Para que o mundo não se esqueça: Mavi Marmara, a história de um covarde ataque israelense

Há dez anos a Flotilha da Liberdade zarpava com destino a Gaza. Constituída por seis barcos, reunindo cerca de 750 pessoas de várias nacionalidades, pacifistas de diversas correntes, jornalistas, ativistas, políticos e religiosos, transportava uma carga de dez mil toneladas em ajuda humanitária para os moradores da Faixa de Gaza: alimentos, equipamentos médicos e escolar, medicamentos e materiais de construção. O principal objetivo da missão era levar solidariedade e chamar a atenção do mundo sobre as condições desumanas a que é submetido o povo palestino, vítima de um brutal bloqueio econômico imposto pelo governo de Israel desde 2007.

A flotilha era liderada pelo Movimento Free Gaza e pela organização Insani Yardem Vakfi (uma reconhecida organização militante turca fundada em 1992 para levar ajuda a bósnios durante a Guerra da Bósnia e Herzegovina (1992-1995), presente em 120 países e que atuou em desastres recentes, como no terremoto no Haiti). Partindo de portos na Turquia, Grécia, Irlanda e na costa do Chipre, o comboio humanitário deveria cruzar o Mar Mediterrâneo em direção a Port Said, cidade ao norte do Egito, de onde seguiriam por terra até Gaza, apesar dos avisos do governo israelense de que não iriam permitir uma incursão no território.

Mas na madrugada do dia 31 de maio de 2010 a frota foi brutalmente atacada pela Marinha israelense em águas internacionais, a 52 quilômetros da costa de Israel. O ataque ocorreu por volta das 4:30 horas, quando várias embarcações israelenses cercaram a frota humanitária e após a negativa do navio Mavi Marmara, de bandeira turca, de desviar sua rota para o porto de Ashdod, em Israel (“Negative, negative. Our destination is Gaza”), forças israelenses assaltaram o navio com apoio de soldados que desceram de helicópteros por meio de rapel.

Segundo a cineasta brasileira Iara Lee, que estava presente no comboio, “os israelenses começaram atacar de forma indiscriminada, atirando na cabeça dos passageiros”. Uma jornalista da rede Al Jazeera que acompanhava a missão humanitária também afirmou que os israelenses começaram a atirar antes de subir nos barcos.

A ação resultou na morte de nove ativistas e dezenas de feridos, muitos deles em estado grave. Após a interceptação, os barcos da Flotilha da Liberdade foram rebocados até o porto de Ashdod, no sul de Israel. Sete dos ativistas eram de nacionalidade israelense e seis foram presos – o sétimo era uma deputada, que por gozar de imunidade parlamentar foi imediatamente liberada. Entre os militantes estrangeiros havia cidadãos da Turquia, Grécia, Estados Unidos, Espanha, França, Alemanha, Suécia, Dinamarca, Brasil e Qatar, entre outros países. Também estavam a bordo Hilarion Capucci, arcebispo melquita emérito, Mairead Corrigan Maguire, Prêmio Nobel da Paz de 1976, dois políticos europeus, o escritor sueco Henning Mankell e Hedy Epstein, sobrevivente do Holocausto, de 85 anos de idade. Todos foram levados a instalações penitenciárias de Israel e posteriormente deportados, não sem antes serem coagidos a assinar um documento no qual cada um deles confessasse ter entrado ilegalmente em Israel – o que a maioria dos ativistas recusou, considerando que foram presos em águas internacionais e que nem mesmo se dirigiam a território de Israel. A libertação só veio depois da reação internacional e do pedido do secretário-geral da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), Anders Fogh Rasmussen.

A criminosa ação da Marinha israelense resultou numa derrota política e diplomática para Israel e acabou por fortalecer seu isolamento na comunidade internacional. Em 30 de julho do mesmo ano, o Comitê de Direitos Humanos da ONU recomendou Israel para que suspendesse o bloqueio militar à Faixa de Gaza e garantisse as liberdades civis e políticas fundamentais aos palestinos dos territórios ocupados.

Os protestos contra Israel ecoaram intensamente, notadamente em manifestações e boicotes na Europa, onde o Parlamento europeu reprovou a ação. Governos de todo o mundo, incluindo o Brasil, condenaram o ataque e pediram providências junto à Organização das Nações Unidas (ONU). O caso teve repercussão negativa inclusive entre judeus não ortodoxos e israelenses. As relações com a Turquia, até então um importante aliado de Israel no Oriente Médio e mediador de conflitos entre árabes e israelenses, ficaram profundamente desgastadas, a ponto de Ancara retirar seu embaixador de Tel-Aviv – medidas também adotadas por Egito e Jordânia – e ameaçar romper laços diplomáticos. Até mesmo nos EUA, tradicional aliado de Israel e um dos poucos países a não condenarem a ação, a desastrada ação fez sentir seus efeitos: o suporte – financeiro, militar e político – que a Casa Branca oferece ao Estado israelense  passou a ser questionado entre a população yankee, sobretudo entre os democratas.

O ataque de Israel à Flotilha da Liberdade que levava ajuda humanitária à Faixa de Gaza chocou o mundo, e com certeza fez despertar a atenção da comunidade internacional para um fato ainda mais horrível: Israel mantêm cerca 1 milhão e meio de pessoas na faixa de Gaza em condições de campo de concentração. O regime sionista não deixa entrar cimento – nem lâmpadas, velas, fósforos, livros, instrumentos musicais, giz de cera, roupas, sapatos, colchões, lençóis, cobertores, chá, café, chocolate e xampu, entre outras centenas de artigos. Comida e medicamentos básicos são de longe insuficientes. Assistência médica depende de conseguir uma autorização para sair de Gaza, e muitos morrem sem conseguir. A ONU já emitiu incontáveis ordens de levantar o bloqueio e é sumariamente ignorada.

O bloqueio de Israel aos alimentos essenciais, medicamentos, produtos para a educação e para a construção, não é apenas imoral; é uma forma grave de punição coletiva, um crime de guerra que é estritamente proibido pelo Artigo 33 da Convenção de Genebra. Um bloqueio que tem sido responsável direto pelo empobrecimento da população de Gaza, a contaminação da água, colapso ambiental, doenças crônicas, devastação econômica e centenas de mortos.

A comunidade internacional deve entender as atrocidades israelenses no contexto de décadas da impunidade de Israel, que lhe é proporcionada pelos governos ocidentais. Desde o Nabka – a instalação de Israel pela expulsão e limpeza étnica da maioria do povo palestino nativo – que o estado sionista tem recusado o direito de retorno aos mais de 6 milhões de refugiados, direito este sancionado pela ONU. No mesmo período, Israel conseguiu consolidar o seu sistema de discriminação racial legalizada e institucionalizada que se enquadra na definição de apartheid segundo a Convenção Internacional para a Supressão e Punição do Crime de Apartheid, de 1993.

Há 50 anos Israel mantém sua ocupação nos territórios palestinos (N. da R.: Segunda ocupação da Palestina, a primeira foi antes de 1948), incluindo Jerusalém e Gaza, e continua expandindo suas colônias ilegais, praticando graves violações do direito internacional e crimes de guerra com toda a impunidade. Até mesmo a sentença do Tribunal Internacional de Justiça em 2004, que considerou ilegais o Muro de Israel e a instalação de assentamentos, vem sendo ignorada.

Ao longo de todos estes anos Israel tem sabotado todas as iniciativas para uma solução política da Questão Palestina, baseada em decisões e entendimentos internacionais. Em vez disso, procura ditar um acordo baseado em sua superioridade militar. A Flotilha da Liberdade desafiou essa política e, por isso, foi esmagada.

Porém o que mais impressionou em toda a seqüência dos fatos referentes à história da Flotilha da Liberdade, do martírio dos passageiros do Mavi Marmara, não foi exibida na mídia ocidental. Nenhuma emissora de televisão ou jornal no Brasil cobriu a recepção que os integrantes da flotilha tiveram depois, nos locais para onde foram “deportados”: na fronteira da Jordânia uma multidão começou a se formar dez horas antes da chegada dos ônibus; quando estes chegaram, seus passageiros foram recebidos entre festas e cantos e aclamados como heróis. Fatos semelhantes ocorreram nos aeroportos da Turquia e da Grécia.

 Motivado por sentimentos anti-Israel ou anti-judeus?

Não, não havia entre eles nenhum sentimento anti nada, só pró: pró uns aos outros, pró humanidade, pró restauração na crença de que podemos agir movidos pela compaixão e solidariedade até o nível do heroísmo, a despeito de qualquer outra razão.

Para finalizar, recomendo o documentário Fogo sobre o Mármara, de David Segarra (também participante da expedição) produzido pela rede TeleSUR, da Venezuela. Ele relata a viagem da flotilha do ponto de vista dos ativistas e jornalistas que dela participaram, remetendo a suas experiências pessoais e familiares de luta contra as injustiças e como se engajaram na causa palestina. Para isso, os realizadores do filme viajaram a Istambul, Londres, Bruxelas, Estocolmo, Valência e Barcelona para entrevistá-los.

 


Fonte: Mkninomiya.

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