Por Igor Ojeda. Tráfico de pessoas, servidão por dívida, condições de alojamento e alimentação degradantes. Segundo relatório feito por cinco auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), e declarações do procurador Marcelo José Fernandes, do Ministério Público do Trabalho (MPT), 118 trabalhadores estavam submetidos a tais violações e foram resgatados da escravidão em uma obra da construtora MRV em Macaé (RJ). Destes, 108 eram contratados da MRV e 10 eram funcionários de empresas terceirizadas. Participaram da libertação também dois agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF). É a quinta fiscalização feita por diferentes órgãos desde fevereiro de 2011 em que a empresa é considerada responsável por explorar mão de obra escrava. Somando os cinco flagrantes, foram 203 pessoas resgatadas em quatro anos.
O resgate mais recente aconteceu em outubro. Em visita ao local das obras, a força-tarefa formada por integrantes do MTE, MPT e PRF, considerou degradante a situação vivida pelos trabalhadores no alojamento fornecido pela construtora. As condições de higiene eram muito precárias e a alimentação era parca e desbalanceada. Além disso, foram constatadas as práticas de descontos ilegais nos pagamentos, servidão por dívida e de tráfico de pessoas, uma vez que parte das vítimas foi recrutada por engenheiros da empresa em Alagoas, Maranhão, Piauí e Sergipe.
“A moradia era ruim. Os sanitários, péssimos, com fezes escorrendo. Os trabalhadores tinham de tomar de banho usando EPIs [Equipamentos de Proteção Individual], como botas. O refeitório ficava em cima dos sanitários. O cheiro era insuportável. Ninguém consegue fazer sua refeição em um local cheirando a urina”, relata Márcia Albernaz, auditora fiscal que comandou a fiscalização. “Havia problemas nos artigos de segurança, na alimentação… era um rol de irregularidades que afetava um conjunto grande de trabalhadores. Faz as pessoas se indignarem.” Condições degradantes e servidão por dívida figuram no artigo 149 do Código Penal como elementos que configuram a exploração de trabalho análogo à escravidão. Segundo placas afixadas em um dos condomínios que estavam sendo erguidos pela MRV, o empreendimento recebia recursos da Caixa Econômica Federal, no âmbito do programa Minha Casa Minha Vida.
Por conta de dois dos flagrantes, a MRV chegou a ser incluída na chamada “lista suja do trabalho escravo”, listagem de empregadores que exploram mão de obra escrava mantida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). No entanto, liminares na Justiça impedem que a construtora siga figurando nela, decisões criticadas pelo MPF, que emitiu parecer recomendando que a empresa volte ao cadastro. Em nota enviada à Repórter Brasil, a construtora afirma que os locais de trabalho “obedecem rigorosamente as normas trabalhistas, com todos os salários e benefícios em dia” e que “refuta as afirmações de que trabalhadores tenham sido resgatados por se encontrarem em condições degradantes e por existirem servidões por dívidas”. (confira aqui a nota da MRV na íntegra)
A equipe de fiscalização já havia feito uma visita ao local alguns meses antes, em julho, mas a situação encontrada era diferente, pois havia menos trabalhadores alojados na obra e não havia indícios de tráfico de pessoas de outros estados. Segundo Márcia, na ocasião não foi constatado trabalho escravo, e as autuações trabalhistas se referiam a outras irregularidades.
“Mas, de lá para cá, o número de funcionários aumentou de 250 para 360. As instalações que havia não foram capazes de acomodar a todos. Construíram um alojamento novo em contêineres, e o número de chuveiros e banheiros ficou abaixo da legislação. Com a quantidade de gente que havia usando tão poucos banheiros, houve o entupimento do sistema de escoamento de água e dejetos”, diz a auditora.
De acordo com o relatório de fiscalização elaborado pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Rio de Janeiro (SRTE/RJ), braço do MTE no estado, “em razão do aumento expressivo de laboristas (…) houve – por óbvio – uma falência de todo sistema hidráulico para escoamento de águas servidas e águas para banho e higiene íntima que colapsou pela superpopulação e má adaptação das cabines sanitárias vizinhas aos chuveiros”.
A MRV afirma, em sua nota, que na ocasião da primeira visita dos auditores, autorizou-se a permanência dos trabalhadores no alojamento averiguado. “Importante relatar que os trabalhos de fiscalização estenderam-se por sete dias e que, embora a fiscalização tenha se dado fora dos padrões usuais, todas as solicitações feitas pelos auditores e procurador do trabalho foram integralmente atendidas.” A auditora do MTE Márcia Albernaz, no entanto, reitera que as condições de então não eram as mesmas das encontradas na segunda fiscalização. “Não havia esse tipo de banheiro, e o refeitório que condenamos agora não tinha sido mostrado à fiscalização, e sim um menor”, esclarece.
Tráfico de pessoas
No total, 356 homens com vínculo empregatício direto com a MRV trabalhavam na obra no momento da fiscalização realizada em outubro. Destes, mais de 100 dormiam no local, em um alojamento conhecido como “Central”. As autoridades trabalhistas apuraram que parte dos trabalhadores contratados entre as fiscalizações de julho e outubro foi vítima de aliciamento e tráfico de pessoas. Segundo Márcia Albernaz, engenheiros da MRV arregimentaram funcionários em Alagoas, Maranhão, Piauí e Sergipe. “Mandaram engenheiros para quatro estados diferentes. Em vez de procurarem entidades e órgãos como Senai [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial], Ministério do Trabalho e Sine [Sistema Nacional de Emprego], eles foram atrás de empresas de ‘gatização’, empresas sem idoneidade que cobravam dos trabalhadores uma vaga de emprego”, conta a auditora.
Ela relata que cada vaga custou de R$ 250 a R$ 360 aos trabalhadores. Além disso, durante a viagem de seus estados de origem a Macaé, não tiveram os custos cobertos. “Alguns não receberam dinheiro para alimentação, outros receberam R$ 100. Do Maranhão, são três noites e quatro dias de viagem, esse valor é muito baixo. Alguns trabalhadores empenharam joias de famílias e chegaram endividados. Ficaram com a expectativa de serem reembolsados, mas não foram.”
De acordo com o relatório de fiscalização, a recepção dos empregados no canteiro de obras da MRV ficou caracterizada como “assenhoramento” moderno, ou servidão por dívida, pois o aliciamento havia sido feito com cobrança pelo emprego e falta de indenização com alimentação no translado. “As dívidas foram induzidas em razão da cobrança por transporte (deslocamentos pendulares e passagem de retorno), hospedagem e alimentação. Nesses casos, o cerceamento da liberdade dá-se tanto pela necessidade de pagar quanto pelo constrangimento pessoal do trabalhador, que se sente moralmente obrigado a quitar as dívidas com sua força de trabalho, ainda que ilegais, antes de deixar o empreendimento, o que, em face da relação entre os preços cobrados pelas mercadorias e o valor pago aos trabalhadores, acaba sendo impossível”, conclui o documento.
De acordo com a MRV, as admissões dos trabalhadores foram feitas nos seus estados de origem, e foram providenciados transporte, alimentação e hospedagem de acordo com as normas.
Refeitório sobre o banheiro
As condições degradantes as quais os trabalhadores eram submetidos não se limitavam à precária situação dos banheiros. Os funcionários da MRV abrigados no alojamento Central tinham de fazer as refeições em um refeitório construído sobre um conjunto de banheiros, que por sua vez continham fossas turcas em vez de vasos sanitários. “Do segundo andar do refeitório havia uma comunicação indireta com os sanitários – por força de fenda de mais de 30 metros de comprimento e cerca de 15 cm de largura. Um companheiro em momento íntimo, sem qualquer privacidade, teria de realizar suas necessidades fisiológicas sendo facilmente observado. Por óbvio, que o cheiro era insuportável e fazia qualquer um ter repugnância durante as refeições”, diz o relatório.
A alimentação servida, além de ser praticamente a mesma todos os dias, era rica em carboidratos e pobre em nutrientes. Aos cafés da manhã, apenas um pão era fornecido para cada um dos trabalhadores, que não podiam ter acesso a mais comida por conta própria, já que estavam distantes de qualquer estabelecimento comercial. Segundo as autoridades trabalhistas, tal realidade destoa com o fato de a MRV estar inscrita no Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), por meio do qual obtém desconto no pagamento de impostos.
Jornadas exaustivas
A fiscalização constatou, ainda, a prática de jornada exaustiva imposta a alguns trabalhadores. Um deles, por exemplo, trabalhou das 6h25 às 19h35 por um mês, de 16 de setembro a 15 de outubro de 2014. Outro entrava às 6hs e saía às 19hs em diversos dias no mesmo período. Na maioria dos casos, porém, não foi possível averiguar qual era a jornada exercida, já que a MRV não teria apresentado documentação contendo controle dos horários. “Não havia a consignação dos horários de entradas, saídas e períodos para repouso ou alimentação efetivamente praticados, impossibilitando a comprovação documental da duração do trabalho realizado e, por consequência, a concreta aferição das horas laboradas pelo trabalhador. Assim, restou comprometida a verificação da regularidade da jornada e a concessão dos descansos legalmente previstos”, diz o relatório de fiscalização.
No total, o MTE expediu 22 autos de infração, 17 deles para a MRV. A construtora desembolsou R$ 327.982,51 em verbas referentes às rescisões trabalhistas pagas aos trabalhadores resgatados. As terceirizadas, juntas, arcaram com R$ 23.415,64. As vítimas receberam, ainda, guias de seguro-desemprego emitidas pelo Ministério do Trabalho, e retornaram a seus estados em ônibus contratados pela MRV.
O Ministério Público do Trabalho estuda propor um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) à empresa para que as irregularidades sejam sanadas e não voltem a ocorrer. Segundo o procurador Marcelo José Fernandes, outra possibilidade é que se cobre a implementação dos termos de um acordo já existente entre MRV e MPT.
Participaram da fiscalização, além da auditora-fiscal Márcia Albernaz e do procurador Marcelo José Fernandes, os auditores Hercules Ramos Terra, Jane Morgana Mar Passos, Olivar Pimentel Brandão e Fátima Cristina Chammas dos Santos, pelo Ministério do Trabalho e Emprego, e os agentes Marcelo de Souza Guimarães e Helencar Medeiros Cabral Vicente, pela Polícia Rodoviária Federal.
Foto: Reprodução/Brasil de Fato
Fonte: Brasil de Fato