“Pedidos por intervenção militar são grito de socorro de uma população descrente”

Felipe Betim e Rodolfo Borges. 

 A antropóloga e cientista social, que se reuniu com grupos de caminhoneiros em greve, diz que o movimento não é facilmente encaixável e revela uma lógica de redes, não de sindicatos.

Ao longo da última semana, a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, professora na Universidade Federal de Santa Maria (Rio Grande do Sul), se reuniu com quatro grupos de caminhoneiros que estavam em greve. O trabalho, feito com a antropóloga Lucia Scalco, fazia parte de um projeto mais amplo das duas especialistas sobre os eleitores de Jair Bolsonaro. Pinheiro-Machado, que também já lecionou em Oxford e na Universidade de São Paulo (USP), já vinha estudando os movimentos sociais que ocuparam as ruas no Brasil e no mundo nos últimos anos. “Todos são ambíguos porque seguem uma lógica de agregação, em que você agrega pessoas via viralização, contágio, nas redes sociais. E como não são sindicalizados, sem aquela linha clara do sindicado e do movimento, elas reivindicam coisas múltiplas”, explica. Uma das lições da paralisação, explica ela, é o fato de que a polarização política vista nas redes sociais não abarca toda a população, que é contraditória.

Ela argumenta ainda que os pedidos por intervenção militarrepresentam um “pedido de socorro” de uma população descrente com a democracia representativa e para quem viver está cada vez mais difícil. “Não é um pedido por uma nova ditadura, mas sim para parar com a roubalheira e dar rumo para um país desgovernado”, diz. Observadora atenta da esquerda, explica que ela perdeu a capacidade de fazer trabalho de base e acredita que o grupo tem o dever de defender os caminhoneiros, uma classe trabalhadora precarizada, independentemente de pedirem uma intervenção militar ou votarem no candidato ultraconservador Bolsonaro (PSL). “Não se escolhe trabalhador bom ou trabalhador ruim”.

Pergunta. Qual balanço você faz da greve dos caminhoneiros e quais lições podemos tirar?

Resposta. O primeiro de tudo é que houve um amplo apoio popular e as pessoas foram construindo a ideia de que é possível fazer alguma coisa e parar o país com uma ampla solidariedade da sociedade. A greve também mostrou que população e polarização são coisas diferentes. A polarização não abarca toda a população. Os grupos mais politizados tendem a encaixar esses movimentos dentro de um ou outro lado, mas não veem que a população é contraditória e reflete diversos lados da polarização. Outra grande lição: a esquerda não tem base e não tem capacidade de fazer trabalho de base. Como o PT não entrou com força, por diversas razões, a esquerda que sobra é muito pequena. O PSOL, movimentos menores, autonomistas… Foi muito importante terem apoiado a paralisação desde o início, mas o PT ainda é hegemônico e isso ficou muito claro. Algo que a gente vem percebendo desde 2013 é que o trabalho de base agora tem que ser via WhatsApp. Os movimentos são ambíguos porque seguem a lógica de agregação, em que você agrega pessoas via viralização, contágio, nas redes sociais. E como não são sindicalizados, sem aquela linha clara do sindicado e do movimento, elas reivindicam coisas múltiplas. Tanto a direita como a esquerda ainda não sabem lidar com isso.

P. Você conversou com quatro grupos diferentes de caminhoneiros durante a greve. O que eles tinham para dizer? O que queriam?

R. Havia uma revolta imensa em relação ao combustível, que foi o catalisador de tudo. Mas havia  também insatisfação relacionada à perda do poder de compra, de se gastar tudo o que tem e não sobrar nada ao chegar em casa, e de não poder viver com o que sobra. Por isso, há uma revolta contra tudo. Já não era só por 46 centavos. Os dois últimos dias de radicalização foram contra a corrupção e contra tudo o que estava lá, para tirar Michel Temer do poder.

As pessoas com quem eu falei eram a favor da intervenção militar e votavam no Ciro Gomes [pré-candidato à presidência pelo PDT]. O movimento é diverso e as pessoas estão vivendo uma fase de muita contradição, sentindo as dores da crise [econômica] e reivindicando bens públicos, pautas progressistas como educação e saúde universais, intervenção.

P. O que o pedido por intervenção militar representava?

R. Os manifestantes ressaltavam muito o fato de que o Brasil estava sem rumo. A nossa leitura é que isso é um pedido de socorro, e isso explica também os eleitores de Bolsonaro. Não é um pedido por uma nova ditadura, mas sim para parar com a roubalheira e dar rumo para um país desgovernado. Não quero minimizar isso, só que não podemos cair no lugar comum da própria esquerda em acreditar que toda a população é fascista. As pessoas pensam que, do jeito que está, não dá mais. É uma descrença total na democracia representativa e uma percepção de que esse sistema serve aos que estão no topo.

P. Mas, ainda assim, grupos radicais autenticamente militaristas se aproveitaram da situação pra vender suas ideias…

R. Totalmente. Mas isso eles já vem fazendo pelo WhatsApp há muito tempo. Já é uma questão popular há mais tempo que só se reforçou durante os movimentos. Essas pessoas conseguiram de fato espalhar a ideia de que o país precisa de intervenção, mas não consigo investigar exatamente como essas pessoas agiram durante a greve. São pessoas doidas, não são grupos do Exército organizados que querem dar o golpe. Mesmo os caminhoneiros diziam que não sabiam de onde vinham essas mensagens. Quando o movimento começou a se radicalizar, a gente perguntou quando iam parar. E eles diziam que iam “até parar o Temer”. E também falavam “agora está indo por ladeira abaixo e nós não sabemos onde vai parar”. Bateu uma agitação.

P.  Como ocorreu durante o impeachment, havia também uma onda antiesquerdista?

R. Fiquei surpresa porque não queriam falar disso, era simplesmente “a classe política que a gente odeia”. Não vi nada de anticomunismo ou anti-PT. Era antipolítica. Inclusive, em um desses grupos havia uma liderança que foi contra o impeachment e era de esquerda. É uma classe muito precarizada que, depois da entrada do Temer, estendeu essa raiva a todos os políticos, a imprensa, a tudo que fosse hegemônico.

P. Você enxerga alguma ligação entre esse movimento e os de junho de 2013?

R. Quero evitar comparações com 2013. Com a paralisação, toda a política tremeu na base e esse ponto sim lembra 2013, ao mesmo tempo que outras coisas são muito diferentes. Mas tanto 2013 como o rolezinho e agora a greve tem essa característica do século XXI. São movimentos que se espalham e são ambíguos. Outra lição é que essa insatisfação antissistêmica permanece.

Todos esses movimentos fazem parte do processo de como o mundo vem reagindo pós-crise de 2008. Primeiro houve uma primavera global que se dizia que não tinha pauta, mas que foi puxada por grupos de esquerda. No Brasil, veio o junho de 2013, que tinha algo contra a política hegemônica. Desde 2008, há uma descrença generalizada sobre a capacidade de funcionamento da democracia representativa. Aqui esses movimentos permanecem dentro de um caldeirão de uma classe precarizada que é muito ambígua, mas onde há essa revolta. Sempre há o risco que de que setores mais radicais se apropriem desse caldeirão. Contudo, também acredito muito na forma como as próprias pessoas vivenciam a desigualdade. Então a direita organizada política não vai conseguir entrar. Só se for uma direita anti-establishment meio Trump.

P. Nesse contexto, o que esses grupos querem?

R. O pós-austeridade levou à precarização do trabalho, formou um precariado. São sujeitos que não estão organizados em sindicatos. Quando eles se revoltam, a pulsão rebelde é ambígua, porque não existe mais a estrutura de cima para baixo do trabalho fordista, é muito mais solta. Esses movimentos têm a característica de ser contra a democracia representativa da forma como ela está. Em 2013, o Governo [brasileiro] era de esquerda, o que levou a análises de que os movimentos seriam de direita. Mas eram movimentos anti-austeridade.

P. Por que a greve dos caminhoneiros não se transformou numa onda ainda maior, com milhares de pessoas indo para as ruas, como ocorreu em 2013? Este era o temor do Governo.

R. Não precisou muito ir para as ruas porque o Governo cedeu. Ainda assim, a paralisação se espalhou muito. A greve parou o país, afetou a percepção popular e conseguiu uma grande simpatia das pessoas, apesar de que estivessem furiosas por não poderem andar de carro ou comprar comida. Algumas manifestações foram convocadas, mas acho que houve medo da esquerda de que houvesse uma intervenção. Acho que a direita também estava com medo.

P. Apesar dos caminhoneiros serem uma classe trabalhadora bastante precarizada, muita gente de esquerda dava a entender que, o que importava, era se eles eram ou não a favor de uma intervenção ou se iam votar em Bolsonaro. Acha que a esquerda deveria apoiar essa classe independente de suas opções eleitorais?

R. 100%. Porque se você é uma pessoa de esquerda, você vai partir do principio que a própria contradição do sistema é vivida no âmbito individual. Se a gente não trabalha com os setores precarizados, com essas pessoas que se revoltam contra o sistema e contra a desigualdade, e não estendermos as ambiguidades, então não vamos ter ninguém. A tendência de precarização do trabalho no mundo todo veio para ficar. Os caminhoneiros são pessoas que trabalham 15 horas por dia, não dormem, têm pressão alta, muitos usam drogas… São uma das classes que mais sofrem com a precarização do trabalho, que é uma pauta muito própria da esquerda. Ela deveria entrar independentemente de qualquer coisa. Não se escolhe trabalhador bom ou trabalhador ruim. Se a gente esperar um trabalhador puro, que vem com todo o discurso da polarização, dizendo “Lula Livre” e todo o pacote da esquerda… Esses trabalhadores precisam ser disputados. Mas, independente de serem disputados, não importa. A esquerda precisa apoiá-los.

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