Por Luciane Recieri, para Desacato.info.
Um pouco cansada de falar de nojeira. Quero mesmo é falar de passarinho. Vou fazer o papel do jornal durante a ditadura: botar uma crônica do Rubem Braga, uma receita de bolinho de chuva, um poema da Cecília, uma pintura do Gauguin, uma frase do Gabeira. Não sei falar nada sério, só tenho a sinceridade pura. Tudo que eu digo é verdade. Tudo que faço, é sim, verdade e, no palco, acredito que sou aquilo e me mato e ressuscito tanto que não acreditam mais nos meus suicídios. Fiquei por um tempo imune à morte.Mas vou botar assunto que entendo: sobre luz de vela e passarinho. De amor fundo, ternura muita, olhos marejados sempre, o que borra minha maquiagem. Nunca consegui colher framboesa silvestre sem me escalavrar nos espinhos. Vou deixar toda nojeira de lado e falar do voo dos aviões, os tecles das máquinas de escrever, a beleza dos rostos que me ultrapassam, o sorriso que me entende, o passo apertado atrás do ônibus. Vou ficar mãe, pra dar colo e abrigo. Entender nada, mas abraçando como se tudo. Ontem, nosso professor de Antropologia disse que passarinho não canta. Era coisa séria. O Sócrates disse que ele tinha matado a metade dos griots do mundo, digo, matado poetas. Voltei pra casa e fiquei pensando, olhando o céu muito ultramarino e violento desse março que não passa. Eu não morri. Outra vez passei por março.
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[avatar user=”Luciane Recieri” size=”thumbnail” align=”left” link=”attachment” target=”_blank” /]Luciane Recieri é cientista social e escritora, em Jacareí /SP