Pedras que carregam orgulho e saudades. Por Yasser Jamil Fayad.

Por Yasser Jamil Fayad.

Era uma linda noite de céu estrelado e lua cheia no campo de refugiados de Jenin1 e, como de costume, após o jantar todos nos reunimos na varanda da casa. Tínhamos como combustíveis sementes, pistaches, café e chá árabes, além da fumaça adocicada do narguilé que criava um ambiente propício para o diálogo e encontro. O assunto não podia ser outro naquelas conversas: A dor da colonização estrangeira judaica sionista e o que poderíamos fazer para libertar a Palestina desse indigno e inglório fado. Meu avô decidiu contar-nos uma história, o que não acontecia com frequência, todavia por causa de sua sabedoria apreciávamos esses raros momentos. Naquela noite, decidiu contar a história de seu tio paterno Abdel Nasir Anwar El- Najell, o “gigante dócil”, como fora conhecido. As memórias de meu avô sempre apresentavam esse seu tio de forma especial, como alguém grande, forte e extremamente amoroso.

Lembrou que seu tio Abdel Nasir nasceu e foi criado em pequena aldeia, no norte da Palestina, tinha tido uma vida simples, porém muito feliz de camponês como o era para a maioria dos palestinos, antes de 1948. No vilarejo nos conhecíamos e éramos de alguma forma aparentados. As festas de casamentos sempre feitas nas ruas e abertas, visto que todos eram convidados. As pessoas se ajudavam nas colheitas de azeitona, construção de algum poço de água comum e nas construções de novas casas. Aliás, essa era uma das grandes preciosidades daquela vida – a casa da família – feitas de pedras à época. A casa da nossa família e do tio Abdel Nasir era tão antiga quanto a própria aldeia. Cada parede e pedra daquela casa tinha história, pois foram erguidas por antigas gerações de nossos antepassados. Toda a reforma e ampliação da casa foram somadas por gerações conseguintes, a ponto de ser possível traçar uma vasta genealogia apenas observando a casa.

Quando os colonizadores judaicos, minuciosamente, prepararam a expulsão em massa dos vilarejos daquela região e de outras, acreditavam que seria o fim daqueles palestinos desenraizados. O terror e o medo dos assassinatos a sangue frio, espancamentos, torturas, mesmo de crianças e idosos, amedrontavam os civis. Eles fizeram massacres como os de Deir Yassin, antes mesmo da metade de maio de 1948, para horrorizar a população civil desarmada. Tio Abdel Nasir tinha apenas 23 anos de idade, tentou resistir aos invasores da maneira que pôde. Os britânicos haviam desarmado a população palestina preparando o terreno para as gangues terroristas judaicas. Contudo teve que ajudar o pai ferido em combate, mãe e os pequenos irmãos (o que incluía meu bisavô) a fugirem em busca de abrigo. Ele era o irmão mais velho e sentia em seu coração que era seu dever voltar para lutar, apesar das súplicas sua mãe, que temia seu assassinato por aqueles bandidos. Foi uma época terrível a Nakba2 de 1948,  usaram do mais atroz terror contra nós… com tochas à noite invadiam pacatos vilarejos palestinos, como fizeram com o do tio Abdel Nasir, e aos tiros, gritos, bombas, armamentos modernos de guerra e estupros,  expulsavam os habitantes originários  daquelas terras.

No campo de refugiados amontoavam-se barracas e tendas com pessoas de vários lugares da Palestina, relatando histórias similares. Suas vidas tiveram um curso profundamente modificado pela expulsão e o genocídio. As condições de vida tornavam-se miseráveis e os campos provisórios iam adquirindo feições de maior permanência diante do retorno negado. Eram locais onde faltavam água, alimentos, remédios, roupas, cobertores… e o sentimento de derrota e melancolia no rosto dos mais velhos, tornavam  aquela realidade ainda mais pesada. Os pais do tio Abdel Nasir envelheceram décadas em poucas semanas naquela nova vida, estranhamente as crianças pequenas eram quase imunes aos acontecimentos.

Um dia, tio Abdel Nasir teve uma grande ideia para mudar o estado de ânimo que se abatia sobre os mais velhos, em especial, seus pais. Durante a noite, decidiu sair escondido do campo de refugiados e adentrou nos territórios roubados de 1948, em direção ao seu vilarejo natal. Era algo muito perigoso, pois o exército e os mercenários judeus faziam rondas constantes como forma de persuasão contra o retorno dos refugiados a seus territórios de pertencimento. Tio Abdel Nasir rastejava e escondia-se atrás de pedras ou em pequenas cavernas, corria entre as plantações de oliveiras até alcançar seu objetivo.

O vilarejo, que tão bem conhecia e do qual sentia saudades imensas, estava novamente diante de seus olhos. Nesse reencontro aproximava-se o mais perto que podia da velha casa de seus antepassados e que sempre fora de sua família. Observava ao longe um grupo de judeus europeus que havia subtraído a casa, eram pessoas estranhas a todos os habitantes da Palestina que conhecera. Tio Abdel Nasir colheu figos e uva da fazenda de sua família e retornou ao campo de refugiados, amontoados em frágeis tendas, trazendo consigo aquele precioso tesouro.

Regressou ao amanhecer e acordou seus pais. Mostrou as frutas em uma trouxa de pano. Confusos seus pais não sabiam ao certo de onde ele havia conseguido tais alimentos, dada à situação precária de escassez em que viviam. Então tio Abdel Nasir disse a eles: “É o figo e a uva do nosso vilarejo, das terras que são nossas, que foram plantadas pelo meu tataravô e cultivadas por nós”. Suas palavras foram mágicas. Seus pais que haviam envelhecido anos em semanas como refugiados, voltaram a ter os olhos joviais repletos de alegria e felicidade. Os três abraçaram-se fortemente, naquele momento não eram mais refugiados em seu próprio país, haviam reencontrado um pedaço precioso de sua pátria. Como se tratava de um acontecimento de alegria, decidiram acordar as crianças para comerem juntos. Tio Abdel Nasir convidou para o banquete outros refugiados da mesma aldeia, amigos e parentes. Todos queriam detalhes da jornada, perguntavam-lhe sobre suas casas, sobre seus animais de criação, … queriam abraçá-lo por seu feito corajoso. Não havia frutas para todos, contudo havia esperança e ela deveria ser espalhada. Era um gesto pequeno, mas que carregava simbolicamente o desejo sincero de retornar as suas terras e de não desistir de lutar por elas. Aquelas frutas não eram somente “frutas”… lembraram-nos o nosso pertencimento à Palestina. Sua ação rompia com a passividade da desesperança e angústia geradas pelo forçado desterro, colocando a desobediência e o enfrentamento ao invasor como alternativa.  Mesmo em uma correlação de forças tão desigual, a sua pequena ação foi geradora de esperança.

A história de tio Abdel Nasir espalhou-se por todo o campo de refugiados e além… tornara-se um herói. Inspirou outros a fazerem o mesmo. Durante os anos seguintes ele continuou a fazer sua jornada noturna até sua antiga aldeia, em algumas tinha que retornar sem sucesso, todavia na maioria das vezes era exitoso. Toda vez que retornava era como se um pedaço da Palestina voltasse a habitar os corações daqueles refugiados de 1948.  Trouxera ao longo dos anos: figo, berinjela, azeitona, uva,… mudas de plantas, enfim o que conseguia carregar.

Meu avô ao contar essa história sabia que aquele ato de coragem e de rebeldia frente ao invasor europeu era testemunha, de que não iríamos embora como eles esperavam. Que nossas raízes são profundas como as das oliveiras plantadas nessas terras ou como a casa construída há tantas mãos de nossos ancestrais. Tio Abdel Nasir nunca desistiu de sua Palestina, quando já era velho o suficiente para não conseguir realizar suas viagens noturnas, sentava-se com a face sempre virada em direção a sua antiga aldeia, era a sua qibla3, até o dia de sua morte. Seu legado soma-se a tantos outros que compõem um gigantesco leque de lutas, resistências e resiliências que nosso povo fez e faz para libertar a Palestina.

Quando todos se dirigiam para dormir, naquela noite de céu estrelado e lua cheia, em Jenin, vi que meu avô estava sozinho no jardim ao lado de uma figueira. Aproximei-me dele e ao me ver disse que aquela árvore era uma das mudas trazidas por tio Abdel Nasir de suas viagens noturnas. Era uma filha das figueiras de nossos ancestrais. Meu avô, com os olhos mareados de orgulho e saudades de seu tio, indicou um monte de pequeninas pedras que circundavam a figueira.  Em todas as viagens que fizera, ao longo de tantos anos, sempre trouxera consigo uma pequenina pedra de seu vilarejo natal…

Meu avô me disse: “Essas são as pedras de tio Abdel Nasir… pedras que carregam orgulho e saudades”.

1 Cidade palestina da Cisjordânia.

2 Do árabe: “Catástrofe”. Expulsão da metade da população civil palestina de seus territórios para a criação do Estado colonial judaico, em 1948.

3 Direção para onde os muçulmanos devem se voltar durante as orações (Meca).

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