Por Leonardo Wexell Severo.*
O estupro jurídico praticado pela “Justiça” do Paraguai contra os 11 camponeses presos políticos de Marina Kue, em Curuguaty, provocou a enérgica reação popular, assim como da equipe de advogados que entrou imediatamente com recurso de apelação especial.
A contundente denúncia de 108 (cento e oito!) fatos “notoriamente falsos” utilizados pelos acusadores demonstra como os sem-terra foram vítimas de um processo que atende unicamente aos interesses das transnacionais e do latifúndio. As penas de até 35 anos por “homicídio doloso”, “associação criminosa” e “invasão de imóvel alheio” a que foram submetidos estampam como o massacre de Curuguaty – onde morreram 17 pessoas no dia 15 de junho de 2012 – serve tão somente para criminalizar a luta pela reforma agrária na nação guarani. Afinal, nem um único dos 324 policiais foi colocado no banco dos réus. Apenas as vítimas da ilegal ação de despejo. Isso depois de, inequivocamente, o “confronto” ter sido utilizado para a deposição do presidente Fernando Lugo apenas sete dias depois do sangrento episódio.
Como sustentam os advogados, “todo o massacre foi consequência direta da negação da justiça por parte do Poder Judiciário, frente à usurpação de terras por um chefe político”. Ficou comprovado que o verdadeiro invasor foi Blas Riquelme, senador e ex-presidente do Partido Colorado, o mesmo de Alfredo Stroessner, cuja ditadura de 35 anos (1954 a 1989) distribuiu ao menos oito milhões de hectares – um quinto das terras do país – a apaniguados como o “empresário” em questão. Este foi o primeiro “disparo”, afirmam os advogados, condenando a decisão dos juízes “de defender usurpadores e burlar-se da lei e das vítimas da injustiça política e judicial”.
Pela anulação imediata do julgamento, que mantém presos Rubén Villalba, condenado a 30 anos de prisão e mais cinco anos de “medidas de segurança”; Luís Olmedo a 20 anos; Arnaldo Quintana e Nestor Castro a 18 anos, reproduzimos abaixo as principais denúncias contidas na extensa lista de falsidades, certos de que a sua divulgação e conhecimento vão dar ainda mais oxigênio à luta pela verdade e a justiça. Que se transformarão em realidade, reiteramos, com a anulação da farsa e a libertação dos prisioneiros políticos.
1. A terra de Marina Kue é pública, pertence ao Indert (Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra), tendo sido declarada de interesse social para reforma agrária, conforme decreto presidencial de 2004. Portanto, não é nem nunca foi da empresa Campos Morumbi, da família de Blas Riquelme, como alega a promotoria.
2. Não havia qualquer “ordem de despejo” contra os camponeses que ocupavam Marina Kue. A ordem da “justiça” era para “averiguação” do local. A pretensa “ordem judicial para o abandono” é “uma grotesca mentira” sustentada pela promotoria e veiculada pela monopólios privados de comunicação, em sintonia com os latifundiários do país para pintar os sem-terra como “invasores” de uma propriedade particular.
3. É absolutamente falso que a defesa não tenha produzido “provas contrárias” à montanha de mentiras da promotoria. “Se demonstrou, com documentos incontestáveis, que existiu uma autorização tácita para a permanência dos camponeses no lugar – pelo menos enquanto não se resolva, conforme a Lei – a recuperação da propriedade grilada por Blas Riquelme por meio da empresa Campos Morumbi em julgamento fraudulento”.
4. A Comissão de Vizinhos Naranjaty foi constituída de forma legal e organizada para lutar pela efetivação da reforma agrária. Este era a compreensão e determinação do próprio Indert, órgão oficial responsável.
5. É óbvia a completa impossibilidade dos camponeses permanecerem “ocultos nas pastagens” para realizarem a “emboscada”. “Pelo menos umas 100 testemunhas (efetivos policiais e outros) atestaram e confirmaram que, minutos antes da intervenção, a zona foi sobrevoada por um helicóptero, equipado especificamente para a observação. Se fez vários sobrevoos, em que também esteve o subcomissário Erven Lovera – responsável pela ação e que veio a ser morto em solo -, que continuou a operação aérea com sirene e megafone durante a incursão policial. Haveria sido impossível que não se tenha podido observar, entre as pastagens secas, a qualquer dos camponeses. A afirmação é absolutamente ridícula”.
6. Nenhuma das mulheres processadas foi identificada pelas fotos ou filmagens realizadas antes ou durante o massacre, seja Lucia Aguero Romero, Maria Fany Paredes ou Dolores Lopez Peralta. “Sequer foram identificadas pelas testemunhas. A única identificação positiva, real, realizada, foi de Lucia Aguero Romero, quando esta, acompanhada de um menor que havia resgatado, tentava sair do prédio de Campos Morumbi, porém num momento posterior ao massacre”.
7. A farsa da “emboscada” e do semicírculo “em forma de U”. Para tentar justificar sua tese de que os camponeses teriam armado uma emboscada para os policiais, a promotoria denunciou que a prova disso é que os corpos dos Sem Terra mortos estaria em forma de U. “Não existiu nenhum semicírculo. De haver existido este deveria constar na ata de análise dos cadáveres, e não em uma reconstrução, onde a promotoria dispôs os corpos a seu bel prazer – e ainda assim, sem que qual posicionamento haja permitido desenhar um semicírculo, onde todos (ou pelo menos a maioria) dos corpos possam ser situados sobre a linha perimetral do suposto semicírculo desenhado. Não se fez menção a sinais de rigidez cadavérica, sangue e outras evidências, nem em que lugar foi atingido pelos projéteis, quantos passos antes de cair, etc. Também não existe o lugar exato de onde foram retirados os corpos dos policiais falecidos e, consequentemente, não existe um ponto de amarração, seja topográfico ou planimétrico com que se possa avaliar a distância dos supostos disparos”.
8. Nunca ocorreram os supostos disparos “escutados” por Lovera contra o helicóptero. “Tanto o piloto como o copiloto do helicóptero, coincidiu que é impossível escutar disparos, devido ao ruído produzido pelas hélices. Portanto, mentiram as testemunhas que disseram que Lovera disse algo a respeito ou mentiu o próprio subcomissário Lovera. Em todo caso, não existiu nenhum impacto na aeronave – e tanto a acusação como a sentença sustenta que os camponeses haviam sido ‘treinados’ militarmente, que efetuaram ‘disparos com precisão’, pelo que a afirmação, de que tal fato teria sido ‘provado’, resulta simplesmente ridícula”.
9. A farsa das balas de borracha. “Não foi constatada uma única pessoa ferida com bala de borracha; não foi encontrada uma única bala de borracha; não há um único policial que haja testemunhado haver disparado com bala de borracha. Tanto a coluna policial que ingressou pelo norte, comandada por Lovera; como a que ingressou pelo sul, comandada pelo comissário Elizardo Gamarra, utilizaram diretamente armas letais de guerra, além de escopetas e pistolas 9 mm. Conforme ficou comprovado e não como falaciosamente sustenta o tribunal. Portanto, ficou comprovado que as instruções respectivas, dadas aos policiais foram meramente formais, para simular, ante a pessoas estranhas presentes, que se ‘respeitaria’ os direitos humanos. (Este diálogo foi frente à câmeras filmadoras, para ficar registrado oficialmente). Ninguém obedeceu a tais ordens. Uma vez iniciada a discussão, os efetivos policiais, aterrorizados, dispararam indiscriminadamente ante a qualquer movimento (inclusive um cachorro saiu ferido) ou simplesmente se limitavam a se esconder”.
10. A existência de armas sem nexo com os acusados não prova tentativa de homicídio. Não se conseguiu estabelecer nenhum nexo entre quaisquer das armas com quaisquer dos acusados e o mero fato de que o Ministério Público sequer tenha tentado levantar impressões digitais ou outro material que estabeleça algum vínculo entre alguma das armas (sejam armas brancas, foices, facões, armas de fogo, etc.) indica que estas armas foram plantadas e não estiveram em mão de nenhum dos acusados. Se deve provar que a pessoa acusada realmente disparou uma arma mortal contra outra pessoa determinada. Ao não se estabelecer sequer tais nexos: arma com acusado, acusado disparando, disparando contra tal pessoa, com munição mortal, a teoria de ‘tentativa de homicídio’ se limita a uma mera especulação, a invenção infundada. Com mais razão, considerando que todas as armas dos camponeses deram resultado negativo a disparos, mesmo na ‘perícia’ realizada à revelia da defesa – com exceção do revólver encontrado junto ao corpo de Adolfo Castro – onde tampouco se investigaram as impressões digitais para ter certeza de que a arma não tenha sido plantada.
11. Inversão do ônus da prova. “Se determina a que Nestor Castro Benitez prove não ter participado ativamente do massacre. As perícias realizadas nas armas deram resultado negativo, assim como a prova de parafina, ninguém o viu entre os presentes ou com a arma na mão, disparando. Mas, pelo simples fato de haver sido ferido, se supõe, especula, presume, que haja tentado matar alguém”.
12. A suposta “cumplicidade das mulheres”, às quais sequer conseguiram comprovar que estivessem no local. “Supostamente pela presença de mulheres e crianças a polícia haveria ‘baixado a guarda’ deixando de matar mais gente, mais camponeses, mais inocentes”.
13. Não se provou que a violência faça parte da concepção de Ruben Villalba – que segundo a acusação teria uma alta probabilidade de “cometer estes atos no futuro”. Isso está provado, pelo teste psicológico, mas não em relação à Villalba e sim em relação ao policial Herman Thomen, como está inscrito nos informes, tomo II, folhas 264 e seguintes: “se entre nós sair um ferido, do outro lado devem morrer 50; e se chega a morrer um, do outro devem morrer 100, com esta mentalidade estamos”.
14. A contradição absoluta: um “emboscador idiota”. “Se Erven Lovera chegou à zona onde se encontravam Ruben Villalva e logo foi atingido a partir dos lados, então Ruben Villalva evidentemente não foi o autor dos disparos. Ao contrário, se encontrava exatamente na linha de fogo, do ‘flanco frontal’. Qual participante de ‘emboscada’ se colocará diretamente na linha de fogo? Além disso, um ‘emboscador’ tão covarde como o pintado pela promotora Lilian Alcaraz, em suas alegações finais?”
15. A própria sentença confirma que a polícia não invadiu o local para “averiguação”, mas com o objetivo de um despejo ilegal. “Desta forma se acabou assassinando a 11 camponeses, se queimou seu acampamento – sem nenhuma autorização judicial – e se restituiu a posse do imóvel usurpado ao usurpador”.
16. Não há qualquer “rigor científico” no julgamento. “Efetivamente todas as provas foram contaminadas: Os corpos dos falecidos foram movidos antes da inspeção médica. As armadilhas ‘caça-bobos’ somente foram ‘encontradas’ depois que o Ministério Público autorizou expressamente aos funcionários de Campos Morumbi para que contaminassem e queimassem o lugar do massacre. Os corpos encontrados no dia seguinte foram encontrados por civis, já que os funcionários do Ministério Público – e os efetivos policiais que deveriam custodiar o local – brilharam por sua ausência. Não se deixou registro como, em que lugar exato e em que posição, teria sido encontrada as armas e as balas junto aos corpos caídos. Não se observou as formalidades da cadeia de custódia em relação a nenhum dos elementos apreendidos. Quaisquer das evidências ‘encontradas’ no dia dos fatos não foram levantadas nem registradas conforme determinam as normas; nas atas não se registra o local exato onde se encontrou nenhuma das evidências. Não se registrou nas atas o lugar exato e a posição exata na qual encontraram os corpos dos falecidos, nem se foram tocados, movidos ou não antes de sua inspeção. A arma encontrada dias depois em frente a uma igreja de Curuguaty, introduzida no julgamento como se houvesse sido achada no lugar dos acontecimentos, também foi encontrada e contaminada por civis (…). Além disso, o tribunal se ‘esquece’ de outro detalhe importantíssimo: a ocultação deliberada das placas radiográficas tiradas das vítimas policiais que, eventualmente, ante as notórias contradições entre os peritos, poderiam lançar alguma luz em relação à verdadeira causa da morte: as características dos projéteis: se são de arma de grosso calibre, como informou o fiscal forense de Curuguaty, ou se se trata de balas de escopeta, como sustenta o perito fiscal de Assunção. Se foram disparos à queima roupa, como sustenta o forense de Curuguaty, ou se foram disparos à distância, como o sustenta o forense de Assunção.
17. Não se provou que o primeiro caído tenha sido Lovera – o que teria premeditado a intervenção policial. Supõe-se que o subcomissário tenha sido o primeiro porque as testemunhas, todas elas policiais, estão interessadas em condenar os camponeses. “Para cúmulo, estes mesmos policiais (uns 10) disseram que Lovera foi a primeira vítima e assinalaram como causa de sua queda os disparos recebidos de um revólver niquelado. E não de escopeta”.
18. O tribunal agiu de má-fé ao não esclarecer que as armas supostamente utilizadas pelos camponeses no massacre não foram disparadas recentemente, conforme exame balístico – afora o revólver niquelado, que deu um positivo parcial. “Estamos numa situação da qual de sete armas, somente a arma curta foi disparada, o que demonstra que não houve reação dos camponeses. Se é que o revólver niquelado foi disparado por um camponês e não ‘plantado’ por policiais ou funcionários da Campos Morumbi. Os efetivos policiais evidentemente mentiram em relação a quem disparou e com que arma e não merecem crédito algum. Os camponeses foram vítimas do tiroteio (da mesma forma que os policiais caídos), não autores, com exceção da pessoa que poderia ter utilizado o tal revólver niquelado. E a investigação parcial, unidirecional do órgão acusador e do tribunal, é hoje motivo de preocupação da ONU e de vários governos no mundo inteiro”.
19. Sim, houve mal procedimento da polícia. “Afinal, em nenhum momento o subcomissário Lovera ou qualquer outra pessoa exibiu a ordem de averiguação ou entregou uma cópia a qualquer dos afetados. Tudo indica que a comitiva fiscal policial sequer levasse consigo a notificação. Depois do ocorrido, não fecharam o local, nem o protegeram de outras pessoas”.
20. Foi confirmada a presença de franco-atiradores e de fuzis automáticos. “Testemunha chave, Herman Thomen declarou ao tribunal sobre a presença de franco-atiradores no local. Vários policiais reconheceram que estavam armados e confirmaram ter disparado com armas automáticas, com rifles de miras telescópicas (se mostrou durante o julgamento fotos de policiais com armas com miras telescópicas, apontando). Portanto é falsa a afirmação do tribunal. Todos os membros do grupo especializado protegido, estavam a apenas 15 metros atrás da vegetação pelo sul, armados com escopetas que dispararam, conforme se provou no julgamento.
—
*Jornalista, escritor do livro “Curuguaty, carnificina para um golpe”, é observador internacional do caso no Tribunal de Sentenças de Assunção.
Fonte: MST.