Por Lúcia Müzell.
Os comentários recentes da cúpula militar do Brasil sobre a situação política levantaram dúvidas sobre até que ponto o país está livre de uma ação das Forças Armadas para tomar o poder. No alto do cargo de secretário de economia e finanças do Comando do Exército, o general Antonio Hamilton Mourão discursou sobre “derrubar esse troço todo” e “impor” o que considera uma solução à crise política, caso o Judiciário não “retire da vida pública esses elementos envolvidos em ilícitos”.
Mais surpreendente ainda foi a reação do seu superior no comando do Exército, general Eduardo Villas Bôas, que descartou punir Mourão pelas declarações e ainda disse que as Forças Armadas dispõem de “um mandato” para intervir “na iminência de um caos” no Brasil. O Planalto, visado pelas declarações, silenciou, por mais que a Constituição de 1988 proíba os militares de intervir na política.
Ao mesmo tempo, nas redes sociais, se multiplicam as mensagens de apoio a Mourão e links para notícias falsas, com propaganda velada sobre o tema. A sequência de acontecimentos preocupa a historiadora Maud Chirio, pesquisadora francesa sobre a história contemporânea do Brasil e especialista no regime militar. “Tal indisciplina ter passado sem consequências nos leva a sair de um modelo de democracia civil estável”, assinala.
A professora da Universidade de Paris Est Marne-la-Valée acha que uma intervenção militar é, por enquanto, pouco provável – mas vê com preocupação os últimos desdobramentos envolvendo a cúpula do Exército.
Radio France Internationale: Há dois anos, poucos acreditavam que o impeachment da presidente Dilma Rousseff seria possível, mas aconteceu. Há um ano, a hipótese de uma intervenção militar no Brasil parecia um absurdo: hoje, nem tanto. Como você vê a evolução dessa alternativa?
Maud Chino: Essa possibilidade era impensável há poucos meses, mas agora não pode ser descartada. Quando o alto comando militar conversa sobre a possibilidade de uma intervenção na política, é um fato muito importante. Existe uma regra absoluta nas Forças Armadas que é a não intervenção, de um jeito ou de outro, na política. E isso foi abertamente falado, sem consequências ou punições. Esse fato é extremamente grave, independentemente da probabilidade de ocorrer. Por enquanto, acho que não é o mais provável. Mas tal indisciplina ter passado sem consequências nos leva a sair de um modelo de democracia civil estável.
RFI: Em uma democracia consolidada, as declarações do general Mourão jamais passariam em branco?
MC: Jamais. Jamais. Muitos fatores explicam o general Mourão não ter sido punido, assim como os outros generais que demonstraram solidariedade ao que ele disse. Existe a fraqueza do governo atual, que tem dificuldades em impor um poder civil aos militares e precisa manter o apoio dos altos comandos das Forças Armadas. Tem a posição do general Villas Bôas, que está no final da carreira e, por ter pouco futuro na ativa, também está perdendo poder. Mas o fato de a punição não ter ocorrido mostra que foi aberta uma nova brecha na democracia brasileira.
RFI: Um amigo e admirador de Mourão, o pré-candidato Jair Bolsonaro, que atua na política e dentro das regras da política, homenageia abertamente figurões da ditadura, sem complexos. Ele conta com estimados 20% de apoio da população brasileira. Essa “intervenção” militar pode ocorrer pelas urnas?
MC: Se o Bolsonaro for eleito, não seria intervenção; seria a ascensão democrática de uma figura da extrema-direita. Há um crescimento acelerado da extrema-direita no Brasil, em diversos setores: populares, das classes médias e nas Forças Armadas, que são e sempre foram uma instituição conservadora, em especial o oficialato. Uma parcela do oficialato está indo mais para a extrema-direita do que se via alguns anos atrás. Isso leva a ser possível homenagear torturadores a evocar a abertamente a saudade da ditadura militar.
Fonte: Carta Capital.