Uma pesquisa antropológica foi realizada em São Paulo, megalópole em expansão e maior cidade do hemisfério ocidental, onde mais de doze milhões de pessoas lutam pelo ‘direito à cidade’. Atualmente, uma ampla camada da população brasileira não tem acesso à moradias acessíveis financeiramente e, por isso, moram nas áreas periféricas, em favelas ou em bairros abandonados no centro da cidade.
‘Não é tão difícil chegar ao Brasil. Foram os únicos que nos deram um visto. A viagem é segura, simplesmente pode se pegar um avião, contanto que você consiga comprar uma passagem. Mas depois… como continuar—isso ninguém lhe pode dizer. Há muitas pessoas, estão por todas as partes. Talvez você tenha a sorte de conhecer alguém, mas normalmente eles poderão acolher você só por uns dias. Depois de um tempo você vai voltar à rua. E as ruas deste país são perigosas, cara.’ (Homem do Iraque, 43 anos, viajando sozinho)
No Brasil, como na maioria de outros países latino-americanos, as realidades dos migrantes são moldadas por um paradoxo peculiar. Por um lado, o discurso público implica uma atitude excepcionalmente progressista com relação à migração e aos direitos dos migrantes. Particularmente, na assim chamada crise migratória contemporânea, o Brasil aceitou muito mais refugiados do que qualquer outro país da América Latina. Por outro, a execução de políticas migratórias permanece frequentemente contraditória e arbitrária. Os estrangeiros que conseguem receber um visto e ganhar o acesso ao território brasileiro, aprenderão cedo que as cidades estão especialmente superpovoadas, burocraticamente complicadas e muito caras.
As organizações humanitárias, como por exemplo o ‘Centro de Referência para Refugiados’, organizado pela Caritas Arquidiocesana de São Paulo, ou como a Missão Scalabriniana Nossa Senhora da Paz, conhecida como ‘Missão Paz‘, oferecem, portanto, serviços importantes, tais como assistência jurídica, assistência psicológica, contato com possíveis empregadores e cursos de língua. Fornecer abrigo adequado, porém, continua a ser um desafio chave para estas instituições sociais.
‘Quando você está aqui sentado e está esperando, você ouve como os outros comparam os diferentes lugares para onde a Caritas pode mandar você. Alguns dos lugares são bons, em alguns lugares você pode ficar durante um tempo, às vezes inclusive até um ano! Você não tem que pagar, pode ficar até que você esteja estabelecido. Outros acolhem você só durante umas semanas. E então você arrisca de estar de novo rua. E, além disso, tem alguns lugares que dizem que são realmente horríveis. Aí você não deve ir definitivamente, mesmo se mandarem você para lá.’ (Mulher de Angola, 38 anos, viajando com duas crianças pequenas).
Esta mulher angolana aborda um problema que tem a sua origem nos números sempre crescentes de refugiados e migrantes que vieram a São Paulo desde o verão de 2015 e no simples fato que o espaço em abrigos públicos é limitado. Hoje em dia muitos tipos diferentes de organizações oferecem acomodação, mas cada um se orienta a um diferente tipo de clientela, dirigindo-se a tipos particulares de ‘perfis’ de necessidades.
A Prefeitura de São Paulo, por exemplo, oferece aproximadamente 10 mil leitos para pessoas em situação de rua. Os migrantes e os refugiados têm acesso a esses lugares, se eles se dirigirem a um dos centros que distribuem tais vagas todos os dias. A imagem 3 mostra uma tenda (termo não oficial para esse tipo de acomodação diária), um daqueles espaços públicos aos quais qualquer pessoa que precisa de um lugar seguro para passar a noite se pode dirigir. Contudo, quando os migrantes estão sentados e estão esperando a sua vaga junto com moradores da rua e usuários de crack, eles sentem-se contrariados e confrontados com tipos particulares de vulnerabilidade e exclusão urbana com a qual eles não se identificam. Essa tenda particular, localizada debaixo de uma ponte, não tem paredes, mas é cercada, oferecendo assim algo entre a rua aberta e desprotegida e um espaço de habitação fechado.
‘Depois de ter deixado a casa do meu amigo, eu tentei outros lugares, mas não deram certo. Acabei dormindo na rua. Depois de duas noites, me senti como um bicho. Roubaram tudo de mim. Até me espancaram. Então eu vim para esta tenda. Me mandaram para este lugar. Pensei que era um engano. Nunca me senti assim tão mal na minha vida. Pronto, já está, pensei, isto é uma história de terror.’ (Homem jovem da Guiné-Bissau, viajando sozinho)
Embora esses lugares públicos deveriam atender a ‘cada pessoa necessitada’, o esforço para lidar com as condições particulares dos migrantes demonstra ser um grande desafio para os funcionários públicos municipais, que ainda não têm – ou para os quais não é obrigatório que se tenha – uma sensibilidade especial para as necessidades dos migrantes.
‘Sempre tivemos alguns imigrantes. Mas eram sempre uma minoria. Agora é um terço ou até mais. Em alguns abrigos, os imigrantes são a maioria, eles ocupam todo o espaço. Isso causa problemas, como você pode imaginar. Tem muitos brasileiros pobres que precisam da nossa ajuda. De fato, a crise produz muitos pobres novos! Pode acontecer a todos. Não posso os deixar na rua. Esses imigrantes, alguns deles, pensam que são melhores do que os outros. Têm que aprender que eles agora também são moradores de rua. Eles simplesmente são.’ (Empregado que trabalha para a prefeitura de São Paulo num abrigo público para os sem-teto).
Os migrantes são a maioria dos sem-teto em São Paulo, segundo um censo recente publicado pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) da Prefeitura de São Paulo, em abril 2016. Porém, nesse documento o termo migrante também se refere aos migrantes internos, ou seja, brasileiros que vieram a São Paulo de outras regiões.
Outros abrigos públicos, que acolhem tanto brasileiros como estrangeiros que precisam de um lugar para ficar, são organizados seguindo uma rotina diária rigorosa. O Arsenal da Esperança, que é gerido por uma pequena irmandade italiana, ligada à Igreja Católica, acolhe mais de mil homens – e somente homens – toda noite. Instalado numa antiga casa de hóspedes para imigrantes, que foi aberta em 1887 para acolher recém-chegados de países estrangeiros e nordestinos, o Arsenal continua atendendo ao perfil do clássico trabalhador migrante: homem, independente, capaz de circular na cidade e de procurar trabalho diariamente.
‘Cheguei aqui com vários amigos que eu encontrei ao longo do caminho para o Brasil. Posso ficar aqui, enquanto estiver procurando um trabalho. Alguns ficam aqui muito tempo, alguns até mais do que um ano. Brasileiros e imigrantes. Mas só ficamos aqui durante a noite. Temos de nos levantar cedo, tomar o café da manhã e deixar o lugar por volta das sete de manhã. Durante o dia não temos acesso. Passamos o dia em qualquer lugar da cidade e voltamos na hora de jantar, por volta das seis. […] Conheço alguém cuja mulher e filhos ficam em outro lugar. Ele os visita de vez em quando.’ (Homem jovem do Afeganistão, viajando sozinho)
Enquanto para alguns o Arsenal é uma boa opção para cobrir um período de vulnerabilidade especial, outros buscam a independência para deixar o Arsenal o quanto antes.
‘Comparado com os brasileiros, os migrantes, em geral, não costumam ficar muito tempo. A maioria deles precisa ficar aqui só alguns meses. Encontram trabalho muito mais rápido do que os brasileiros, que costumam ter problemas graves, como problemas de saúde, de toxicodependência, etc. A situação dos migrantes é completamente diferente. De fato, muitos migrantes aprendem a compreender as suas próprias capacidades estando aqui.’ (Empregado do Arsenal da Esperança)
Para mulheres migrantes e refugiadas, a situação é muito mais exigente. Embora muitos abrigos acolham mulheres e outros acolham mulheres com crianças pequenas, as mulheres grávidas e as mulheres com crianças adolescentes têm mais dificuldades em encontrar acomodações. No primeiro caso, a sua vulnerabilidade especial, as suas necessidades médicas e a suposta duração da sua estadia só podem ser atendidas por um abrigo especial. No último caso, a indefinição sobre a categoria que representa a juventude é problemático.
‘Um menino pequeno é um menino, ele pode ficar com a mãe dele. Um menino maior de dez anos não pode ficar num dormitório. As outras mulheres vão se sentir incomodadas. E uma menina maior de sete, oito anos, viajando junto com o pai dela: onde a colocar? O corpo dela já começa a se desenvolver. Junto com os homens num dormitório de homens? Sozinha num dormitório de mulheres? Quem vai tomar conta dela quando o pai deixa o abrigo? Nós não podemos garantir a segurança dela.’ (Empregado da Casa do Migranteda Missão Paz, que acolhe homens e mulheres, mas não aceita adolescentes)
Em fevereiro de 2016, a situação dos abrigos que acolhem refugiadas e mulheres migrantes tornou-se complicada com a chegada repentina de muitas centenas de mulheres angolanas e congolesas, muitas delas grávidas ou viajando com crianças pequenas. Em poucos dias, as vagas disponíveis nos abrigos públicos esgotaram-se, criando assim uma situação de emergência para essas recém-chegadas que acabaram tendo que dormir na rua. A Prefeitura de São Paulo teve que reabrir um abrigo que havia sido fechado devido às suas condições inadequadas e à falta de higiene. O Viaduto Pedroso está situado dentro de um viaduto, que passa por cima de uma avenida e ao mesmo tempo é atravessada por outra.
‘Quando nos trouxeram para cá, fiquei espantada. Estamos ficando doentes. O barulho… Os carros que vão por cima e por baixo da gente, esse ruído, o cheiro, tem ratazanas, baratas, não se pode usar o banheiro. É um desastre.’ (Mulher da República do Congo, 45 anos, viajando com três crianças)
Os empregados da Câmara Municipal tentaram calmar a situação. `Não sabemos por que estamos recebendo estes números de africanos assim de repente. São muitíssimas, e só mulheres, mulheres grávidas! É uma situação de emergência, fazemos o que podemos. Não vai demorar muito tempo para encontrar algo melhor’.Enquanto as mulheres estavam debaixo – ou, talvez mais precisamente, dentro – desta ponte, não se dirigiam a elas só alguns sem-teto, que reivindicavam esse espaço, mas também evangélicos, militantes políticos e membros de ONGs que queriam oferecer assessoria.
‘Estou tão cansada de todos esses “anjos”. Vêm e falam, mas afinal de contas não têm nada concreto para oferecer. A gente precisa só de um lugar onde possa ficar, onde a gente tenha o nosso espaço próprio, onde não temos que partilhar tudo com todos. Aqui, tudo está aberto. Você não tem nenhuma privacidade. Eu nunca dormi junto com tanta gente em um só quarto. O silêncio me faz falta.’ (Mulher de Angola, 23 anos, viajando com o seu filho).
Em geral, encontrar um apartamento leva muito tempo, já que eles são excessivamente caros em São Paulo e muitas vezes exigem um fiador que seja cidadão brasileiro e que, além disso, seja proprietário de algum imóvel. A cidade enfrenta uma falta de habitação e perto de 1,2 milhão de paulistanos moram ou em favelas ou em cortiços. Nos últimos anos, São Paulo é o foco de ocupações de prédios, tanto por movimentos sociais estritamente organizados que ocupam e gerem estes prédios até os cortiços, improvisados por grupos menores. Embora esses movimentos levem frequentemente sem-teto nos seus nomes, muitos são organizados por militantes políticos, que não lutam somente por uma moradia decente e a revitalização do centro da cidade, mas também contra a pobreza e pelos direitos das mulheres, a igualdadw, etc.
A integração dos estrangeiros nestes prédios ocupados e nos respectivos movimentos sociais é um fenômeno muito recente. Para poder fazer parte, eles têm que seguir as seguintes regras. Têm que: dirigir-se ao líder da comissão organizadora, apresentar-se durante uma reunião coletiva durante a qual serão explicados os objetivos e as condições do movimento e respeitar as instruções da convivência diária e do ativismo.
‘Uma pessoa que quer morar neste prédio, seja essa brasileira ou estrangeira, tem que fazer parte da luta. Isto não é um prédio normal, eles têm que entender isso. Se a gente não lutar, não podemos mudar nada. Alguns vêm aqui e só querem um lugar onde ficar. Nós não funcionamos assim. Participar e apoiar a luta pela justiça é essencial. Quem não estiver de acordo com os requisitos tem que sair.” (Coordenador de um prédio ocupado).
Alguns dos migrantes conseguem permanecer (pelo menos por um tempo) nesses espaços de convivência coletivos de prédios ocupados. Apreciam a participação ativa na luta e as difusas linhas categóricas entre cidadãos brasileiros e estrangeiros.
‘Temos todos os mesmos interesses. Migrantes, refugiados, cidadãos, isso já não é importante. Alguns vieram das favelas para cá, outros do Nordeste, eles também não sabiam como lidar com esta cidade. Lutamos pelos mesmos objetivos. Somos todos iguais, somos só pessoas pobres deslocadas.’ (Homem de Haiti, ao redor de 40 anos, morando numa ocupação junto com a mulher dele e os três filhos).
Outros migrantes sentem-se pressionados pela obrigação de ter que integrar-se na luta contínua dos militantes e temem que um dia o prédio possa ser reintegrado.
Observações finais
As populações móveis que procuram um abrigo tornam-se parte de um novo paradigma de diferenciação, um paradigma que é altamente influenciado pela forma como as instituições pensam, classificam e põem em prática os seus tipos especiais de rotinas no mundo social da ‘pobreza’. Ao longo da sua trajetória urbana, os migrantes aprendem que a cidadania não é o único e nem é o marcador chave que separa a pertença da exclusão, e que noções como gênero, idade e parentesco às vezes podem contribuir para a fragmentação do apoio. As experiências de deslocamento produzem novos tipos de subjetividades políticas, percepção de direitos e solidariedade, mas também novas formas de temporalidades e espacialidades, quando tanto estar como ficar só consigo próprio torna-se um novo desafio.