Para nova chefe da Funai, Joênia Wapichana, Bolsonaro quis extinção dos yanomamis

Ela planeja expulsão de garimpeiros e descreve cenário trágico entre crianças e idosos Yanomamis

Foto: Billy Boss/Câmara dos Deputados
Fonte: Agência Câmara de Notícias

Por Murilo Pajolla, no Brasil de Fato | Lábrea (AM)

A primeira presidenta indígena da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joênia Wapichana, viajou com o presidente Lula a Roraima, onde acompanhou as ações emergenciais do governo federal para atenuar a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami.

Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, ela relatou ter encontrado uma situação calamitosa na saúde indígena, herança de “muita negligência” do governo de Jair Bolsonaro (PL). Ela diz acreditar que o ex-presidente desejou a extinção do povo Yanomami, dada a soma de ações e omissões contrárias ao povo cometidas por sua gestão.

“Nos deparamos com uma tragédia humanitária. Pessoas morrendo de fome, que deveriam estar sendo assistidas pelo Estado brasileiro”, lamentou.

Após a declaração de emergência em saúde, houve reforço nas equipes de saúde e a criação de um hospital de campanha da Força Aérea Brasileira (FAB), que começou a funcionar nesta sexta-feira (27).

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“Eu vi, na prática, os profissionais da saúde fazendo reuniões e pude ver que melhorou o atendimento, mas ainda existem demandas. O número de atendimentos aumentou consideravelmente”, relatou Joênia.

Para a advogada de Roraima, os altos índices de mortes por doenças tratáveis indicam que houve uma intenção genocida por parte do presidente Jair Bolsonaro (PL). “Se formos estudar e parar para pensar, ele [Bolsonaro] desejou praticamente a extinção do povo indígena, por suas intenções e por suas omissões.”

A parlamentar cumpre até o fim de janeiro o mandato de deputada federal pela Rede Sustentabilidade. Depois, assume a presidência da Funai, que vem sendo aos poucos “desbolsonarizada”.

“[A expulsão dos garimpeiros] é o mínimo que se espera da Funai. Mas nesse primeiro momento estamos reconstruindo o país todo”, afirmou.

Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato: A senhora está em Roraima há uma semana acompanhando a situação dos Yanomami internados com malária, desnutrição e contaminação por mercúrio. Qual foi a situação que encontraram?

Joênia Wapichana: Foi a constatação de tudo que a gente vem denunciando e de tudo que a gente levou para o conhecimento do ex-presidente Jair Bolsonaro. Principalmente ao conhecimento da Funai e também por parte da Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena] e de outros órgãos que deveriam estar tratando de imediato, e que não trataram o tema, o negligenciaram. Sequer tiveram a sensibilidade de se comoverem com a situação dos povos indígenas.

Nesse primeiro momento, vimos um quadro grave da situação de saúde. Um quadro elevado de desnutrição de crianças, principalmente de 0 à 7 anos. E também de adultos e anciões. Tudo isso num contexto de grave situação do avanço do garimpo ilegal. Nos deparamos com uma tragédia humanitária. Pessoas morrendo de fome que deveriam estar sendo assistidas pelo Estado brasileiro.

Foi uma situação bastante lamentável, porque há crianças que foram a óbito por malária. Um problema que poderia ser tratado, se houvesse uma assistência correta e adequada da saúde indígena. Elas poderiam ter sido salvas. A situação poderia ser amenizada, elas poderiam estar vivas. Então foi bastante trágico ver o descaso que se tem com os povos indígenas, já muitos anos acumulados e que está resultando nessa tragédia humanitária.

Quando chegamos em Boa Vista, foi necessária uma urgência por parte do governo Lula, que se prontificou como uma sinalização. Ele foi a Roraima e disse que esse tema é uma prioridade no governo, que tem que responder a isso de imediato. E vamos trabalhar assim. O presidente Lula se sensibilizou com pacientes da Casai [Casa de Saúde Indígena, ligada ao SUS] ao ver a situação das crianças. Naquele primeiro momento, ele já determinou que os ministérios dessem alguma resposta.

O quadro melhorou após as medidas emergenciais serem tomadas?

Retornei à Casai ontem e pude constatar um outro quadro. Há mais médicos, principalmente, e mais estrutura. Os militares estão presentes e montou um aparato para atender a necessidade de quem está vindo, para reforçar esse atendimento médico. Eu vi, na prática, os profissionais da saúde fazendo reuniões e pude ver que melhorou o atendimento, mas ainda existem demandas. O número de atendimentos aumentou consideravelmente.

Eu também tive na sede da Funai, aqui em Roraima. As doações de cestas básicas estão chegando. Muitas pessoas e organizações não governamentais de outros estados estão apoiando. Campanhas estão sendo feitas pelas organizações indígenas e pela sociedade civil organizada. Estão enviando alimentos.

Recebemos doações de redes. Muitas pessoas não entendem, mas os indígenas, na maior parte, dormem em redes. As pessoas da coordenação da Sesai me disseram que precisam de redes, porque [os pacientes] estavam atando lençóis para dormir. A Funai vai entregar essa redes que recebeu de doações.

:: Bruno Pereira foi demitido da Funai em 2019 após ações contra garimpo ilegal em terras Yanomami ::

A Funai também está indo na Terra Indígena [Yanomami] para fazer essas entregas das cestas básicas. Mas ainda há muito a se ajustar, adequar, porque não é qualquer alimento que serve para receber de doação. Então a gente agradece bastante essa mobilização da sociedade, mas também tem que seguir uma orientação dos nutricionistas, principalmente porque se trata de crianças.

O novo governo veio com essa vontade política de resolver esse problema, abriu o diálogo com outros ministérios. Então não é só um ministério, mas todo um trabalho interministerial convocado pela ministra da Saúde, com participação do secretário da Sesai, que também esteve aqui, e da Funai.

A senhora alertou integrantes do governo sobre a tragédia em curso? Quais respostas recebeu?

Sim, desde o meu primeiro ano de mandato já venho denunciando. Foram vários ofícios como parlamentar e também nas audiências públicas, onde convocamos o ministro da Saúde, o Ministério da Justiça e a Funai. O que mais a gente fez, em diversos momentos foi convocar o governo e cobrar o que estava sendo feito.

As respostas foram muito vagas. Sempre tentando tirar a responsabilidade deles. Muito descaso, muita negligência. Por isso que muitas vezes também encaminhamos pedidos de impeachment do presidente [Bolsonaro] por diversas vezes. Nós ingressamos no Supremo Tribunal junto com as associações indígenas, o que gerou uma série de decisões também para retirar garimpeiros e para atender na saúde.

Em 2020 fui relatora do projeto lei que previa um plano emergencial para combater a covid-19 nas terras indígenas. Existia uma fragilidade muito grande na entrada de invasores nas terras indígenas, o que aumentou consideravelmente a contaminação. Inclusive uma das primeiras vítimas da covid no estado de Roraima foi um jovem Yanomami. Fizemos levantamentos na CPI da Covid sobre falta de medicação, o aumento da malária e da contaminação da água por mercúrio. Havia um contexto que já apontava que era a situação era bastante grave.

Em 2022, eu coordenei a Comissão Externa para apurar a situação do povo Yanomami lá na região de Waikás, que num primeiro momento era relacionada à questão de abuso sexual. No final do mês de novembro nós colocamos em votação as recomendações, para que o Executivo retirasse os garimpeiros.

E já havia muitos, muitas denúncias por falta. Naquele tempo já havia indícios de corrupção, de desvio de recursos públicos. Depois de alguns dias, saiu uma operação da Polícia Federal, que constatou o desvio de medicamentos que deveriam ter ido para a área Yanomami. Então toda uma crueldade. Uma tragédia anunciada e denunciada que se propagou e aumentou mais ainda

As organizações indígenas acusam o governo Bolsonaro de genocídio dos povos indígenas. Enquanto advogada e mulher indígena de Roraima, a senhora concorda com essa acusação?

Não existe uma prova mais clara do que essas as mortes que estamos vendo nos últimos dias. São mortes de criança nossas, que estão nascendo tão pequenas que não conseguem se defender. O que é genocídio? O genocídio tem um contexto que é a intenção de acabar com um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Então, o genocídio teve uma prática intencional.

O governo Bolsonaro teve essa intenção? Eu acredito que sim, porque desde a campanha, quando ele veio a Roraima, ele falou: “no meu governo, índio não vai ter vez. Vamos abrir as terras para o garimpo. Vamos diminuir a demarcação das terras indígenas, nem um milímetro a mais vai ser demarcado”.

Então ele [Bolsonaro] já revelou uma intenção do que seria o governo por quatro anos. E de fato, durante esses 4 anos não se demarcou, não se investiu em órgãos como a Funai. Há estudos que mostram uma redução muito grande do orçamento da Funai em termos de recurso para que ela pudesse realizar suas missões institucionais, que é fiscalizar e retirar garimpeiros, combater os ilícitos dentro das terras indígenas e fazer a proteção da vida indígena.

Quando você deixa de dar condições para que o órgão cumpra seu dever constitucional, você está agindo com intenção, sim. De cada vez mais sucatear, desmantelar e fazer ele não funcionar. Esse é outro indício.

[Bolsonaro] desejou praticamente a extinção do povo indígena

Outro indício são as normativas que foram dadas durante o governo Bolsonaro. Diversas instruções normativas para flexibilizar a entrada de pessoas, entrada de projetos, sem o respeito aos direitos indígenas. Quando você vem a Roraima, vai a uma área de garimpo e faz um discurso encorajando a entrada de garimpeiros e dizendo que haveria a regulamentação de garimpo em Terra indígena [como fez Bolsonaro], você acaba fomentando o aumento de invasões de garimpo e, consequentemente, você está colocando em vulnerabilidade povos que não tem mais condição de fazer sua roça, porque existe um clima de intranquilidade, e as águas para consumir no uso doméstico estão poluídas.

Então você leva todo um clima de violência para Terra Indígenas, e há várias consequências que levam os indígenas a não terem alimentação. Já havia um déficit antes do governo Bolsonaro, quando era do governo Temer e que foi muito agravado.

Se formos estudar e parar para pensar, ele [Bolsonaro] desejou praticamente a extinção do povo indígena, por suas intenções e por suas omissões. Porque a questão da responsabilidade não é só de agir, é se omitir também. A omissão também gera consequências. E então você coloca em risco a integridade física dos povos Yanomami, você coloca eles em uma condição de vulnerabilidade. Coloca em risco de vida, justamente para provocar a sua destruição.

Porque a partir do momento que você expõe a vida indígena à violência, seja física, seja por meio da contaminação dos meios naturais que aquele grupo necessita para continuar vivendo, você gera o risco da sua extinção.

Uma operação da Polícia Federal descobriu um suposto esquema de desvio de medicamentos dos Yanomami em novembro do ano passado. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), faltou remédio contra verme para 10 mil crianças indígenas. Só 3 mil foram tratadas. O empresário suspeito era apadrinhado de um senador de Roraima muito próximo de Bolsonaro. É um dos casos de loteamento político dos Distritos Sanitários de Saúde Indígena (DSEIs), que deveriam cuidar da atenção básica de saúde. É possível solucionar isso?

A corrupção tem que ser tratada primeiramente como um crime. Tem que ser dada uma resposta à altura por essa prática que está prejudicando uma coletividade toda, inclusive, é conivente e cúmplice de genocídio. Da mesma forma que os altos escalões estão sujeitos a isso, os coordenadores dos distritos sanitários também têm sua responsabilidade.

Seja indicação política ou não, se tiver responsabilidade em corrupções ou em omissões, tem que ser encaminhado às autoridades policiais, que têm que apontar os crimes cometidos e encaminhar ao Ministério Público e à Procuradoria Geral da República e punir com os rigores que a lei estabelece.

É necessário que o governo Lula veja essas práticas de indicações. Inclusive, creio que, para a questão indígena, não deveria ter nenhuma indicação política, seja na Funai, seja na Sesai. Os povos indígenas devem ter o protagonismo [nas indicações], por ser um órgão que trata diretamente os povos indígenas. [Seria melhor] Que não tivesse esse apadrinhamento por parte de parlamentares ou políticos ou outros interessados, porque a gente viu que não dá certo. Realmente as indicações têm que ser técnicas.

Essa é uma das questões que a gente está discutindo na Funai. Que não haja interferência política nas indicações das coordenações regionais. Que haja primeiro o conhecimento técnico, a experiência técnica e o consenso dos povos indígenas.

A convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que fala sobre a consulta aos povos indígenas, prevê que as nomeações de cargos de pessoas que vão interagir diretamente com comunidades indígenas tem que ter, no mínimo, respeito e diálogo com os povos indígenas, tem que ser conhecedores dessa realidade.

Eu acredito que essa talvez seja a orientação que a Casa Civil tem passado, inclusive de evitar pessoas radicais como a gente viu assumindo cargos nos últimos 4 anos, com aquela ideia de evangelizar os povos indígenas a qualquer custo. Também vimos indicações de pessoas com ideias bolsonaristas, de ataques à democracia, não reconhecendo os poderes constituídos e tendo uma ideologia que seja, digamos assim, fascista.

É preciso evitar esses tipos de pessoas, então é importante realmente que todos esses cargos políticos possam ter uma clivagem de perfil e uma avaliação antes mesmo de tomar posse.

O garimpo atinge também as Terras Indígenas Kayapó, Munduruku e outras. Nesses lugares vivem pelo menos 13 mil indígenas sujeitos a esses impactos. A partir de fevereiro a senhora assume a presidência da Funai. Haverá operações de expulsão de garimpeiros?

Com certeza. É o mínimo que se espera da Funai. Mas nesse primeiro momento estamos reconstruindo o país todo. Da mesma forma reconstruindo os órgãos públicos que foram sucateados, desmontados, que não tiveram recursos para ter o mínimo de ações. Antes mesmo de tomar posse, estou verificando o que existe em termos de recurso e quais são as demandas urgentes.

No grupo de trabalho da comissão de transição, a gente fez o trabalho de diagnosticar as prioridades dos povos indígenas e apontamos essas áreas que você citou no Pará, áreas onde a vida dos povos indígenas corre risco por conta da mineração.

Esse plano de trabalho vai precisar do apoio de outros ministros. Uma força-tarefa interministerial precisará ser realizada. É de praxe haver isso para haver a desintrusão.

Esse novo governo encontrou a casa bagunçada, sucateada

Nós vamos aguardar os momentos apropriados. Assim que tomarmos posse, não somente eu, mas outros ministérios que também estão se organizando. Nem todo mundo foi nomeado ainda, e em muitos departamentos as diretorias ainda estão tomando a frente do novo governo. Esse novo governo encontrou a casa bagunçada, sucateada.

É importante envolver outros ministérios, porque a questão não é só a desintrusão dos garimpeiros. Tem que manter uma proteção, tem que dar os devidos cuidados, tem que promover um desenvolvimento sustentável, fazer com que os povos indígenas se fortaleçam. Que a Funai, a partir dos seus projetos de ações e programas na gestão territorial, também possa dar essas condições, para que os jovens indígenas não tenham nenhum motivo para ir para o garimpo, nem que líderes indígenas possam querer negociar suas terras para arrendamento ou defender madeireiros para tirar sua madeira das florestas.

Então temos que dar o desenvolvimento sustentável e condições de gerir o território. E, por outro lado, fazer com que o governo atue nessa fiscalização mais permanente. E não só de uma forma esporádica, ir lá, retirar os garimpeiros e ponto final. É uma questão transversal que deve ser tratada com bastante cuidado e de forma responsável. Logo que eu assumir a presidência da Funai, sei que vai ser um desafio muito grande e que os recursos são insuficientes. Mas nós temos que ser bastante inovadores e criativos e buscar apoio dos outros ministérios.

Edição original: Rodrigo Durão Coelho

 

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