Dar a palavra à população nas ruas é um salto no escuro, pois a pauta de reivindicações pode ser sequestrada pelo conservadorismo. Mas, por outro lado, isso é necessário se desejarmos que o resultado desse embate seja algo mais do que um rearranjo político.
Por Marcelo Gomes Franco Grillo* e Jonathan Erkert**.
Na recente discussão sobre a convocação de um plebiscito e, anteriormente, na proposta de uma constituinte restrita para uma necessária reforma política dá-se um movimento reativo do governo federal em face das manifestações generalizadas – e, em alguns casos, é preciso dizer, generalistas em suas demandas. Já na proposta inicial de plebiscito para uma constituinte parcial (reforma parcial da CF de 1988) levantavam-se teses jurídicas contra, mas com inegável cunho ideológico irmanado a uma dogmática positivista inerente ao pensamento normativista do direito contemporâneo. Há muito afirma-se que o poder constituinte “é o poder que tudo pode menos deixar de tudo poder”, o que torna a tentativa de uma constituinte parcial tautológica. Porém, deixando de lado estas visões jurídicas técnicas, certo é que para além de esvaziar as prerrogativas do Congresso Nacional, o que mais intensamente está em jogo no cenário político é a cessão de poder já constituído ao povo que pode e haveria de agir, inclusive, na exceção. A grande questão que se coloca, então, não é se é possível ou não uma Assembleia Constituinte parcial – até porque, também, na pauta do governo, este ponto já foi superado quando a Presidenta Dilma arquivou a proposta inicial – mas sim a inclusão direta do povo ou, em outros termos, da vontade popular expressa de forma direta nas decisões políticas nacionais. Outro problema seria: quem é que conforma a opinião da massa no Brasil há décadas senão a grande mídia? Oportunidade ímpar para a política nacional e o que significará maior transparência na coisa pública é colocar as pautas de esquerda que fogem à votação do Congresso, mas que por meio de pressões populares e plebiscito poderão aparecer como tema da ordem do dia.
Outra coisa é que a impressão comum na população – e reforçada pela grande mídia – de que o executivo é responsável exclusivo por quaisquer atos políticos no país é resultado histórico de uma concentração de atividades e esperanças nesse poder. É necessário admitir que o próprio pensamento político de esquerda também em diversos momentos se apoiou na atividade estatal executiva como a base necessária – quando não exclusiva – e possível para avanços sociais. É certo que as casas legislativas se aproveitam dessa impressão, eximindo-se da responsabilidade de alterações sociais mais profundas e possibilitando, é bem verdade, em várias ocasiões o chamado “ativismo judicial” no vácuo de sua atuação.
Mas o que dizer da proposta de mudança que surge da massa da população? As demandas sociais manifestadas nas últimas semanas nas ruas pelo país se iniciaram por um movimento que requisitava uma tarifa de transporte mais baixa, mas rapidamente se transformaram em algo mais amplo, ainda que difuso, e que coloca questões a serem respondidas ativamente pelo governo e pelas alas progressistas da sociedade. Se é fato que setores conservadores da sociedade imediatamente partiram para o sequestro ideológico das manifestações é preciso apreender, clarificar e divulgar que grande parte das demandas apresentadas são de esquerda. Reformas política e fiscal são temas que representam, não só no Brasil, mas em outros países do mundo, bandeiras históricas de governos de esquerda e que os partidos de direita tentam cooptar, usando da mídia e do poder econômico que lhes são inerentes. Estudantes da classe média e outras pessoas que se identificam com as demandas de esquerda devem, neste momento histórico da política nacional, aplumarem-se e não se colocarem como apartidários e, assim sendo, lutarem, senão abertamente a favor de uma sigla partidária, no mínimo com veemência contra todos aqueles, partidos políticos ou não, que rechaçam reformas pautadas pelo pensamento político de esquerda. Estas reformas, quando postas em prática, ao menos colocam em xeque o avanço do interesse econômico conservador e, por isto, são rejeitadas ou falsamente absorvidas pelos conformadores da opinião pública.
Por outro lado, entretanto, é de suma importância não cairmos na inocência de acreditarmos que no nosso sistema capitalista auto regulatório a política representativa é capaz de resolver todos os problemas sociais. Daí o retorno à teoria crítica. O funcionamento do jogo político não se resume a prover soluções para demandas da população baseadas no melhor arranjo para ela própria, mesmo que a sociedade assim deseje. A forma política do Estado e também do direito em um sistema capitalista mantém o mesmo campo de disputa – econômico e concentrado em poucos – com pequenas alterações na maneira como agendas mais ou menos conservadoras ou progressistas avançam suas conquistas. O Estado e o direito são equivalentes do modo de produção e, neste sentido, quanto mais avançam as intenções contrárias ao positivismo, mais clarividentes tornam-se as pautas progressistas. Desta maneira, qual o processo legislativo constitucional mais adequado? A pergunta se é o plebiscito ou o referendo que representa a melhor técnica constitucional para o momento histórico atual nada mais é do que desvios conscientes promovidos pela mídia do foco principal das manifestações: a urgência das reformas e a prevalência de um movimento popular de esquerda insatisfeito com as instituições nacionais. Assim, dar voz ao povo de modo mais direto muda o eixo de discussão e, mais importante do que isto, das possibilidades políticas.
Como afirma Alysson Mascaro (‘Estado e Forma Política’, Boitempo, 2013) a sociabilidade capitalista se desenvolve dentro de específicas formas. Estas formas sociais, ou, de outro modo, estas ‘fôrmas’ põem o formato possível para o choque de interesses de classe dentro de uma democracia preponderantemente representativa. Se parte da mídia afirmou que para um nova constituinte seria necessária a substituição total da Carta atual via resultado de uma revolução ou de um golpe, está aí dada a forma-política da legalidade do capitalismo: o Estado coloca o ordenamento jurídico; o ordenamento jurídico via sua Constituição funda o Estado, em um ciclo aparentemente inquebrável e auto referenciado. Desse modo, está dado o jogo político. Mantendo inalteradas as formas jurídicas, fica sem alteração o resultado. Ele sempre será fruto da sociabilidade contemporânea e econômico-capitalista. Mas, dentro dessa imbricação, e no seio da fricção dos interesses de classes antagônicas, é possível alterar substancialmente a receita de demandas que será moldada nestas formas de relacionamento social. A participação da vontade popular na vida política, assim de maneira efetiva e, algumas vezes, contra o excesso de regramentos técnico-jurídicos constitucional, sendo por meio do plebiscito é uma destas possíveis alterações. Se a efetivação de mudanças sociais fica limitada pelo interesse econômico concentrado na forma constitucional representativa, a participação direta pode circular este obstáculo, com um resultado talvez incerto, mas certamente diferente do atual que, deve-se dizer, hoje beira a estagnação.
Períodos de inquietação social e especialmente econômica resultam em diferentes arranjos políticos posteriores, sem qualquer garantia de que tal ajuste seja bom ou mesmo desejável para a própria sociedade.
Períodos de severa crise econômica, por exemplo, demonstraram que os resultados políticos decorrentes transitaram desde a mais avançada tentativa de equilíbrio social até a completa vitória de um pensamento reacionário. A convulsão econômica entre o final do século XIX e o início do século XX viu surgir como resultantes o imperialismo nos EUA, o socialismo na Rússia, o fascismo assim como o Estado de bem estar social na Europa.
Nenhuma dessas consequências poderia ser plenamente planejada. Dar a palavra à massa da população nas ruas é um salto no escuro, pois a pauta de reivindicações pode ser sequestrada pelo conservadorismo. Mas, por outro lado, é necessário se desejarmos que o resultado desse embate seja algo mais do que simplesmente um rearranjo político nos mesmos termos de antes. E se desejarmos uma mudança na regra do jogo político, este também o único caminho.
*Marcelo Gomes Franco Grillo foi Secretário Jurídico no município de São Carlos – SP. Doutorando e Mestre em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie.
**Jonathan Erkert foi diretor de Planejamento e Orçamento no município de São Carlos – SP. Mestre em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie.
Foto: ADITAL
Fonte: Carta Maior