, queria sair de casa, mas não ganhava o suficiente para pagar aluguel e não tinha para onde ir. Ela havia se casado muito jovem, aos 21 anos, e sua família evangélica não aceitaria que ela se divorciasse.

Se fosse para um abrigo do governo, ela teria que deixar seu emprego e cortar todo contato com amigos. Seus filhos – um adotivo e um biológico – teriam que ficar em outro abrigo.

Foi então que ela descobriu, em 2017, que uma ocupação em sua cidade, Belo Horizonte, havia sido transformada por um coletivo feminista em um centro de referência para vítimas de violência doméstica.

Imediatamente a assistente social procurou o coletivo. “Pela primeira vez me senti acolhida”, conta Flora à BBC News Brasil. “Quando fui procurar ajuda eu tinha marcas de chave de fenda no corpo de quando meu marido me atacou.”

Flora passou dez meses abrigada na ocupação enquanto se recuperava do relacionamento abusivo e até conseguir um local mais definitivo para morar.

O espaço, que funcionava desde 2016, foi criado pelo coletivo Movimento de Mulheres Olga Benário, que ocupou um prédio no centro da cidade que estava abandonado havia mais de dez anos e pertencia à UFMG ( Universidade Federal de Minas Gerais). Primeira ocupação só de mulheres do país, o local foi batizado de Casa Tina Martins, em homenagem à ativista homônima que lutou por direitos dos trabalhadores no início do século 19.

Feminista e de esquerda, o coletivo foi criado em 2011 por 21 mulheres e atualmente tem centenas de ativistas em 18 Estados do Brasil. Hoje o grupo administra 9 espaços de assistência à mulheres vítimas de violência espalhados pelo país.

Além da casa em Belo Horizonte, há ocupações em São Paulo, Florianópolis, Santo André, Recife, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador e Mauá. Quatro destes sofrem risco de despejo – embora todos tenham sido montados em locais que estavam abandonados, após as ocupações, alguns proprietários entraram com pedidos de despejo.

Segundo as organizadoras, as ocupações começaram como uma forma de pressionar o poder público a criar mais locais de atendimento para as mulheres que sofrem violência e a fazer uso dos espaços abandonados nos centros urbanos.

“Nosso objetivo não é substituir o que o Estado deveria oferecer”, explica a estudante universitária Julia Soares, que faz parte da coordenação nacional da rede. “Fazemos como uma forma de pressionar para que esse tipo de serviço seja disponibilizado onde ele não existe, ou seja melhorado – por exemplo, a maioria das delegacias não funcionam 24 horas.”

A ideia para o projeto surgiu quase dez anos antes do coletivo conseguir criar a primeira casa, conta Vivian Mendes, uma das coordenadoras da ocupação em São Paulo, a partir da organização das ativistas no movimento de moradia MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas).

“Percebemos que mesmo no movimento, onde existe um trabalho de conscientização política das pessoas, as mulheres sofrem em relacionamentos abusivos. Então precisávamos nos organizar para ajudá-las.”

Mas não é preciso fazer parte do movimento para ser atendida nas ocupações – todas as mulheres são bem-vindas, independentemente de orientação política, classe social, religião.

Fortalecer as mulheres

Em cada uma das nove ocupações, um grupo de voluntárias se reveza para ficar no espaço durante a semana e receber mulheres procurando ajuda.

As mulheres são ouvidas, acolhidas e recebem uma série de informações relativas à situação de violência – por exemplo sobre seus direitos, sobre como buscar uma medida protetiva na Justiça, sobre saúde física e saúde mental.

Elas também podem receber encaminhamentos para serviços de saúde, de assistência jurídica e psicológica e outros tipos de ajuda – como companhia para procurar um serviço de saúde ou para registrar uma ocorrência na delegacia, explica Vivian Mendes.

“Somos em primeiro lugar um serviço de escuta. Ouvimos, acolhemos e tentamos entender quais as necessidades de cada caso”, explica Vivian Mendes. “”Temos voluntárias de várias áreas: psicólogas, advogadas, assistentes sociais.”

“Queremos fortalecer essa mulher para que ela mesma, com apoio, consiga se libertar dessa situação. E isso é algo que muitas vezes demora, que vai além de denunciar o agressor à polícia, que envolve muitos outros aspectos da vida”, diz Mendes.

Alguns dos locais também conseguem abrigar mulheres em situação de urgência para sair de casa – como a ocupação Carolina Maria de Jesus, em Santo André, e a ocupação Tina Martins, em BH.

Quando Flora procurou a ocupação na capital mineira em 2017, a princípio não havia espaço suficiente para ela se mudar. Mas as voluntárias explicaram que ela poderia passar o fim de semana e as quarta-feiras na casa. “Eram os dias que eu mais sofria violência: quarta, dia de jogo, e sexta, sábado e domingo”, conta ela.

Fotografia colorida mostra mulher branca de cabelo preto e branco em frente a um móveis e cartazes

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL

Vivian Mendes coordena a ocupação mais recente do coletivo.

Mas a assistente social não chegou a fazer uso desse esquema temporário: no dia seguinte, foi fortemente agredida pelo marido. Saindo na rua com as crianças, conseguiu ajuda dos vizinhos e pegou um táxi para a ocupação à 1h30 da madrugada.

“As coisas foram piorando ao longo dos anos. Começou com violência psicológica, patrimonial [quando o homem usa a questão financeira para ter controle da esposa] e depois evoluiu para violência física e sexual”, conta ela. “Nós éramos vizinhos dos meus sogros, que protegiam meu marido e também cometiam violência contra mim”, conta ela.

E as instituições que deveriam ter dado suporte à ela falharam.

“Ao longo de todo o meu casamento eu falava dos problemas com o pastor e eu ouvia: ‘vamos orar que passa’. Mas nunca passou”, conta.

Foto mostra meninas brincando com itens de papelaria, seus rostos não são visíveis

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL

As mulheres recebem informações sobre medidas protetivas para elas e seus filhos

Ela também teve pouco apoio da polícia. “Na última vez que chamei, eles não queriam me levar para delegacia. Eu liguei no batalhão e falei com o coronel, que obrigou os PMs que atenderam a ocorrência a me levarem. Mas eles levaram meu agressor no mesmo carro, do meu lado. E quando chegaram na delegacia, deram informações falsas no BO.

Flora conta que chegou a ser agredida pelo marido com o bebê no colo. Na noite em que fugiu, diz, ela apanhou durante uma hora.

“Me acolheram na casa Tina Martins e tive todo o atendimento necessário. Deram um jeito de me abrigar”, conta ela, que conseguiu manter sua rotina de trabalho e estudo.

As ocupações que têm condições de abrigar mulheres são chamadas de “casas de passagem” – a ideia é que a estadia seja temporária, dando apenas o apoio necessário para que elas consigam fazer a transição do relacionamento abusivo para uma situação mais estável. Também não há espaço para que elas levem muitas coisas, como móveis – podem levar apenas os itens mais necessários de uso pessoal.

Na Tina Martins, há um galpão para atividades coletivas, quartos compartilhados com camas e armários individuais, quatro banheiros, uma cozinha e uma lavanderia – tudo muito simples. As mulheres abrigadas e a coordenação dividem entre si as tarefas, como cozinhar, fazer a limpeza e manutenção.

Além disso, há uma série de eventos organizados no local, como feirinhas para arrecadar recursos, oficinas de poesia, dança e música, rodas de conversas e palestras.

Foto colorida mostra um cartaz com dados sobre violencia contra a mulher em uma das ocupações

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL

As mulheres abrigadas e as ativistas dividem a organização e limpeza dos espaços

Flora conseguiu manter contato com conhecidos enquanto esteve abrigada, mas em alguns dos outros espaços o uso de celular é mais restrito para proteção das mulheres.

Também há algumas outras regras, como horário para dormir – exceto para quem estuda ou sai tarde do trabalho – e a necessidade de ser acompanhada por alguma das mulheres do coletivo para ir em festas, shoppings, etc (por questão de segurança).

Mas a estrutura, as regras e as atividades organizadas nas ocupações podem variar muito de cidade para cidade – e algumas estão em risco de despejo.

Com três quartos, uma cozinha e um banheiro, a casa de passagem no Estado de São Paulo, que fica na cidade de Santo André, é uma delas.

A primeira mulher abrigada no espaço, inaugurado em janeiro de 2021, ficou 9 anos trancada pelo marido em casa, conta Vivian Mendes.

“Ela tentou fugir diversas vezes, mas não tinha para onde ir e seu agressor acabava levando-a de volta. Certa vez foi para a casa de uma amiga, o agressor encontrou o local e bateu nas duas. Na última vez que fugiu, para não colocar ninguém em risco, chegou a morar na rua.”

Foi então que ela encontrou a casa Helenira Preta em Mauá. De lá ela foi transferida para Santo André, onde ficou durante um mês até conseguir um emprego e poder alugar um quarto de pensão para morar.

Fotografia mostra uma mulher negra de cabelos compridos e três mulheres brancas sorrindo
Julia Soares (esq.), que faz parte da coordenação do coletivo, com outras ativistas

Risco de despejo

Das nove ocupações gerenciadas pelo coletivo Olga Benário, quatro estão em risco de despejo por pedidos de reintegração de posse: o Centro de Referência Soledad Barrett, em Recife; a Casa Antonieta de Barros, em Florianópolis; a Casa Helenira Preta, em Mauá; e a Casa Carolina Maria de Jesus, em Santo André. Todos os espaços foram nomeados em homenagem a mulheres ilustres.

“Os espaços que ocupamos são sempre espaços que estavam abandonados há muito tempo, sem uso. Normalmente são espaços sobre os quais a comunidade do entorno reclama, por causa de pragas, sujeira”, diz Vivian Mendes.

“Se vão fazer a reintegração de posse, então onde o serviço de atendimento às mulheres vai ser disponibilizado? Muitos locais não têm delegacias da mulher, e mesmo onde tem o atendimento não é amplo, não leva em conta as muitas necessidades das vítimas.”

Foi fazendo este tipo de questionamento às autoridades que as ativistas do coletivo conseguiram regularizar a situação da Casa Tina Martins, que saiu do espaço que ocupava inicialmente e hoje funciona um em imóvel cedido pelo governo do Estado – mas é sustentado e mantido pelas mulheres.

Sem o mesmo apoio do poder público, os outros espaços lutam para sobreviver. Além do risco de despejo, o coletivo precisa conseguir manter as casas funcionando.

Criança de costas brinca com peças encaixáveis de Lego

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL

As mulheres podem levar os filhos nas ocupações

Financiamento coletivo

Parte do apoio vem das próprias mulheres que foram ajudadas pelo coletivo e agora querem retribuir. Flora hoje atua como voluntária no mesmo espaço, recebendo outras mulheres em situação de risco.

Mas embora o trabalho seja feito por voluntárias e ativistas, cada uma das casas têm gastos diferentes com contas, manutenção dos imóveis e a própria assistência dada às mulheres. Hoje todos os gastos são cobertos por doações, vaquinhas, arrecadação de feirinhas e muitas vezes contribuição dos próprios ativistas.

No espaço Laudelina de Campos Melo, em São Paulo, por exemplo, só a reparação do telhado do galpão ocupado custou R$ 15 mil, conta Mendes. Foi feita uma vaquinha para arrecadar o dinheiro.

Localizado ao lado de uma praça ocupada por barracas de sem-teto em uma região comercial do Canindé, zona norte da capital paulista, o espaço é a ocupação mais recente do coletivo. Os trabalhadores, imigrantes e muitos moradores de rua que passam em frente costumam espiar curiosos para dentro das portas abertas do grande galpão industrial, que estava abandonado até 2021.

O local ainda tem paredes descascadas, chão de concreto e janelas quebradas. Mas agora em vez de entulho, tem móveis que parecem de uma casa vó: um sofá antigo, poltronas aconchegantes, tapetes felpudos feitos à mão, toalhinhas de tricô e vasinhos de plantas e flores. Também há um canto para cozinhar com uma geladeira e um fogão antigos, provenientes de uma doação.

As voluntárias que organizam o espaço tentam pouco a pouco deixá-lo mais aconchegante e lutam diariamente contra a poeira e as pombas que se alojam nos vãos do telhado.

“Nós mesmas retiramos toneladas de lixo e entulho, religamos a luz e a água e pedimos para amigos engenheiros avaliarem se isso aqui não ia cair, se a estrutura aguenta”, conta Mendes.

Mesmo ainda precisando de reparos, a casa já recebe muitas imigrantes, moradoras e trabalhadoras da região e também mulheres em situação de rua.

Pequenas estátuas de mulheres negras ao lado de um buquê de flores

Detalhe da decoração feita pelas mulheres em um dos espaços

Por causa da localização, o tipo de demanda ali no dia a dia vai além das vítimas de violência. Diversos moradores de rua passam pedindo para usar as torneiras para encher seus galões de água. Um armário próximo à entrada tem itens de higiene – fraldas, sabonete, absorventes – para serem doados às mulheres em situação de necessidade. As voluntárias também eventualmente usam a cozinha para fazer marmitas para pessoas com fome.

“Às vezes as mulheres que chegam nem querem denunciar uma violência no começo, mas conversar, perguntam o que é o espaço. Muitas vezes elas ainda não estão fortes o suficiente nem para pedir ajuda diretamente”, afirma Mendes.

Foi o caso de uma imigrante boliviana, Olívia*, que inicialmente visitou a casa Laudelina para conhecer a feirinha e passou a frequentar o espaço de vez em quando.

Conversando com ela, as voluntárias descobriram que ela ficava vários dias acorrentada no trabalho, onde também morava, em uma situação análoga a escravidão. Olívia também sofria violência sexual no local.

Com ajuda das voluntárias, ela conseguiu sair do local e encontrar outras formas de se manter. Hoje ela mora em uma ocupação em São Paulo que não é organizada pelo Olga Benário e trabalha fazendo bicos e faxinas.

Flora, que morava em um bairro de classe média alta quando vivia com o marido, também foi morar em outra ocupação – não exclusiva para mulheres – após sair da casa de passagem.

“Saí de uma casa de quatro quartos para morar em um cômodo apertado, mas nunca estive tão feliz”, conta ela.

“Eu digo que nós [e os filhos] nascemos em 2017. Não é nem renascimento, é nascimento mesmo, porque o que eu tinha antes não era vida”, diz ela. “Na igreja eu ouvia que Jesus salva. Mas eu fui salva por outras mulheres.”

*Nomes alterados para segurança das mulheres

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