Pastores da Universal ensinam racismo religioso a bombeiros de Sergipe

Programa da Igreja Universal realiza culto em quartel do Corpo de Bombeiros de Sergipe | Foto: Reprodução / Instagram

Por Priscila Viana, Ponte Jornalismo.

Oficiais do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Sergipe (CBMSE) começavam mais um dia comum de trabalho ainda no início de 2019, quando receberam a visita de um subtenente da Polícia Militar do Estado e pastor da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). “Agora que o nosso presidente [Jair Bolsonaro] ganhou, houve uma reunião entre ele e os nossos líderes maiores das igrejas e ficou acordado que é o momento de entrar nos quartéis”. O recado explícito que reafirma na prática a relação entre a ascensão do bolsonarismo e a expansão dos grupos evangélicos nas corporações militares foi relatado à Ponte Jornalismo por oficiais dos bombeiros que não terão suas identidades reveladas por questões de segurança.

“Num primeiro momento, a gente tinha que ficar em posição de continência, porque eles chegam quando fazemos a passagem de serviço entre uma equipe e outra. Inicialmente, era obrigatório que as guarnições permanecessem presentes para ouvir o que eles falavam. Independente de a pessoa querer ou não, de a pessoa fazer parte daquela religião ou não”, afirma um oficial candomblecista do CBMSE que atua no quartel central de Aracaju, capital sergipana.

Desde então, o quartel passou a receber visitas semanais de representantes do grupo Universal nas Forças Policiais (UFP), formado por policiais militares e pastores ligados à IURD. Outro oficial, que atua no quartel da praia de Atalaia, também em Aracaju, reitera as informações e destaca que as visitas evangélicas têm criado constrangimentos e impactado nas relações interpessoais no ambiente de trabalho.

“Quando eles chegam, o comando pressiona todos os que estão de serviço para irem rezar junto com o pastor. Um dia, eu estava tomando meu café de manhã cedo e eles chegaram de repente, mandando todo mundo dar as mãos. Eu saí para terminar meu café lá fora e depois fui criticado por outro oficial. Além disso, eles tiram fotos nossas sem pedir permissão, enquanto distribuem um livro totalmente racista e intolerante”, denuncia o servidor público, que se declara ateu.

Além de fazer pregações no pátio do quartel, o grupo evangélico também tem livre acesso para visitar os setores da instituição e distribuir folhetos, jornais, livros e Bíblias comentadas. Entre os materiais distribuídos, está o livro Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios?, que se refere às religiões de matriz africana como “seitas demoníacas” e aos orixás, como “demônios”, entre outras expressões desrespeitosas.

Exemplar do livro "Orixãs, Caboclos e Guias", distribuído pela UFP | Foto: Priscila Viana
Exemplar do livro “Orixás, Caboclos e Guias”, distribuído pela UFP | Foto: Priscila Viana

Escrito pelo bispo Edir Macedo, fundador da IURD, e lançado em 1997, o livro foi alvo de processo judicial movido em 2005 pelo Ministério Público Federal (MPF) da Bahia, por intolerância religiosa. O advogado Luiz Fernando Martins da Silva, que na época atuava como ouvidor da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Raciais da Presidência da República (SEPPIR-PR), destaca a dimensão das denúncias recebidas pelo órgão contra a distribuição e comercialização do livro.

“Enquanto ouvidor da SEPPIR, eu recebi denúncias de religiosos de vários lugares do Brasil, principalmente da Bahia. Na época nós fizemos um procedimento administrativo no âmbito da SEPPIR e fomos à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC).  A publicação, além de ser praticante do que hoje se chama de racismo religioso, é um insulto. Ela insulta as pessoas que praticam as religiões de matriz africana, especialmente o candomblé. E mesmo depois desse processo, que teve uma liminar conferida por juiz federal, o livro continua sendo distribuído e, pior ainda, no âmbito das instituições do Estado”, destaca o advogado, que é ogã da Casa de Oxumarê.

Em 2005, o desembargador Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), a pedido do Ministério Público Federal Bahia (MPF-BA), determinou a suspensão da venda e outras formas de circulação da publicação, sob pena de multa diária de R$ 50 mil. No entanto, um ano depois, o (TRF-1) liberou a venda, alegando que a proibição contraria o princípio da liberdade de expressão.

Fotos divulgadas pela UFP em um perfil de rede social mostram que as visitas para evangelização e distribuição de materiais com conteúdos discriminatórios às outras religiões não são realizadas apenas no quartel do Corpo de Bombeiros. Representantes do comando da Guarda Municipal de Aracaju (GMA), da Polícia Militar do Estado de Sergipe (PMSE), Polícia Civil, Batalhão de Policiamento Turístico (BPTur), Pelotão de Polícia Ambiental (PPAmb), Grupamento Especial Tático de Motos (Getam) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF) também aparecem nas fotografias divulgadas pelas lideranças evangélicas, enquanto recebem “assistência espiritual e valorativa” nos seus respectivos espaços institucionais.

A comunicação oficial do governo do Estado também é utilizada a serviço das ações do grupo da Igreja Universal nas instituições públicas. Uma reportagem, produzida pela Assessoria de Comunicação do CBMSE e publicada em setembro de 2022, no site oficial da corporação, confirma o relato dos oficiais de que as pregações ocorrem durante a passagem de serviço e diz que os bombeiros recebem “assistência religiosa” e “ensinamentos bíblicos”, além de defender que a “iniciativa tem a missão de proclamar a palavra de Deus aos membros das forças de segurança pública, forças armadas e órgãos governamentais”.

O proselitismo nas corporações militares não acontece apenas em Sergipe, mas em todo o Brasil. Também não é coincidência que tenha se intensificado justamente no governo Bolsonaro. Sob a justificativa da fé e “em nome de Deus”, militares e pastores evangélicos se embrenharam pela gestão pública enquanto fortes pilares de sustentação do governo anterior.

Em outubro de 2019, os pastores Francisco de Assis dos Santos e Elton Mangueira, responsáveis pelo trabalho do UFP em Brasília e em Goiás, respectivamente, foram recebidos com honras pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro. Na ocasião, o ex-juiz federal ganhou uma bíblia de presente, um mês depois de seu chefe, o ex-presidente Bolsonaro, ser “abençoado” pelo bispo Edir Macedo no Templo de Salomão, em São Paulo (SP).

Racismo, intolerância religiosa e lesão à administração pública

As sessões evangélicas realizadas no espaço das corporações militares violam a recomendação da Procuradoria Geral do Estado de Sergipe (PGE/SE), segundo a qual os gestores públicos devem evitar celebrações de cunho religioso em repartições públicas. “Em que pese a inexistência de dano ao erário, recomenda a Procuradoria Geral do Estado de Sergipe aos gestores públicos que futuros eventos dessa natureza, os quais venham a envolver celebração, em repartições públicas, de crenças e cultos religiosos sejam evitados, haja vista a proibição constitucional de o Estado endossar ou rechaçar qualquer corrente confessional ou religiosa, mantendo-se, assim, a sua neutralidade”, destaca o documento da PGE, emitido pelo procurador Evânio Moura.

Segundo ele, as visitas do grupo UFP aos espaços institucionais do Estado ferem princípios constitucionais, entre eles a laicidade do Estado. “Referida postura observa a laicidade do Estado, pois estabelece a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 19, I, que o Estado é laico, não podendo estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. À SSP/SE,  PMSE e CBMSE, cabe seguir a recomendação anteriormente expedida, evitando-se a prática de referidos atos de cunho confessional dentro de repartições do Estado, principalmente no horário do expediente”, destaca o procurador.

O documento da PGE é uma resposta à ação popular movida pelo advogado llzver de Matos Oliveira em 2016, contra ações de cunho religioso promovidas pela própria Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP) e divulgadas em páginas oficiais, a exemplo do 1º Encontro de Evangélicos da Segurança Pública de Sergipe. Ilzver é especialista em direitos humanos, desigualdade racial e intolerância religiosa e acompanha casos como esse no Estado de Sergipe, que acontecem não só no âmbito da segurança pública.

Na página oficial do Governo do Estado de Sergipe, é possível encontrar uma série de reportagens divulgando a realização de eventos de cunho religioso em espaços institucionais. Segundo informações no próprio portal, um culto evangélico é realizado mensalmente no auditório da Maternidade Nossa Senhora de Lourdes para pacientes, visitantes e funcionários da unidade de saúde, bem como no Centro Administrativo da Saúde (CAS), para os servidores da Secretaria de Estado da Saúde (SES). De acordo com uma das matérias, produzida pela Assessoria de Comunicação do órgão público, “o culto é uma oportunidade de ouvir e vivenciar a palavra de Deus no ambiente de trabalho, já que para muitos, o trabalho é como uma segunda casa”.

Para Ilzver, não só a cessão gratuita da estrutura física do órgão público para a execução de cerimônias religiosas, como também a publicização das atividades nos meios oficiais de comunicação das instituições públicas viola uma série de dispositivos legais, bem como princípios norteadores da atividade administrativa.

“Não importa a nobreza do objetivo da atividade apoiada, se o resultado é a promoção e o favorecimento de determinada denominação religiosa em detrimento das demais, fere-se os princípios da impessoalidade e moralidade. Além de ilegais, são extremamente lesivas ao patrimônio público, bem como à moralidade pública, envolve dano ao erário e os benefícios por ela auferidos importam em prejuízos ao restante da coletividade e às demais denominações religiosas, em especial às religiões de matriz africana”, afirma o advogado.

Saúde mental ou violência?

O cuidado psicológico das trabalhadoras e trabalhadores da segurança pública é o principal argumento usado pelo grupo Universal nas Forças Policiais (UFP) para defender o proselitismo em quarteis e delegacias. De acordo com material divulgado pelo próprio grupo, é grande o número de profissionais que estão “sofrendo com depressão, desejo de suicidio, ansiedade, medo e outros males. Muitas vezes causados pelas dificuldades que enfrentam no dia a dia da profissão”. Porém, relatos dos oficiais do CBMSE demonstram que a ação surte efeito contrário.

“Nos dias de pregação, eu já vou trabalhar respirando fundo, porque sei que vou ouvir preconceitos contra a minha religião. Como é que a IURD é preconceituosa com o candomblecista e vai ajudar a aliviar o estresse de um militar candomblecista? Eu já chego esticando a mão para que não me abordem e não venham me entregar esse tipo de material. A gente já tem um Núcleo de Saúde Ocupacional (NSO), que conta com psicólogos e estagiários, é disso que precisamos”, destaca um dos praças do CBMSE.

O procurador da PGE, Evânio Moura, afirma que cabe a profissionais específicos o cuidado mental dos agentes da segurança pública. “Não me parece que o apoio psicossocial seja uma atribuição religiosa e muito menos de uma congregação ou religião específica. A assistência aos profissionais com elevado estresse deve ser prestada por profissionais habilitados, como psicólogos e psiquiatras”, orienta o procurador.

Sobre as denúncias

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de Sergipe (SSP-SE) afirma que “as situações relatadas serão formalmente enviadas ao Comando do Corpo de Bombeiros para a tomada de providências necessárias”, e que as visitas de grupos ligados a igrejas evangélicas e católicas em quarteis e delegacias é historicamente realizada, “no entanto, sem qualquer orientação da SSP no sentido de desqualificar as demais religiões”.

Ainda segundo a nota, “a Secretaria da Segurança Pública orienta que em todos os prédios de suas instituições haja o exercício do pleno direito à crença e respeito à preferência religiosa dos seus servidores ou dos que ali frequentam, independente da origem. Não há nenhum setor da Secretaria que incentive o desrespeito à prática religiosa”.

O procurador da PGE Evânio Moura orienta que os membros da corporação que se sentem lesados com a ação, apresentem representação escrita à Procuradoria Geral do Estado, apontando o incômodo da situação e solicitando a devida apuração. A SSP afirma que a Delegacia de Atendimento a Crimes Homofóbicos, Racismo e Intolerância Religiosa (Dachri) da Polícia Civil está à disposição de representantes de qualquer religião para receber denúncias sobre intolerância religiosa.

Já o advogado Ilzver Matos indica que a denúncia seja feita junto ao Disque 190, visto que racismo religioso é crime previsto pela Lei 7.716/1989. Além disso, “o Ministério Público Estadual e Federal devem ser sempre provocados, pois são órgãos competentes para ingressar com a ação penal por racismo religioso e pela ação civil pública para proteção da honra e dignidade de grupos raciais, étnicos e religiosos”.

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