Por Paulo Fonteles Filho.*
Há 29 anos a UDR assassinava Paulo Fonteles. A ação, bem planejada pelo antigo agente da comunidade de informações da repressão política, James Vita Lopes, contou com a execução de pistoleiros ligados ao mundo do crime da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Os mandantes, um consórcio de latifundiários que reunia Ronaldo Caiado, Jairo Andrade, Fábio Vieira Lopes e Joaquim Fonseca, todos organizadores daqueles leilões do medo, muito comuns logo no período posterior à redemocratização do país e durante o efervescente processo da Constituinte. Era 1987, 11 de junho.
Depois da prisão política ao lado da mulher Hecilda, depois do pau-de-arara, depois de ter e gerar filhos na prisão, depois do 477, depois dos poemas sobre a forca, depois das matas gerais e do vento camponês do Araguaia e do “Resistência”, depois dos posseiros alumiando o advogado-do-mato que seguia pelos sertões no fusca ou em montarias, com irmãos da igualdade, com a imensa rosa no peito – a paixão e o Partido – depois da canção da Elis, depois do combativo mandato de deputado e de teus olhos sorridentes do dia seguinte que nunca houve porque te mataram com três tiros, pelas costas, num posto de gasolina que já nem existe.
Todos os dias lembro, em alguma hora, daqueles acontecimentos. Nas retinas da memória a aflição no rosto de meu irmão, das pessoas chegando, do tumulto, do descompasso da vida e de minha primeira passeata empurrando, com muitos, o corpo do pai morto sob uma chuva de papel picado e das bandeiras vermelhas nas janelas dos prédios. Lembro também da solidariedade dos colegas da escola e de “Pesadelo”, de Paulo César Pinheiro.
Decidi, naquele dia, entrar pra luta. Tinha 15 anos, um buraco no peito e a militância comunista no horizonte. Certas coisas realmente salvam a alma, três delas aprendi no curso dos anos: a atitude consciente diante do mundo, as pessoas e a poesia. O resto é mistificação.
A vida, como ensinou Gabriel Garcia Márquez, “não é a que a gente viveu e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”. Eu tenho por obrigação contar essas histórias de sangue e de impunidade – mesmo que a gente sinta profundamente – para que não se repitam porque os poderosos só ensejam viuvez e orfandade.
Me somo ao Elias, a Antônia, a Luzia, Macial e Orlando, ao João do João, a Nedyma e Alex, todos filhos de pais assassinados pelo latifúndio e a grilagem na Amazônia. Somos milhares, tantos anônimos que o capital estrangula todos os dias nos grotões do trabalho escravo, na grande empresa do medo e num estado e judiciário que nos devem explicações: porque quem nos feriu continua impune?
Nossos pais – Virgílio Sacramento, Expedito Ribeiro, João Canuto, João Batista, Paulo Fonteles e o “Gringo”- foram sentenciados, anunciados em listas macabras e covardemente imolados porque defendiam ideias, os trabalhadores e a civilizatória luta dos direitos humanos no Brasil.
Mas esses são tempos estranhos, de golpe na democracia e nos direitos do povo. As liberdades públicas estão sob risco quando um cretino – desses que nunca leu um livro e desconhece a história do país – ocupa uma tribuna, a liderança da fé ou programa de televisão para pregar linchamentos, porrada em mulher e o genocídio dos jovens das periferias.
A violência sempre vai se alimentar pelo discurso do ódio, recurso que a direita usurpadora e a grande mídia bebe na Gestapo de Hitler, afinal, Willian Waack é o Goebbels dos patinhos da Fiesp. E eles precisam ser derrotados como forma a assegurar o progresso espiritual e material da imensa maioria dos brasileiros.
É por isso que o Virgílio se levanta no Moju, que o Expedito e o Canuto se agigantam nas noites de Rio Maria, que o Batista traz a rebeldia no bornal, que o “Gringo” ilumina os olhos da Oneide nas barrancas do Araguaia e tu, meu pai, estás tão próximo que já podemos tocá-lo com mãos de homens e mulheres livres.
Morto nunca serás.
*Paulo Fonteles Filho é defensor de direitos humanos e membro da Comissão da Verdade do Pará.
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Fonte: Vermelho.