*Uma nota de solidariedade do Movimento Passe Livre de Florianópolis.
Há aqueles para quem já é tempo de esquecer os anos de chumbo. Para outros, recuperar a memória e a verdade não é só uma questão de justiça, mas uma ação essencial para refletir sobre a história e impedir que tais episódios lamentáveis voltem a acontecer. Nós, movimentos jovens, que nascemos nas últimas décadas, temos a infeliz chance de sentir na pele um tanto do que foi vivido pelas gerações passadas. A conquista da democracia precisa dar muitos passos adiante, pois o cheiro de gás lacrimogênio ainda infesta nossos corpos e lutar por outro mundo é uma ousadia. Há gente que bata no peito com orgulho para dizer que é da região Sul do país – tão rica, tão desenvolvida, tão evoluída, tão superior… Para nós, ela não tem sido mais do que palco de uma lamentável escalada de violência e repressão contra o povo e os movimentos sociais.
Em Outubro de 2013, a polícia do Rio Grande do Sul promoveu prisões arbitrárias durante as manifestações e não economizou no lançamento de bombas e balas de borracha, ferindo dezenas de pessoas nas ruas da capital do estado. Uma semana depois, a mesma polícia invadiu a casa de dois militantes que faziam parte do Bloco de Luta pelo Transporte Público de Porto Alegre, além de centros culturais libertários e o assentamento urbano Utopia e Luta, que é moradia de muitas famílias. Não bastasse a invasão, a polícia apreendeu materiais de propaganda política e livros de moradores, escancarando as lembranças de ameaças à liberdade vividas na Ditadura Civil-Militar. No início desse ano uma militante deste mesmo movimento relatou que seu filho, uma criança de apenas 7 anos, foi intimidado por um segurança durante reunião do Bloco de Lutas. A invasão das casas e centros foi consequência da abertura de um inquérito no dia 1 de Outubro, que resultou no indiciamento, divulgado dia 14 de Março de 2014, de sete militantes do Bloco de Lutas.
Numa tentativa clara de criminalizar a luta dos companheiros gaúchos e jogar a população contra as mobilizações que sacodem a ordem local, a polícia do RS acusa os sete militantes de “posse e emprego de explosivos, furto qualificado, dano simples e qualificado, lesão corporal e constituição de milícia privada”. O inquérito é uma peça medonha que tem por objetivo calar os movimentos e inaugurar, no plano jurídico, a nefasta portaria do Ministério da Defesa de “Garantia da Lei e da Ordem”, encaminhada pelo governo supostamente “popular” do Partido dos Trabalhadores. Essa forma de criminalização poderá não só render o encarceramento dos militantes da capital gaúcha, como também pode servir de modelo para a repressão futura em outros locais do país.
A menos de 300km de Porto Alegre, a cidade de Santa Maria (RS) também foi palco de espancamento de manifestantes por parte da polícia. No dia 20 de Fevereiro desse ano, a prefeitura da cidade anunciou um aumento nas tarifas de ônibus usando cálculos suspeitos de irregularidade e superfaturamento. No mesmo dia armou-se uma manifestação em frente a sede da organização que representa as empresas de ônibus.
Quando um manifestante jogou tinta no prédio, a Brigada Militar, amparada pelo Batalhão de Operações Especiais, deu início a uma ação truculenta e desproporcional, que deixou várias pessoas feridas. Os policiais dispararam balas de borracha a queima roupa, atiraram pelas costas de quem tentou correr para longe e jogaram bombas no centro da cidade. Muitas pessoas ficaram machucadas e uma senhora desmaiou depois de levar uma coronhada de um policial. Em um ato totalmente pacífico, que contava com cerca de 100 pessoas, pelo menos uma dezena delas ficaram feridas e ambulâncias tiveram que ser chamadas para socorrer os manifestantes.
Mais perto de nós e ainda mais recente, um episódio tragicamente parecido aconteceu em Blumenau (SC). No dia 13 de Março, cerca de 130 pessoas participaram de uma manifestação contra o aumento das tarifas de ônibus chamada pelo Coletivo Tarifa Zero. O ato seguiu até um dos terminais da cidade acompanhado por um grande contingente policial que levava consigo cães treinados para ataque. Quando os manifestantes resolveram fechar as vias de acesso ao terminal, os policiais partiram pra cima. O resultado foi atroz: 5 manifestantes detidos, 11 pessoas feridas (5 delas, hospitalizadas) e outras tantas que estavam no local e receberam cacetadas, spray de pimenta e balas de borracha. Nem mesmo os trabalhadores, idosos e crianças que se encontravam no terminal escaparam da ofensiva policial. Entre os feridos estava um menor de idade que sofreu várias mordidas dos cães da polícia de Blumenau. Um manifestante levou pontos na cabeça e um dos detidos teve o braço fraturado pela polícia, necessitando passar por procedimento cirúrgico. Na semana seguinte, uma nova manifestação foi convocada e, mais uma vez, um grande contingente policial foi usado para reprimir os manifestantes, levando à prisão aleatória de mais uma pessoa.
Na cidade de Joinville (SC), a criminalização de quem luta pelo direito à cidade tem sido ainda mais sistemática. Em Agosto de 2013 o Movimento Passe Livre promoveu uma manifestação que questionava as irregularidades na contratação de empresas de ônibus e defendia o direito ao transporte para todos através da Tarifa Zero. Simultaneamente, acontecia uma reunião do Conselho das Cidades, que em teoria é pública e de acesso irrestrito a todos. Os militantes resolveram entrar na reunião. Em reação, um conhecido advogado da elite empresarial joinvilense, Álvaro Cauduro de Oliveira, está processando um apoiador do movimento que estava presente na reunião e que, supostamente, teria causado danos à porta do recinto no momento da entrada dos manifestantes. Não há provas de que o militante tenha causado qualquer dano patrimonial e sabemos que a quebra de uma dobradiça de porta não é nada comparado ao dano causado a toda população pela maneira injusta e irregular que é gerido o transporte coletivo em Joinville. No entanto, sabemos também que através desses processos medíocres, os poderosos, aliados com a mídia corporativista e apoiados pelo Estado, procuram causar desgastes nos militantes e criminalizar a luta, jogando a população contra os movimentos.
Não bastasse esse processo, por conta das manifestações que ocorreram em Janeiro desse ano, existe a possibilidade concreta de que mais 3 militantes sofram processos em Joinville. O MPL organizou atos contra o aumento das passagens de ônibus efetuado no início desse ano. No final de um desses atos, em 22 de Janeiro, a polícia abordou um ônibus que saía do terminal usando seis viaturas, motos e policiais, intimidando os presentes e dizendo que havia uma bicicleta furtada sendo transportada no interior do ônibus. A história é completamente falaciosa e só serviu de desculpa para a repressão injustificável da polícia. Fato é que no final do ato uma manifestante entrou com sua bicicleta dentro do ônibus (com consentimento de passageiros e de um fiscal da empresa de transporte) para voltar
pra casa. Devido à abordagem bizarra da polícia, militantes que apoiam o MPL foram ao local averiguar o que ocorria. Descontente com a presença dos militantes, o comandante da operação resolveu prender de forma imediata três deles, alegando que esses eram os supostos “líderes” das manifestações. Além de uma das prisões ter sido efetuada com a tentativa de quebrar os dedos de um dos manifestantes e com ameaças de morte a outro, no interior da delegacia todos foram vítimas de desmoralização e piadas homofóbicas. Vendo os vídeos que registram o momento das prisões, fica óbvio pra qualquer um que a ação da polícia foi totalmente ridícula e descabida. Além desses dois casos, é sabido que alguns militantes da Frente de Luta pelo Transporte, da qual o MPL faz parte, estão sendo intimados para depor como testemunhas de supostos casos de depredação. A polícia está investigando os militantes a mando da Prefeitura e das empresas de ônibus e mais pessoas serão intimidadas com o objetivo de criminalizar os movimentos locais.
Ainda ontem, em Florianópolis, a polícia gerou revolta quando levou a cabo uma ação desmedida e de força desproporcional na Universidade Federal de Santa Catarina, ferindo vários estudantes e trazendo suas lembranças dos anos de ditadura. Mesmo os professores e autoridades do campus que tentaram mediar a situação não foram ouvidos e acabaram também sendo agredidos pelos policiais. Lembramos que não é a primeira vez que a polícia entra nos espaços universitários da cidade de forma truculenta. Toda história do MPL na cidade, desde o início, esteve marcada por episódios de criminalização e repressão policial, dentre os quais, alguns se deram dentro dos campus da UFSC e da UDESC. Fato é que a entrada da polícia dessa vez, como em outras, se deu como resposta violenta diante de estudantes que se mobilizaram coletivamente contra uma ação que não consideraram como justa. Essa é a mesma polícia que, longe dos olhos atentos da universidade, promoveu pânico invadindo a Ocupação Palmares semanas atrás e que faz vistas grossas aos capangas que, volta e meia, ameaçam a vida das famílias da Ocupação Amarildo de Souza, no norte da ilha.
Por trás de todos esses casos de violência, criminalização e repressão por parte do Estado e sua força repressiva, está um recado bastante claro: aqui, a democracia tem limites e a polícia, não precisa de motivos plausíveis para espancar. Por mais progressistas que se proclamem os diferentes governos, os últimos episódios vividos aqui no Sul, bem como em outras partes do país, mostram que o discurso democrático se desmancha quando o povo não fica calado diante do que considera injusto e insiste em participar das tomadas de decisões sobre o que acontece ao seu redor. Os governos de estado e as prefeituras têm se mostrado totalmente despreparados para suportar a participação popular, sempre defendendo os interesses do capital e usando a polícia, com sua herança ditatorial bárbara, para “dialogar” com a população. Isso sem falar, é claro, das ações violentas que essa mesma polícia executa diariamente nas periferias de nossas cidades e das quais o centro nem ouve falar.
Nós, militantes do Movimento Passe Livre de Florianópolis, queremos dizer que somos solidários a todos aqueles e aquelas que insistem em ousar lutar e que não se calam diante das injustiças sociais, arriscando a saúde e a integridade física para construir um mundo mais digno. Outras gerações resistiram, e nós seguiremos em luta. E aos que insistem em reprimir os movimentos, avisamos que a vitória virá. Não por algum milagre, mas porque somos extremamente teimosos.