Por Leonardo Sakamoto.
A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) postou a imagem abaixo, nas redes sociais, para ensinar à população como identificar pessoas que possam cometer atos terroristas. Fico imaginando os filmes e desenhos animados que os técnicos da instituição usaram para traçar esse perfil, pois nem a galera que causava problemas para Jack Bauer adotava o estereótipo.
Detalhe para o punho cerradinho de mal:
Nervosismo? Mochila? Casaco? Nesse perfil, enquadram-se muitos jovens em dia de prova de vestibular.
Comecei a me preocupar com os serviços de inteligência do país quando circulou que haviam descoberto que Lula e Guilherme Boulos conversam com regularidade. Descoberta feita, provavelmente, com poderosos recursos tecnológicos, como a busca do Google.
A publicização desses estereótipos não ajuda em nada. Pelo contrário, a chance é terminar sempre mal. O brasileiro Jean Charles de Menezes, confundido com um terrorista e assassinado pela Scotland Yard, em 2005, que o diga.
Lembro de uma moça usando um hijab, tradicional véu muçulmano que esconde o cabelo e o colo mas não o rosto, cruzou o raio-X da sala de embarque do aeroporto de Barcelona sem disparar o alarme. Mesmo assim, teve que passar por averiguação minuciosa, com detectores de metal manuais e as costumeiras perguntas bobas sobre a bagagem de mão.
Não imagino que alguém diante da questão “Quem organizou esta bolsa?” vá responder com “Foi o Estado Islâmico” – seguido de uma risada maligna.
Com semblante de pouca ou nenhuma surpresa, riu da situação e obedeceu. Outra fiscal de imigração perguntou ao colega o porquê da dupla checagem. E ele respondeu sem constrangimentos ou mesmo pudor de ser ouvido pelos outros passageiros: “por causa do véu”.
Creio que, em algum momento futuro, vamos olhar para trás e nos arrepender não só das grandes ignomínias – como a invasão de países em nome do petróleo ou o fomento a conflitos internacionais que geram refugiados – mas também da tradução dessa geopolítica estúpida no dia a dia.
Pois a discriminação que surge como efeito colateral da busca por garantir segurança à população só eleva os ânimos e torna essa proteção mais distante.
Como já disse aqui, quando viajo para fora, não raro sou intensamente sabatinado em algum posto de imigração. Tenho certeza de que, naquela tela de computador do pessoal de fronteira, quando digitado o número do meu passaporte, pula um aviso FEOP – “Faça esse Otário Pastar”.
– O senhor é brasileiro mesmo? Sakamoto não é nome brasileiro… (Não, tô mentindo so porque é cool ser brasileiro e ser japonês não tá com nada. Dá vontade de perguntar quantos sobrenomes “brasileiros” o sujeito conhece…)
– O que quer dizer esta entrada nos Emirados Árabes no seu passaporte? (Você não conta para ninguém? Significa que estive lá.)
– E esse visto da Colômbia? (Ah, não, esse ai é de mentira. Coloquei porque, com a série Narcos bombando, vira hype)
– Tem alguma documentação que prove que é jornalista mesmo? (Diploma, via Sedex 10, serve? Mas adianto que a Justiça cassou a obrigatoriedade do diploma para exercer a profissão no Brasil então o papel só vale para cela especial no xilindró.)
– O que faz com frequência nos Estados Unidos? (Poderia dizer a verdade que sou pesquisador de uma universidade em Nova York e conselheiro de um fundo nas Nações Unidas, mas é mais legal falar que só vou para irritar o pessoal da extrema direita brasileira, que acha que a esquerda só deve ir pra Cuba.)
E por aí vai… Em alguns casos, nem a documentação da ONU ajuda.
Tudo isso chega a levar, em média, quatro vezes mais tempo que um “cidadão de bem” levaria. Fora a falta de educação, grosserias, ironias, prepotências.
Pele bronzeada, olhos puxados, enfim, cara de terrorista. Por isso, desisti de ser sincero e muitas vezes digo o que eles querem ouvir e ponto.
Em outra ocasião, estava em conexão em Londres indo para o Paquistão e teria varias horas livres para gastar na cidade. Mas não pude deixar o aeroporto pois não confiaram no que eu estava dizendo. Bem, ao menos, não me perseguiram pelas ruas e me alvejaram no metrô como já fizeram com o pobre Jean Charles, acima citado.
Voltando à Espanha, um caso que ficou famoso foi o de uma amiga, um a física paulistana, deportada em fevereiro de 2008. Ela tinha ido a Madri participar de um congresso. Chegando lá, o pessoal bem educado que cuida de fronteiras não foi com a cara dela e de outros brasileiros e os deixou em uma salinha por dias. Não adiantou explicar que ela era pesquisadora, que estava lá só para o evento, que não queria morar no exterior.
O aumento da imigração por refúgio de guerra, econômico ou ambiental em um país com maior oportunidade de emprego tem mostrado o que certas nações têm de melhor e de pior.
Uns são solidários e oferecem suas próprias casas, como na Islândia. Outros, vão buscar os imigrantes com seus carros para facilitar sua travessia, como já ocorreu com austríacos e alemães. Já outros caçam imigrantes nas ruas. Sem contar os governos que erguem cercas e muros, as sociedades que fazem plebiscitos para deixar uniões continentais e não precisar adotar políticas comuns de imigração e os jornalistas que, literalmente, aplicam rasteiras para impedir que refugiados entrem em seus países.
Os elementos constitutivos dessa paranoia não são monopólio de portos e aeroportos gringos ou mesmo de ações de “segurança” (sic) para os Jogos Olímpicos, mas estão presentes em nossa própria comunidade. Diariamente.
Ou alguém aqui acredita, realmente, que o detector de metais da porta giratória de agências bancárias só apita e trava quando o portador traz consigo uma quantidade de metal?
Dia desses, fui (novamente) parado apesar de não portar metal algum. Logo após, um cliente com chaves na mão passou sem problemas. Questionei o segurança e seu controle remoto da porta. Ele, sem pudores, explicou: “desculpe, mas você pareceu suspeito e ele não”.
Não admira, portanto, que vez ou outra, pessoas indignadas tirem toda a roupa em portas-giratórias após sucessivas tentativas.
Quem decide quem tem cara de confiável? Certamente, não é o segurança da agência bancária, o fiscal de fronteira ou o técnico da Abin.
Além das ordens expressas de superiores, eles foram treinados ao longo do tempo pela mídia, a família, instituições religiosas, a escola, que deixam claro quem merece respeito e credibilidade e quem não. Eu, certamente, não tenho uma cara 100% confiável (ajudaria um olho claro, uma pele branca, um nariz mais afilado). A moça de hijab, muito menos. Um sírio nas ruas da Hungria ou mesmo um haitiano em São Paulo, então, nem se fala.
Ao mesmo tempo, os países pouco se importam com a origem do investimento internacional que aporta em suas fronteiras. Não questionam se usa véu, se gosta de samba, se é negro ou não acredita em Jeová. Em alguns casos, nem se vem de uma ditadura sangrenta, da escravidão ou da lavagem de dinheiro. O capital é livre para circular. Já os trabalhadores são barrados em fronteiras ou morrem afogados ao tentar atravessa-las.
E os países vão se tornando reféns do medo dentro de seu próprio território. Medo criado, na maioria das vezes, por si mesmos, a bem da verdade. Medo que não é bom para a dignidade da maioria das pessoas, mas serve muito bem ao interesse de uma minoria que lucra com essa segregação.
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Fonte: Adital.